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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: DOIDO VARRIDO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: DOIDO VARRIDO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Tem gente que acredita que quando a pessoa estuda demais fica meio variada, um tanto afetada da bola, maluca mesmo. Não sei até que ponto isso pode ser verdade, mas também não duvido que uma pessoa que não faz outra coisa na vida senão estudar, pesquisar, buscar explicações para as causas primeiras das coisas, continue realmente normal como as demais pessoas.
Verdade é que desde meninote que o agora rapaz não fazia outra coisa na vida além de estudar e estudar. E estudava dia e noite. Dizem que comia com um livro na mão, tomava banho fazendo conta de somar, de dividir e multiplicar; dormia falando em regras gramaticais, pleonasmos, sintaxes, metonímias, hipérboles e o escambau. Não havia Aurélio nem Houaiss mais completo que ele.
Quando passou dos quinze anos ficou pior. Logo se tornou mestre em latim, em grego, iídiche e até esperanto. Inglês, francês, alemão e espanhol eram fichinhas pra ele. Difícil de se acreditar, mas por mais que soubesse tudo da língua portuguesa, de vez em quando derrapava dizendo “nóis foi”, “a gente vamos”, “uma ruma de duas pessoa”.
Arranjou uma ferrenha briga com o professor para mostrar que triga era a fêmea de tigre. Escreveu uma dissertação com mais de duzentas páginas intitulada “A hiperbólica epidérmica do hipotálamo do hipopótamo”. Traduziu a Bíblia para a linguagem sem sinais nem letras e depois mandou o sacerdote ler assim o Cântico dos Cânticos na missa. O religioso rumou o livro santo na cabeça do rapaz e foi a maior confusão.
Dizem que foi somente depois desse baque na cabeça que o juízo do estudioso desandou de vez. De vez em quando era visto completamente nu, tendo sempre um livro à mão, em cima de uma pedra grande que ficava nos arredores da cidade. Disse que estava recebendo o espírito de Gregório de Matos e por isso mesmo ria escrever um longo poema satírico dizendo os nomes e os podres da nobreza do lugar.
Assim que o escrito ficou pronto mandou tirar cem cópias e distribuir pelas ruas. Madames foram acometidas de chiliques, desmaios afrescalhados e até enfermas de verdade. A esposa de um vereador, que era amante de um farmacêutico e de mais de vinte clientes da farmácia, bateu as botas quando se viu jogada no fundo do poço. Envergonhados, muitos maridos deixaram a cidade às escondidas para não mais voltar. Teve um que encomendou a morte do poeta safado a um jagunço afamado.
O jagunço seguiu em direção à pedra onde ele estava inteiramente nu fazendo a sua leitura. Achou que seria fácil demais. Apontou a arma e atirou, só que bem no momento em que o rapaz sacudia o livro para tirar umas letras que segundo ele estavam demais ali. A bala bateu no livro e resvalou, tomando outra direção. Mas o maluco, cheio de letras nas mãos, arremessou-as para bem longe sem saber aonde iriam cair.
E o jagunço morreu ali mesmo, engasgado com as letras jogadas pelo outro e que acertaram bem na sua boca entreaberta.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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