SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

MONÓLOGO DO MORTO (Crônica)

MONÓLOGO DO MORTO

                  Rangel Alves da Costa*


Dizem que morri, fui apenas lamentado por corações verdadeiros e pranteado por tantas pessoas falsas que se juntaram ao meu redor para a despedida. Naqueles um adeus de verdade, nestes um suma daqui para sempre.
Lembro das quatro velas acesas, imensas daquelas de sete dias. Alguém deu a ideia de acender somente dois cotocos de velas que encontraram pelas gavetas. Funeral de pobre mesmo, como sempre fui, numa sala sem reboco, num chão sem ladrilho, com padre chegado ali forçadamente, puxado à mão pela beata minha velha conhecida.
Disse algumas palavras para justificar o que seria uma missa de corpo presente, e pronto. E nas palavras o que se pode dizer de todo mundo que não existe mais: era uma pessoa tão boa, tão prestativa, bom amigo e irmão, cuidadoso no trato com as pessoas, sem ter vícios que o desnorteasse dos caminhos da responsabilidade...
Nesse ponto, quando o velho sacerdote falou da minha pureza e da negação aos vícios, mesmo de olhos fechados vi pessoas sorrindo, cochichando, tendo que correr para fora para não cair em gargalhada. Mas que povo mais besta, mais ignorante, parecendo que não se olhava no espelho.
Ora, nunca neguei meus vícios a ninguém, e se o que faço possa ser considerado vício. Creio que não, pois diante de tantos vícios pesados envolvendo drogas e outros vícios humanos envolvendo desonra e imoralidade, até que sou de uma pureza a toda prova.
Nunca vi vício algum em beber cerveja, cachaça e uísque, e às vezes tudo na mesma ocasião. Muito menos fumar cachimbo, cigarro e charuto. Gostar de cabaré nunca foi vício e muito menos de namorar. Por isso mesmo que não precisava que ficassem zombando pelas palavras do sacerdote.
Se fui verdadeiramente viciado em uma coisa, esta foi gostar de viver caminhando sempre pelo lado contrário de tudo, desafiando os perigos, escrevendo meu próprio livro de conduta. Jamais aceitei imposição de quem quer que fosse, por mais rico ou metido a besta, nunca baixei a cabeça nem aceitei nada forçadamente por medo.
Pelo contrário. Até horas atrás, quando ainda estava vivo, continuava dono absoluto do meu passo e do meu ideário. Partidário contra as injustiças sociais, ainda assim nunca levantei uma bandeira de partido político porque seu discurso mentiroso dizia que era de esquerda. Esquerda uma ova, pois quando alcançam o poder todos, indistintamente, se tornam demasiadamente tortos.
Li Marx, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Bakunin, Arendt e outros do mesmo modo que li Lewis Carol, Tolkien, Whitman, Drummond, Pessoa, Jorge Amado. Tudo pelo prazer da leitura e do conhecimento, nada mais do que isto. Se eu levantasse desse caixão e dissesse, talvez vocês diriam que era mentira minha, mas já chorei lendo aqueles romances infanto-juvenis de José Mauro de Vasconcelos. Que saudade de Rosinha, minha canoa, de Meu pé de laranja lima...
Gostava, não vou negar agora só porque logo mais estarei tendo o meu passaporte avaliado para saber para qual lado posso seguir, do pecado e de pecar. Mulher casada já foi mais casada comigo do que com os seu maridos corneados. Escrevia cartas de amor para meus amigos entregarem às suas pretendidas, mas quem as encontrava nos escondidos dos cemitérios e dos bequinhos era eu.
Certa vez travei uma longa discussão com um padre sobre a igreja e a existência de Deus. Foi a primeira das tantas vezes que fui excomungado. Provei ao homem que igreja e cabaré são as mesmas coisas e que prostituta não se diferenciava de beata. Ora, eu disse, a igreja é apenas uma construção que precisa verdadeiramente alcançar o fim a que se destina, através do exemplo maior dos seus sacerdotes, padres e sacristãos. Mas o que eles fazem senão denegrir a imagem do templo religioso?
Uma igreja que se respeita cultua a palavra do Senhor e segue os seus mandamentos. E não me parece algo respeitável um templo onde um padre raparigueiro ou pedófilo se reveste de paramento para falsear a palavra sagrada. Do mesmo modo aquelas sonsas que chegam por ali cheias de pecados e ainda assim se acham devotas disso ou daquilo. Em primeiro lugar sejam devotas de si mesmas, respeitando-se, deixando de trair os maridos, deixando de viver para a mentira e a falsidade.
Conheço cabaré com gente mais religiosa do que aquelas que freqüentam assiduamente os templos. Os padres que freqüentam ali às escondidas também sentem isso, tenho a máxima certeza. E porque disse essas verdades o homem me ameaçou de excomungamento. Ameaçou e cumpriu logo assim que me ouviu dizer quem era Deus.
Disse apenas que Deus não pertencia nem a bíblia, a igreja, ao Vaticano, a sacerdote nem a religião. Disse que o Deus verdadeiro era único e individual, pertencente apenas àquele coração que o aceitasse com tamanha devoção e fé que jamais outra força poderia suplantar. Esse Deus de cada um e em cada um é igreja, bíblia, religião e tudo. E não somente o que freqüenta o templo o tem, mas também aquela que é chamada prostituta.
Fui excomungado por isso. E o pior é que foi esse mesmo padre que veio aqui, forçadamente, dizer as mentiras que disse instantes atrás. Agora certamente estará tentando que o meu passaporte para o céu seja negado. Problema dele, se bem sei o que mereço ter.


