SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de julho de 2018

A VIDA DOS SANTOS



*Rangel Alves da Costa


A santificação nada mais é que o reconhecimento da igreja pelas ações terrenas de mulheres e homens. Ninguém é santificado apenas pela obtenção da pureza, mas exatamente pela força e sentido em que se deu a separação entre o profano e o sagrado.
Ninguém já nasce santificado. Pode até nascer já divinamente predestinado à santificação, mas passando pelos mesmos atributos e forças existenciais do homem comum. O santo de agora foi um menino, foi uma menina, teve percurso na vida.
O santo chorou enquanto criança. O santo sentiu fome e sede. O santo correu descalço pelos descampados. O santo se fez traquina, teimoso, difícil de lidar. O santo comeu barro da parede, atirou pedra no gato, amarrou o rabo do cachorro. O santo foi pessoa comum.
O santo um dia se enamorou, beijou o lábio de alguém, sentiu prazer, praticou sexo. Sim, pois o santo nunca esteve impedido de fazer o que bem entendesse perante sua idade, propensão ou prazer. Até mesmo errou, pecou, praticou o socialmente inaceitável. Ora, o santo foi gente como gente comum.
Contudo, indaga-se: e quando o ser comum, a pessoa qualquer, passa a ser santo? Não há um instante onde se possa dizer que houve a separação entre o homem e o santo. Tudo nasce e envolve uma construção. Exatamente quando o ser humano vai trilhando o caminho que Deus espera de todos: ser sua imagem e semelhança.
Vai chegando um momento na vida em que a estrada humana vai sendo trilhada de modo diferente do costumeiro. A pessoa percebe que aquele seu passo não levará a lugar algum. Pensa e repensa suas ações e, por fim, escolhe para si outro destino, ainda que seja incompreendida ou afastado ou recusado pelos demais.
Quem sabe, talvez, se em certa altura da vida a luz divina não lhe recaiu como um chamado? Talvez já estivesse mesmo predestino a seguir outros passos, a fugir das impurezas e do profano, para buscar a pureza e o sagrado. A verdade é que um novo rumo na vida vai tornar aquela pessoa comum em um ser tomado de atributos sagrados.
Tomado de atributos sagrados, mas não de hora para outra. Tantas vezes, após erros e mais erros, ou mesmo após o mundanismo na vida, a pessoa vai sentindo a necessidade de tornar a feição de dor em face de amor. E então, a partir da abnegação e da luta para sempre trilhar os ensinamentos sagrados, a pessoa vai encontrando uma purificação da própria que se eleva a cada gesto e a cada passo.
Também os sofrimentos, as torturas da alma, os degredos do espírito, os exílios do ser, tudo será recompensado se as tristezas passadas adiante não sirvam como vingança ou lição do mal pelo mal sofrido. Significa dizer que mesmo a dor e o sofrimento, ao invés de endurecer a alma e o coração, apenas preparam o ser para a benevolência.
Há, pois, um limite entre a estrada do homem e a estrada santa. A estrada do homem comum e o caminho do bem, da abnegação, da benevolência, do humanismo. Quem ultrapassou aquele primeiro caminho e no novo passo sentiu a necessidade de servir ao bem e às boas causas, certamente se aproximará da santificação.
Desse modo, os santos possuem suas histórias marcadas pela abnegação e pelo amor aos ensinamentos cristãos. E por que tanto amaram e obedeceram aos ensinamentos sagrados, e por que sofreram por manter viva a chama da fé, mais tarde passam a ser reconhecidos como mártires da fé.
Algo faz lembrar aquele homem que abdicou de toda riqueza e de toda mansidão da vida para cruzar caminhos em busca de fazer o bem e ajudar o próximo. Ao invés de gritar para o próximo falava com os bichos e os pássaros, ao invés dos mundanismos procurou viver o silêncio e a brandura dos justos de alma e coração. E foi santificado.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Poço Redondo, no sertão sergipano, um lindo cartão postal!




