MONÓLOGO DO MORTO
Rangel Alves da Costa*
Dizem que morri, fui apenas lamentado por corações verdadeiros e pranteado por tantas pessoas falsas que se juntaram ao meu redor para a despedida. Naqueles um adeus de verdade, nestes um suma daqui para sempre.
Lembro das quatro velas acesas, imensas daquelas de sete dias. Alguém deu a ideia de acender somente dois cotocos de velas que encontraram pelas gavetas. Funeral de pobre mesmo, como sempre fui, numa sala sem reboco, num chão sem ladrilho, com padre chegado ali forçadamente, puxado à mão pela beata minha velha conhecida.
Disse algumas palavras para justificar o que seria uma missa de corpo presente, e pronto. E nas palavras o que se pode dizer de todo mundo que não existe mais: era uma pessoa tão boa, tão prestativa, bom amigo e irmão, cuidadoso no trato com as pessoas, sem ter vícios que o desnorteasse dos caminhos da responsabilidade...
Nesse ponto, quando o velho sacerdote falou da minha pureza e da negação aos vícios, mesmo de olhos fechados vi pessoas sorrindo, cochichando, tendo que correr para fora para não cair em gargalhada. Mas que povo mais besta, mais ignorante, parecendo que não se olhava no espelho.
Ora, nunca neguei meus vícios a ninguém, e se o que faço possa ser considerado vício. Creio que não, pois diante de tantos vícios pesados envolvendo drogas e outros vícios humanos envolvendo desonra e imoralidade, até que sou de uma pureza a toda prova.
Nunca vi vício algum em beber cerveja, cachaça e uísque, e às vezes tudo na mesma ocasião. Muito menos fumar cachimbo, cigarro e charuto. Gostar de cabaré nunca foi vício e muito menos de namorar. Por isso mesmo que não precisava que ficassem zombando pelas palavras do sacerdote.
Se fui verdadeiramente viciado em uma coisa, esta foi gostar de viver caminhando sempre pelo lado contrário de tudo, desafiando os perigos, escrevendo meu próprio livro de conduta. Jamais aceitei imposição de quem quer que fosse, por mais rico ou metido a besta, nunca baixei a cabeça nem aceitei nada forçadamente por medo.
Pelo contrário. Até horas atrás, quando ainda estava vivo, continuava dono absoluto do meu passo e do meu ideário. Partidário contra as injustiças sociais, ainda assim nunca levantei uma bandeira de partido político porque seu discurso mentiroso dizia que era de esquerda. Esquerda uma ova, pois quando alcançam o poder todos, indistintamente, se tornam demasiadamente tortos.
Li Marx, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Bakunin, Arendt e outros do mesmo modo que li Lewis Carol, Tolkien, Whitman, Drummond, Pessoa, Jorge Amado. Tudo pelo prazer da leitura e do conhecimento, nada mais do que isto. Se eu levantasse desse caixão e dissesse, talvez vocês diriam que era mentira minha, mas já chorei lendo aqueles romances infanto-juvenis de José Mauro de Vasconcelos. Que saudade de Rosinha, minha canoa, de Meu pé de laranja lima...
Gostava, não vou negar agora só porque logo mais estarei tendo o meu passaporte avaliado para saber para qual lado posso seguir, do pecado e de pecar. Mulher casada já foi mais casada comigo do que com os seu maridos corneados. Escrevia cartas de amor para meus amigos entregarem às suas pretendidas, mas quem as encontrava nos escondidos dos cemitérios e dos bequinhos era eu.
Certa vez travei uma longa discussão com um padre sobre a igreja e a existência de Deus. Foi a primeira das tantas vezes que fui excomungado. Provei ao homem que igreja e cabaré são as mesmas coisas e que prostituta não se diferenciava de beata. Ora, eu disse, a igreja é apenas uma construção que precisa verdadeiramente alcançar o fim a que se destina, através do exemplo maior dos seus sacerdotes, padres e sacristãos. Mas o que eles fazem senão denegrir a imagem do templo religioso?
Uma igreja que se respeita cultua a palavra do Senhor e segue os seus mandamentos. E não me parece algo respeitável um templo onde um padre raparigueiro ou pedófilo se reveste de paramento para falsear a palavra sagrada. Do mesmo modo aquelas sonsas que chegam por ali cheias de pecados e ainda assim se acham devotas disso ou daquilo. Em primeiro lugar sejam devotas de si mesmas, respeitando-se, deixando de trair os maridos, deixando de viver para a mentira e a falsidade.
Conheço cabaré com gente mais religiosa do que aquelas que freqüentam assiduamente os templos. Os padres que freqüentam ali às escondidas também sentem isso, tenho a máxima certeza. E porque disse essas verdades o homem me ameaçou de excomungamento. Ameaçou e cumpriu logo assim que me ouviu dizer quem era Deus.
Disse apenas que Deus não pertencia nem a bíblia, a igreja, ao Vaticano, a sacerdote nem a religião. Disse que o Deus verdadeiro era único e individual, pertencente apenas àquele coração que o aceitasse com tamanha devoção e fé que jamais outra força poderia suplantar. Esse Deus de cada um e em cada um é igreja, bíblia, religião e tudo. E não somente o que freqüenta o templo o tem, mas também aquela que é chamada prostituta.
Fui excomungado por isso. E o pior é que foi esse mesmo padre que veio aqui, forçadamente, dizer as mentiras que disse instantes atrás. Agora certamente estará tentando que o meu passaporte para o céu seja negado. Problema dele, se bem sei o que mereço ter.
Poeta e cronista
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