Poeta e cronista
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Estrada de flores (Poesia)

Estrada de flores



Meu amor não esqueço
do sol cortando a pele
do açoite do vento no olhar
dos labirintos medonhos
das distâncias espinhentas
e dos nossos pés e mãos
sangrando incontidamente
marcas das dores do tempo
mas tudo isso passou
foi de um dia meu amor

vencemos as dificuldades
calaram-se as brigas ciumentas
não se ouve mais o grito
dizendo da certeza incerta
que cada um queria manter
apenas para dizer o indesejado
e tudo porque meu amor
soubemos procurar outra estrada
uma estrada sem medo e rancor

de mãos dadas pela estrada
a cada passo um ramalhete
um perfume que chega no ar
um canto de passarinho
uma paz no correr e andar
porque agora merecemos
da vida sentir seus sabores
porque soubemos construir
essa linda estrada de flores.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: QUENGA VELHA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: QUENGA VELHA

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Essa é a história de Cabaça Oca, nome de guerra mais recente da velha prostituta que agora vive a lamentar a passagem do tempo, a chegada dos anos. E mais, muito mais...
Nascida Beloures Miraflores, estrangeira chegada ainda novinha ao país, assim que começou no ofício da raparigagem ganhou uma mala de vestido novo do Coronel e o encantador apelido de Jardim das Delícias. Ele, o velho latifundiário raparigueiro, mantedor do luxo da jovem rapariga, se sentia no direito de nomeá-la como quisesse. E até que ela achava atraente ser chamada assim.
O velho bateu as botas e ela foi escorraçada da cidade pela família do defunto. Sem um tostão, se viu forçada a bater às portas do famoso cabaré da Madame Sofie, a maior cafetina que já existiu nesse mundo. Mulher de amizades grã-finas, poderosas e importantes, cuidava com cuidado da galinhagem mais novinha, que aveludava com cuidados para depois oferecer a peso de ouro aos barões e políticos. E assim a jovem prostituta, agora denominada Fogo Ardente, abriu muitas vezes as pernas apenas para a visão aflitiva dos brochas endinheirados.
Passou apenas cinco anos ali, pois na política sexual da velha cafetina, moça com mais de vinte e três já estava envelhecida demais para continuar servindo como aperitivo de alta lucratividade. E teve de sair novamente sem nada, sem nenhum tostão, apenas com o rebolado e a má sina de sua profissão. E foi seguindo de cabaré em cabaré, saindo de um pior para outro prior ainda. E já não tinha escolha, não podia mais escolher cliente nem valorizar o seu corpo. Passou a abrir as pernas por qualquer vintém.
Já sem clientes, passou a ser chamada de Resto de Feira. Um repolho velho, um bago de jaca, uma manga sem serventia, uma banana jogada. Mas fruta sem serventia mesmo, parecendo imprestável até aos olhos dos bêbados e esfomeados do sexo. Queria um afago, não tinha; queria uma companhia, não tinha; queria ser amada uma vez na vida, mas já parecia distante demais do amor. Queria morrer e não morria.
Morando sozinha num quarto que era sala, cozinha, banheiro e tudo, já estava com cinqüenta anos. Exatamente isso, uns setenta anos ou mais. Não cinqüenta ou setenta, mas uns oitenta. Acabada, com as feições envelhecidas, sentava ao entardecer numa cadeira de balanço que colocava debaixo de um pé de tamarineiro e ficava pensando na vida, principalmente no que não tinha feito.
E chamava pelo filho pra tomar banho, gritava pelo esposo dizendo que a comida estava deliciosa na mesa. Dizia que ia preparar doce de coco e bolo de ovos porque dali a pouco as amigas chegariam para conversar amenidades. Arrumava o quarto, a penteadeira, se enchia de perfumes, experimentava os batons presenteados. Limpava a casa toda, colocava música na vitrola, abria as janelas para o ar entrar, cantava alto de felicidade. E que felicidade essa vida.
E que felicidade aquela vida que jamais havia tido. E agora ali, com a insanidade tomando-lhe o pensamento, roubando o juízo, era apenas o resto do resto da Cabaça Oca. Talvez apenas uma mulher e seu destino de solidão.  