Meus amigos e eu (Poesia)



Meus amigos e eu


O calango viu
quando entristeci
no alto da pedra
balançou a cabeça
e também chorou

o passarinho viu
quando eu chorei
silenciou o canto
pousou cabisbaixo
e também sofreu

e eu ali no tempo
mirando horizontes
com saudade tanta
que nem avistei ali
o calango e o pássaro

depois da ventania
e que tudo passou
o calango correu
e o pássaro voou
eu sorri por dentro.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a lenda da moça nua



*Rangel Alves da Costa


Era uma vez... Assim sempre começavam a contar a história da moça nua. Então vamos a ela. Era uma vez uma moça que sempre aparecia nua, completamente nua, e somente perante os homens. Onde houvesse mulher ela não aparecia de jeito nenhum. Ninguém sabe o motivo. Inexplicável também que ela já tivesse aparecido perante algumas ditas mulheres. Assim já aconteceu com Tonha Três-oitão, Maria Pezão e Carmosa Barbuda. Segundo Bastião Taquara, essas três eram mais homens do que muitos machos. Mas deixe isso pra lá. A verdade é que depois da boca da noite, assim que a lua começava a andejar, ela aparecia num canto e noutro. O homem sozinho e do nada aparecia aquele vulto que depois se transformava na mais bela das mulheres. E nua, completamente nua. Antes disso, contudo, o homem sempre sentia alguma coisa diferente acontecendo. Sentia um calor subindo, um despertar prazeroso inexplicável, uma vontade danada de mulher. Era sinal que ela ia chegando. Os mais velhos diziam que aquela história só podia ser de alma penada. Tia Cocota dizia que não passava de um algum fantasma de quenga nova que voltava para atiçar a safadeza dos machos. Já a Velha Totonha dizia que não era alma penada de jeito nenhum, mas alguma safada que não tinha o que fazer e tirava toda a roupa pra ir atrás de homem. E ajuntava: “Veja se ela aparece pra homem com mulher de lado e essa com um cabo de vassoura na mão?”. Sabendo dessa história, um dia Porcina se vestiu de homem, procurou um lugar solitário onde ela pudesse aparecer, e então se pôs a assobiar com um cigarro à mão. De repente sentiu alguma estranha se aproximando, se aproximando e se aproximando mais. E um calor lhe subia, um comichão lhe tomava, uma coisa estranha demais lhe acontecendo. E aquela vontade danada de ser possuída. Mas não pode, pensou ela. Não pode por que a tal moça nua não pode provocar em mim essa vontade toda de fazer safadeza. Então se virou. E quando se virou avistou um negrão de mais de dois metros de altura e completamente nu. Quase gritou pelo restante que avistou. Mas calou e disse: “Ainda bem que não veio com a moça nua!”.


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segunda-feira, 30 de julho de 2018

“MEUS POVO E MINHAS POVA...”