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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

LUA CHEIA (Crônica)

LUA CHEIA

                                          Rangel Alves da Costa*


Dizem que num lugarejo distante, lá perto do meio do mundo, o cotidiano das pessoas era dividido em duas situações diferentes: antes e depois da lua cheia surgir.
Lua cheia, como todo mundo sabe, é aquela fase onde a lua reflete sobre a terra na sua totalidade. Na lua cheia o disco lunar está completamente iluminado. E a força desse clarão refletido na terra traz consequencias imprevisíveis.
Quando a lua está totalmente iluminada os corpos também se acendem, se enchem de chamas. Os pensamentos afloram, os desejos se tornam incontidos, a sexualidade se torna vulcânica. Os lobos uivam nos seus montes, outros animais desandam a fazer besteiras, a pedra abre os olhos para chorar de saudade, as árvores começam a desesperadamente voar. Os passarinhos se escondem. Dizem...
Na lua cheia os gatos não miam, mas falam gritando, com gemidos roucos, chamando a gataria para compartilhar safadezas. Dizem que o vento perde a noção de direção, se torna ventania e vai entrando pelas janelas das moças solteiras. E a primeira coisa que faz é jogar os cobertores pelo ar. Quando as virgens se alvoroçam já é tarde demais. As portas e janelas batem como se quisessem sair do lugar. Muitos pedem para ser acorrentados antes dessa fase da lua chegar.
Os doidos enlouquecem ainda mais, gritam, urram, soltam grunhidos terríveis. Querem voar, querem sumir, querem apaixonadamente amar a lua. Sobem nos montes e de braços abertos imploram para que o cavalo de São Jorge venha buscá-los. Os cemitérios se agitam, as catacumbas se abrem, defuntos passeiam com flores mortas nas mãos. Os cachorros se engatam na voracidade do sexo. Muita viúva já foi vista completamente nua e correndo faminta atrás de macho.
Mas no lugar descrito acima, aquele em que a vida se diferenciava entre o antes e o quando a lua cheia chegava, a situação era ainda mais vexatória e complicada. Difícil descrever tanta insanidade, tanta volúpia, tanto afloramento de prazeres, tantas revelações em pessoas insuspeitas, tanta loucura mais louca ainda, tanto festim desajuizado, tanto tudo.
Um dia antes de a lua surgir repleta e misteriosa, naquele brilho estonteante de realmente ensandecer qualquer cristão, duas beatas corriam para a igreja e imploravam de joelhos para que fossem amarradas ao pé da cruz. Tinham medo que o ouro lunar despertasse os desejos escondidos que tanto sonhavam em praticar. E se o padre aparecia, tentavam se soltar a todo custo e se meter debaixo da batina do homem.
Este, o padre, nem se fala. Durante o período de lua cheia não saía da igreja de jeito nenhum, trancando-se na sacristia a rezar incontidamente para aliviar os tantos pecados que carregava nas costas e, logicamente, por debaixo dos paramentos. Mulherengo que só, se sentia ainda mais possuído pelos desejos incontidos em fazer outras confissões amorosas às sonsas beatas e ás pecadoras que chegavam ali com cara de santa. E às escondidas todas iam sendo abençoadas no antro que era a sacristia.
O doido subia no telhado e lá ficava gritando enciumado, perguntando se a lua de mel havia feito amor com outro. E dizia que ia pegar uma escada que desse pra chegar até lá e acabar de vez com aquela história do dragão que nela fazia moradia. Chamava São Jorge de corno e dizia que a lua era dele, só dele. Mas com a doida era diferente, pois ficava numa sanidade tamanha que chegava a temer por aquela maluquice toda do povo em polvorosa.
Debaixo do clarão da lua rapaz virava boiola, aviadado paquerava as mocinhas, o mais sisudo dos homens saía pulando corda, rodopiando com bambolê e dando incontidas gargalhadas. A doceira colocava dois quilos de sal na cocada, o carteiro chorava lendo as cartas de amor de canto a canto da cidade. Uma solteirona esperta, mulher de mais de sessenta, fugiu da cidade no dia anterior e só apareceu por ali pra fazer o rapaz inocente assinar papel de casamento. Quando a lua partiu já havia acontecido a lua de mel.
Creio que eu não precisaria estar lá para enlouquecer mais ainda. Reconheço-me insano na mesma proporção da insanidade daqueles que, sem razão, amam demais. Mas não atiro pedras. Mas canto meu amor na janela e jogo flores.




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Aflição (Poesia)

Aflição



Bicho arriba
da ribanceira do ribeirão
não tem mais lama
não se bebe a sequidão
se muge no tempo
sem haver consolação

vou fazer uma promessa
sei mais que rezar oração
acendo vela na nuvem
pra chover no sertão...

catingueira torta
parecendo árvore morta
não vi o velório da mata
mas vi tristeza que corta
o coração que se maltrata
a chorar de revolta

vou fazer uma penitência
vou ajoelhar pelo chão
sentir o espinho na pele
sacrifício e devoção...

menino não chore não
amanhã será outro dia
coma esse resto de pão
esqueça tanta agonia
logo se ouvirá um trovão
na chuva que se anuncia

vou abrir meu oratório
preciso do São José
pela estrada em ofertório
vou carregar a minha fé...


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: AS VISÕES DO CEGUINHO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: AS VISÕES DO CEGUINHO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Quem achar que estou mentindo, inventando ou coisa parecida, então que ache por conta própria, pois o acontecido que vou relatar agora me asseguraram que realmente ocorreu lá pelas bandas dos pés de serra sertão adentro.
Não havia sido doença nem nada que tivesse acontecido depois do menino crescido. O rapazote era cego de nascença mesmo, já tendo vindo ao mundo sem ver a luz do dia e nesse breu doloroso passou a viver daí em diante.
O nome dele era... Ora, mas deixe isso pra lá. Todo mundo o chamava de ceguinho mesmo, então pronto. Era ceguinho pra cá e ceguinho pra lá, e ceguinho que era assim também ficou conhecido. Mas alguém de negrume no olhar que parecia ver muito mais do que certas pessoas na cidadezinha onde morava.
Verdade é que o ceguinho só andava com um pequeno bastão para ir ciscando por onde passava sem estar derrubando tudo pela frente. Mesmo rapazote, a mãe gostava de dar comida na boca, vestir sua roupa e guiar nas suas necessidades. Passeavam juntos e davam longas caminhadas pelos arredores do lugar. O problema é que toda vez que descrevia uma paisagem, um passarinho, alguma coisa bonita, começava a chorar porque o seu filho não podia compartilhar daquelas visões.
Mas o ceguinho tinha outras visões, e somente aos poucos isso foi sendo descoberto, ainda que inicialmente ninguém acreditasse. Era realmente difícil compreender porque uma pessoa nascida completamente cega e assim permanecesse, pudesse, por exemplo, apontar pra uma loca de pedra e dizer que ali tinha uma cobra preparando o bote.
Sentado na cadeira de balanço colocada na calçada de casa ao entardecer, apenas ouvindo o barulho das reinações dos meninos jogando bola, muitas vezes gritava que um espinho havia furado a bola, que a trava do lado esquerdo estava maior do que a do lado direito, que tivessem cuidado com a roupa limpinha que fulana acabava de estender no varal.
Os meninos ouviam e ficavam sorrindo, zombando, até perceberem que tudo se confirmava. Um dia, após a brincadeira de bola, um dos garotos que estava mais que cismado com aquela história de o ceguinho estar vendo as coisas, decidiu ir até a calçada conversar um pouquinho com ele.
Chegou até ele, se apresentou, disse o nome e de quem era filho e perguntou se podia sentar ali um pouquinho, vez que precisava tirar uma dúvida muito importante. Assim, que o garoto ia sentar o ceguinho pediu para ficar do outro lado porque o chão estava sujo naquele lugar. E estava mesmo. O garoto olhou e ficou um tanto espantado. Em seguida foi logo dizendo que era sobre isso mesmo que queria falar. Então perguntou como ele podia ver as coisas se era cego.
E o ceguinho respondeu que não via nada, apenas sentia que as coisas aconteciam. E de volta perguntou pra que servia eles enxergarem tão bem dos dois olhos se não querem ver quase nada do que acontece ao redor.
Inusitadamente o menino respondeu que achava que era assim porque eles ainda não tinham aprendido a enxergar com os sentimentos.




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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

OS LAMBEDORES DE SAL (Crônica)

OS LAMBEDORES DE SAL

                    Rangel Alves da Costa*


Coloque a lenha, espalhe a madeira no forno, pise nas cinzas e experimente a quentura das brasas com a mão. A vida é assim mesmo, é trabalho duro, sacrifício, ferida no corpo e lanho na mão, espinho no pé e cegueira no olho, mas ainda está pouco, tem de seguir adiante, pois mais tarde o descanso lhe espera. E quando a noite chegar vai lamber o tijolo de sal que restou de ontem para dormir feliz.
Com cavalo faminto é melhor, pois o bicho fica grogue no estômago e na visão, e por isso mesmo vai correr mais, vai desembestar, vai cortar pedaço de pau que nem sente, ainda que o sangue jorre de suas ancas. Mas nem pense em parar, siga adiante, esporeie o bicho com mais força, faça com que ele sinta na pele a sua obrigação, o seu dever de ir entrar nessa mataria de ponta de faca e achar a rês braba do patrão valente, homem de chibata e chicote que não tolera ouvir que o animal se perdeu na mata. Por isso siga, e se o espinho de quipá feriu o rosto não foi nada, se o galho da catingueira lhe feriu o olho não foi nada, se recebeu uma pontada de aroeira no lombo, então é que não foi nada. Vá e só volte com a rês amarrada, no laço, ainda que você esteja completamente estropiado e o seu cavalo não mais sobreviva. Entregue o animal ao patrão que depois ele vai mandar você lamber sal, como faz todo dia.
Chame a mulher e pergunte se ainda resta um pouco de farinha, uma massa de milho ou um pedaço de pão. Certamente ela vai dizer que não, que tudo acabou já tem dois dias e que não suporta mais com a filharada chorando pedindo comida e o que pode fazer é enganar eles com pedaço de palma tirados os espinhos. Então baixe a cabeça e entristeça, peça à esposa pra fazer uma prece, pra chover logo ou pra arrumar uma esmola decente na cidade. Nunca se viu esmola decente, mas diga assim mesmo, diga que vai bater na porta daquele político que sempre aparece por aí em época de eleição. Se ele ganhou também com seus votos, então que agora dê ao menos uma feirinha de meio quilo de tudo. Deixe-aela orando e resolva não ir à cidade, pois é mais seguro conseguir alguma coisa caçando calango ou preá pelo mato do que qualquer coisa da mão de político eleito. Faça tudo pra conseguir alguma coisa pra enganar a fome dos meninos, mas quanto a você e a esposa têm de se contentar em mais uma vez lamber morros de sal na boca da noite.
O tempo está de fazer chorar, não chove pra mais de dois anos, não há mais alimento nem pra bicho nem pra gente. Olhar para o horizonte é encontrar apenas o sol mais quente do mundo, aterrorizante, abrasador; olhar para o descampado adiante é encontrar somente a poeira levantada pela ventania, tornando fantasmas os garranchos e folhagens que se movem ossudos por cima da terra morta. Não tem mais palma, não tem mais capim, não tem mais um gole de água no ribeirão, não há nem mais esperança. Se passar mais três meses assim vai se tornar insuportável continuar por ali. Vai ter que vender a terrinha, os utensílios que ainda guarnecem a casa, o pilão de socar café, o berrante bonito e de herança familiar. Tudo vai ter que ser vendido pra pagar a viagem no caminhão que passa por ali recolhendo todo aquele que não tem mais destino. Tanto trabalho pra nada, tanta esperança sem nada acontecer. Nem uma nuvem, nem um só trovão, nada do tempo fechar. O pior é que nunca teve tanta fome como tá agora e não pode fazer mais nada senão lamber a pedra de sal.
Nos sertões, na cidade grande, nessa vastidão de mundo e por todo lugar, sempre há alguém que sobrevive lambendo sal. Instante atrás e nesse momento tem gente lambendo sal, o que faz todo santo dia, coisa como destino, coisa como imposição de sobrevivência. E quanto mais pobre mais lambe sal, quanto mais trabalha mais lambe sal, quanto mais é explorado e submetido mais come sal. O sal é engolido por esse povo com uma voracidade tamanha que parece não querer deixar um tantinho sequer para o dia seguinte. Mas sabe que no dia seguinte terá muito mais sal pra lamber, pra engolir pra se fartar, pois lhe falta tudo menos o sal.
Mas, então, que tipo de sal esse povo tem de lamber todo dia pra sobreviver? Ora, o sal salgado mesmo, só que em barras do tamanho da precisão que tem e daquilo que nunca terá. Só mesmo o sal para salgar o corpo já apodrecido pelas humilhações da vida.



Poeta e cronista
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Vermelho de sol (Poesia)

Vermelho de sol



O tempo é assim
vermelho de sol
a vida com outra cor
parece ser incolor
bem diferente
do marrom ressequido
da terra desnuda
do amarelo desbotado
da manhã antiga
e sem outra cor
assim um branco de paz
ou um violeta de flor
para alegrar a feição
do meu triste sertão

quando chover um dia
vou pintar uma aquarela
com tanta cor na tela
que vão pensar
que o meu sertão é jardim
mas era assim
lembra não?
até o mês passado
antes da seca chegar
era assim
um jardim sem fim
era sim...


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: MANDINGA PRA NAMORAR

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: MANDINGA PRA NAMORAR

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
A solteirona não mais sabia o que fazer pra arranjar namorado. Um tipão, vistosa como era e ainda por cima cheia da bufunfa, até que muito homem vivia flertando na esperança de alguma resposta. Assim o problema não era falta de homem, mas daquele que ela cismou de querer como namorado, amante ou seja lá o que fosse.
Verdade é que estava apaixonada por um rapaz e pronto. Sendo assim, outro podia aparecer pintado de ouro que ainda assim ela nem olhava. Só havia um probleminha nisso tudo: o rapaz não queria nada com a solteirona. Por mais que ela enviasse presentes, até um cordão de ouro mandou, ainda assim ele vivia dizendo que antes morrer solteiro do que namorar com a dita.
Assim que soube da relutância do jovem, a moça ficou em tempo de se acabar. Chorou três dias e três noites, fez promessa pra Santo Antonio Casamenteiro e mandou fazer uma proposta que parecia irrecusável. Se ele resolvesse cair nos seus braços, com beijos, abraços, afagos e tudo mais que tivesse direito, ela daria o presente que ele quisesse, bastando responder com um sim e depois escolher.
Mas não teve jeito. Como resposta ele mandou dizer que só quando a vaca tossisse é que ele olharia na face dela. O que para todo mundo era um absurdo, para ela simplesmente chegou como esperança, pois viajou no mesmo dia para uma cidade onde havia veterinário e exatamente para saber se havia como ele fazer uma vaca tossir. Saiu de lá com a incumbência de comprar uma vaca e entupi-la de água gelada e sorvete. Problema sério pra resolver.
Antes de comprar a vaca para fazê-la gripar e depois começar a tossir, a já desesperada solteirona ouviu dizer que por ali, lá pelos escondidos da cidade, havia uma velha senhora, num misto de rezadeira e aprendiz de feiticeira, que bem poderia resolver seu problema. Segundo informaram, não havia pessoa mais capacitada nas artes da magia, das poções milagrosas e encantamentos para fazer com que o relutante rapaz caísse de joelho a seus pés.
Até que foi fácil encontrar o recanto da magia amorosa. A velha senhora disse o preço e o que precisava pra fazer o rapaz ficar apaixonado em dois tempos. Nunca havia falhado com mandinga pra namorar, tendo já casado gente e amarrado muitos outros para não separar. Então pediu uma fotografia dele, um fio de cabelo e um papel contendo o nome e o endereço.
Tudo providenciado, a mandingueira deu dois dias pra ele se achegar dela. Contudo, cinco dias se passaram e nada. Então ela foi reclamar e ouviu que estava precisando de outra coisa para o feitiço ficar mais forte. E pediu uma cueca dele. Arrepiada só em ouvir falar em cueca, disse que pagaria a alguém para ir procurá-la no varal. Dito e feito, pois depois de beijar a peça íntima mais de mil vezes, se encaminhou até lá para entregá-la.
Entretanto, mais dez dias se passaram e nada. Resolveu ir reclamar com a mulher e ouviu dela que havia encontrado uma solução para o problema. Se pagasse outra quantia, ela mesma o traria até ali para jogá-lo em seus braços. Então ela pagou mais que o dobro, toda esperançosa e já sentindo o corpo se encher de ardências.
Dinheiro na mão, a feiticeira disse só precisava de uma coisinha mais, e simplesmente que ela ficasse nuazinha como nasceu em cima de uma cama esperando ele chegar. Se ele gostasse do que ia ver então estava tudo resolvido, senão nem com milagre ia dar jeito. Então ela chorou mais dez dias e dez noites seguidas até enlouquecer e viver completamente nua na janela esperando ele passar.




Poeta e cronista
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domingo, 26 de fevereiro de 2012

SAGRADA TERRA DE HOMENS VALENTES (Crônica)

SAGRADA TERRA DE HOMENS VALENTES

                             Rangel Alves da Costa*


Por mais que os governantes pretendam desqualificar os sertanejos, impingindo-lhes desde algum tempo a mendicância, a ociosidade e o desapego às formas de luta pela sobrevivência, certamente que essas esmolas oficiais degradantes não conseguirão apagar a história daqueles que viveram e ainda vivem na sagrada terra de homens valentes.
Talvez, num falso romantismo bucólico-jeca-taturesco, continuem achando que o sertão e o sertanejo se bastam na sua insignificância de ser e existir. Manifestas atitudes de discriminações e preconceitos. Nada mais do que isso, porém sem esquecer do mais grave: o sertão tem que continuar existindo assim para justificar as esmolas eleitoreiras tão necessárias para a manutenção do poder.
Esse outro Brasil que pensa o sertão não é, verdadeiramente, o Brasil do qual o faz parte e reconhece seu valor, sua história, a dignidade e honradez dos seus homens. Basta virar um balaio de corruptos, ladrões da coisa pública, quadrilheiros e uma leva do que não presta, para ver se dele saem mais engravatados, políticos com ou sem mandato, ou sertanejos. Ainda assim querem que tudo de ruim esteja configurado na terra sertaneja.
A História, por mais manipulada que possa ser, ainda assim terá muitos resquícios de verdade. E é nos seus anais que constam as façanhas, revoltas e guerras nordestinas em nome de sua libertação, do jugo imperialista e da prepotência dos Coronéis. Antônio Conselheiro, Zumbi dos Palmares, Paulo Freire, Joaquim Nabuco, Luiz Gonzaga, Lampião, Jorge Amado, Câmara Cascudo, Chico Anísio, Graciliano Ramos, Gilberto Freire, Ariano Suassuna, Irmã Dulce, Padre Cícero, só para citar alguns, são nordestinos.
Mas é noutra classe de nordestinos que reside a maior força de valorização da raça sertaneja. Falo do homem matuto, do homem do campo, daquele caipira, ser do mato e do tempo, filho da terra esturricada e caminhante nas veredas de sol maior. Digo sobre aquele que a caneta Euclidiana tão corajosamente reconheceu como sendo um forte. E cito também aqueles beiradeiros que Donald Pierson encontrou às margens do Velho Chico para entender e descrever a sociologia de um povo que se confunde com a luta pela sobrevivência.
Tendo como cenário e paisagem o contraste que a criação permitiu, no mesmo céu que voa a jaçanã e a sabiá há o azul sem nuvem e sem esperança de chuva; na mesma mataria onde se esconde o preá e o teiú há a feiúra das árvores mortas, das folhagens acinzentadas, dos troncos fragilizados, dos galhos retorcidos; debaixo da mesma luz do luar tão bonito se ouve o choro da criança faminta, o aperreio do pai que não sabe mais o que fazer. Mas também se ouve o grito silencioso da oração, da prece, da fé inabalável de um povo que faz de cada tapera um templo divino.
Nesses sertões que se espalham em quadrante, tantas vezes tristes demais de compartilhar e doloridos demais de se viver, estão os caminhos dos vaqueiros, dos aboiadores, dos pequenos agricultores, dos comboeiros, das lavadeiras, das fateiras, dos feirantes, das parteiras, dos plantadores de sonhos e coletores de esperanças. Tudo em meio às secas, esturricamentos da terra, suores cortantes na pele, horizontes abrasados que se avolumam em quentura a cada dia que passa sem chuva. E tudo é sentido, dolorosamente sofrido, mas jamais dito que amanhã não será um dia melhor.
Lá, nesse sertão de meu Deus, o povo pobre muitas vezes se alimenta da dignidade. Não se farta de caviar comprado com dinheiro público, não come a lagosta da licitação fraudada, não bebe o uísque da verba desviada, não se empanturra de vinho importado adquirido de lobistas. Muitas vezes não há nada cozinhando no fogão de lenha, as panelas estão vazias, falta até água para beber. Falta tudo, mas sobra honradez, caráter, decência, seriedade.
E só mesmo numa sagrada terra de homens valentes para a vida ser vivida em plenitude, em meio à alegria e ao sofrimento, para que o sertanejo conheça suas fronteiras e seus limites e não mais se assuste ou se espante com aquilo que para outros seria igual à morte.




Poeta e cronista
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Ritual (Poesia)

Ritual



Uma janela aberta
uma folha de vento
uma mão estendida
um beijo na folha
dois nomes escritos
dois dias guardados
dentro de um livro
de poesias amorosas
depois solta a folha
no vento da tarde
e fica na janela
esperando ele chegar
pela força da magia
do encanto do amor
certamente ele virá

mas se o tempo passar
e nada do amor acontecer
será preciso um ritual
ainda mais misterioso
mais impactante e forte
que é encontrar coragem
chegar diante do outro
e simplesmente dizer
que ama...


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O AMOR NA SIMPLICIDADE

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O AMOR NA SIMPLICIDADE

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Hoje não, que quase não existe mais namoro. Em muitos lugares e perante os meios ditos avançados, primeiro se experimenta a fruta pra depois saber se quer conhecer o nome do outro, o que faz e se vale a pena continuar ficando. Isto mesmo, ficando, pois agora é ficar e não mais namorar.
Quem age assim nem imagina o verdadeiro encanto que é namorar, o prazer existente no pensamento saudoso pela menina da mesma rua, o quanto é gratificante esperar aflito o tempo passar para ir ao encontro do outro coração tão amado. Mas isso são coisas de outros tempos, um tempo de amor verdadeiro, de promessas e esperanças, de respeito e consideração pelo desejado.
Houve um tempo de amores nas janelas, em pé na porta de casa, sentados no banquinho do jardim, de cartas e bilhetinhos, de flores deixadas no umbral ao amanhecer, de rimas e versos deixados cair pelo lado de dentro da janela do quarto. Um tempo de amor com flores, com palavras doces e singelas, de maçã de amor e sorvete de goiaba com mangaba, de pirulito no parque, de descobertas e aventuras.
Um tempo de amor apaixonado, de serenatas ao luar, de flores vermelhas arremessadas, de violões apaixonados, de vozes se fazendo em cantoria para que as declarações musicais chegassem aos ouvidos daquela que tremia do outro lado da cortina. Um amor sem luxo e sem exageros, mas tão amado que se aperfeiçoava na sua simplicidade.
E alguém chegava levando na mão uma cesta com frutas fresquinhas, talvez carambolas e jabuticabas, araçás e mamões, goiabas e cajus. Colorido cheio de amor, paixão olorosa com sabor da estação. Não dizia quem havia mandado entregar porque junto ia um bilhetinho com um versinho, uma rima dizendo que saudade de sofrer se acaba ao entardecer. Era a senha, o sinal, o convite...
E um buquê aparecia inocentemente na janela. Sem que ela tivesse visto ou soubesse, mas alguém havia deixado ali rosas, orquídeas, violetas, girassóis, margaridas, flores do campo. Talvez só uma rosa, a mais bela que havia naquela manhã; talvez apenas algumas pétalas do que pôde colher com tanto amor. Mas não fazia diferença se um ramalhete ou apenas uma flor vermelha, se o amor não se demonstra em quantidade, mas sim em verdade.
E de repente aparecia perto da janela uma inocente folha ou um bilhetinho embrulhado dizendo absolutamente tudo: “Como te amo, amor, amor!”. Um versinho copiado de um poeta dizia: “Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder...”.
E juro que houve esse tempo. Um tempo de amor na simplicidade de infinitamente amar.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A MAIS BELA DE TODAS (Crônica)

A MAIS BELA DE TODAS

                                Rangel Alves da Costa*


Incontestavelmente, sem a menor dúvida, ela é a mais bela de todas. Não somente a mais bela, como também a mais atraente, a mais agradável, aquela que proporciona prazer pela presença, é um encanto para os olhos e um bom sentir no coração.
Diante de tais afirmações, creio nem ser necessário esmiuçar sobre os seus dotes físicos, intelectuais, humanitários, apenas dizer em ligeira síntese o que é capaz de torná-la a mais bela de todas.
Em primeiro lugar, ela tem o dom especial de reconhecer o outro, jamais deixa de cumprimentar e nem esquece o nome. Ao citar o nome, logicamente que o outro se sente importante e fica receptivo a tudo o que ela quiser falar em seguida.
Em segundo lugar, ao se dirigir ao outro para falar ou ouvir, jamais baixa o olhar, leva-o para outra direção ou procura fingir que nem sente aquela presença. Encarando de olho a olho, de semblante a semblante, ela passa uma sinceridade pouco vista nas outras pessoas.
Em terceiro lugar, porque ela sabe ouvir, falar, não atropela as considerações do outro, espera o seu momento certo para arrazoar. E ao ponderar, jamais altera a voz nem excede nas suas palavras. Se o outro procura exagerar, gritar, dar um tom mais agressivo ao diálogo, ela simplesmente dá o assunto por encerrado e pede licença para sair. E sai.
Não permite que o diálogo se transforme em briga ou conflito, procura sempre colocar a conversa dentro dos limites do que seja importante ser tratado ali. Por consequencia, não tolera e nem admite que o outro faça de um momento de descontentamento a oportunidade para inventar, mentir, procurar ferir gratuitamente.
Não fala de boca cheia e nem enche demais a boca em qualquer situação. Se por acaso estiver se alimentando quando o outro chegar e a ela se dirigir, acena pedindo um momento e somente depois que estiver com a boca totalmente livre se dirige ao interlocutor.
Preza e prega a boa educação nas relações sociais e até no meio familiar e perante as pessoas mais íntimas. Não utiliza palavras chulas, e com isto já deixando claro que não aceita ouvir baixarias; não faz brincadeiras de mau gosto porque sabe respeitar o sentimento do outro, sua privacidade e sua honra; não pergunta além do necessário e jamais procurar entrar na seara daquilo que somente a pessoa deve resguardar.
Por ser adepta da boa educação, cumprimenta todos os conhecidos, sempre faz uma reverência especial aos mais velhos, está sempre disposta a ajudar no que for necessário. Corre ou grita para avisar quando vê alguém em perigo, se dirige até o local para prestar a assistência que for necessária e depois disso ainda procura acompanhar seu estado de recuperação, muitas vezes nascendo daí uma grande amizade.
Gosta de reafirmar as amizades oferecendo presentes aos amigos, mas nada de brindar com coisas caras e luxuosas. Suas lembrancinhas se resumem a pequeninas conchas do mar, diademas artesanais, folhas secas envernizadas e com poemas que ela mesma escreve, belas quinquilharias que encontra nas feiras de artesanato, incensos, um cartão, uma fotografia.
Escolhe dias em finais de semana especialmente para prestar serviços comunitários. E assim sobe favelas, visita morros, caminha por vielas empobrecidas, entra em pequenas salas, se dirige a pátios e ao sombreado de arvoredos para ensinar aos mais velhos os deliciosos mistérios da leitura e da escrita, para brincar de roda com crianças, para dar palestras sobre assuntos interessantes.
Por ser a mais bela de todas, gosta de andar toda pronta, perfumada, arrumada. E toda pronta com um vestidinho simples e folgado, uma calça jeans e uma blusinha, tendo aos pés uma sandália sem enfeites ou simplesmente uma havaiana, que é do que gosta mais. Sem usar qualquer maquiagem, solta o seu cabelo moreno e não há deusa do entardecer mais bela. O vento e a brisa lhes chegam e não passam, ficam rodopiando ao redor para sentir seu doce perfume de alfazema do campo.
Já escreveu um livro que continua guardado. Trata sobre a vida, os sonhos e os planos de uma menina de quinze anos, doce como a flor da mais bela estação, um anjo de candura e beleza, de quinze anos e de nome Brisa. Ou outro nome, que bem pode ser o seu.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
  

Contemplação (Poesia)

Contemplação



A minha alma é mítica
e se desprende e vai
e se eleva ao estado
de sua silenciosa alma
ao mesmo puro estágio
do que imagina e sente
por isso de repente
sou eu ainda em mim
e já estando em você
por isso de repente
você já estará dividida
entre a mulher que era
e a outra que é minha
numa só sem ser tanto
porque também sou parte
e não serei mais senão
sua mente e seu espírito
já afastado por contemplação
do meu corpo e alma
que já se foram em doação
ainda que os tenha
compartilhando seu coração.


Rangel Alves da Costa