*Rangel Alves da Costa


“Meus povo e minhas pova...”. Quase sempre assim começavam os discursos políticos de antigamente. Em cima de carroceria aberta de caminhão, de terno branco ou mesmo na roupa mais arrumada que pudesse encontrar, chapéu na cabeça e arma escondida na cintura, o potentado político chamava o microfone à mão e começava a dizer das suas.
“Meus povo e minhas pova, também os homi e as mulé, todo mundo do meu lugar. Vosmicêis sabe que meu lugar é na boleia, é na cabina, mai estou aqui em riba dessa carroceria pruquê sou canidato. Óio pa vosmicêis e vejo tudim meu eleitor. Aquerdito que tenho os voto de tudim pruquê sou iguarzim a tudim de vosmicêis. Mintira de quem dizer que sou rico demai ou que tenho dinheirama. Tenho não. Uma vaquinha aqui outa ali, um pedacinho de terra aqui outo ali, mai só isso. Purisso só iguarzim a vosmicêis...”.
Ladeando o candidato, uma meia dúzia de capangas e tudo armado até os dentes, mais uma meia dúzia de puxa-sacos, alguns políticos da localidade e outros convidados ilustres, estes também pleiteantes a cargos mais elevados na esfera partidária. Abaixo apenas o povo tomando conta da praça. De toda aquela multidão, apenas um terço ali estava por vontade própria. O restante se fazendo presente por ameaça ou outros medos. A capangagem já havia passado de porta em porta e avisado que era melhor ir bater palmas para o futuro prefeito, sob pena de...
“Purisso, meus povo e minhas pova, que aquerdito que sou o mió e devo ser o escoído pra tomar conta dessa perfeitura. Num que eu quera, num que eu percise de perfeitura, mai pruquê sei que o povo quer é eu lá pra fazer o mió pa todo mundo. Num quero nem saber dos cofe, num quero nem saber da dinheirama que chega. Tudo vai ser do povo. Se arguém dizer que eu roubei um tantim assim intrego as chave na merma da hora. Mai tomem se for mentira sei não. Mai quem mandou matar Filomeno foi eu não, foi aquele azedo do outo canidato. E tudo pa adespois butar curpa neu. Tenho um negoço a resorver com aquele fi da peste...”.
E lá do alto da carroceria a jagunçada mandava que a multidão aplaudisse. Acaso percebesse alguém desinteressado em aplaudir, logo apontava pra cintura apontando a arma. Aquele que resolvesse debandar dali era buscado e trazido à força, muitas vezes jurado de morte se arredasse novamente o pé dali. Os ausentes eram marcados num caderninho por um assessor que cuidava unicamente daqueles que mais tarde sofreriam as dores do desprestígio ao poderoso candidato. Por isso mesmo que a cada comício muitas casas eram logo abandonadas e as famílias saindo pelo mundo sem destino. Sabiam que o pior aconteceria.
“Conto com os voto de vosmicêis pruquê sei que posso contar. Mai num quero que vote pruquê sou o pai da probeza. Dou adjuntório a vosmicêis pruquê tenho o coração bom. Mai espie bem que dessa veiz num tô trocano nada pru voto. O voto é live e vosmicêis sabe disso. Se dou açúcar, café, farinha, feijão, se pago remédio e levo muié pra parir é pruquê sei que munta gente num tem nem adonde cair morto. Nunca disse que era em troca de nadica de nada. Nunca disse que ou votava neu ou ficava de mão abanando. Sei que vosmicêis, no dia da eleição, vão óiá pa quem óia pru vosmicêis...”.
Depois das palavras do poderoso, então o locutor oficial (bajulador de primeira do candidato) lançava mão do microfone e começa a gritar: “Quem é o pai dos pobres?”, “Quem sempre ajudou a pobreza?”, “Quem merece ser eleito?”. Toda multidão tinha de bater palmas e gritar a pleno pulmões, pois era nessa hora que os capangas chegavam a tirar as armas das cinturas e deixá-las à mostra. E assim o comício fabuloso ia chegando ao final. Mas depois daí uma comilança já estava à espera de todos. Carne frita com farinha, enquanto a comitiva do candidato ia se fartar na melhor comida e na melhor bebida.
Quem saía vitorioso no pleito? Ora, ora. Não precisava nem o comparecimento do eleitorado às urnas. As urnas já estavam cheias e os votos já marcados. E o povo continuava à míngua, ao deus dará, no sofrimento e no abandono de sempre.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Rangel Alves da Costa



Ciranda da flor (Poesia)



Ciranda da flor


Sou um brincante
com graça e louvor
também sou cirandeiro
na cantiga de amor

vem e me dê a mão
veja a lua brilhar
no meu coração
e vamos cirandar

boneca de pano
num conto de fadas
é doce ser humano
nas noites cirandadas

minha bela flor
rodando na ciranda
que canção de amor
que beijo na varanda.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - acorda Poço Redondo, usufrua o que é seu!



*Rangel Alves da Costa


Provado está que o tema Cangaço atrai cada vez mais pessoas de todas as idades. Provado está que as atrações que dizem respeito ao cangaço despertam cada vez mais interesse e provocam intensas e contínuas visitações. Provado está que o cangaço vai perdendo de vez sua feição hostil para ser visto como fenômeno histórico, social e cultural. Provado está que onde está a mão do cangaço está o lucro, a geração de emprego e renda, o turismo, o afluxo de pessoas que gastam e se divertem. Provado está que o cangaço também é festa, é diversão, é voz que é ouvida e passos que vão atrás. Provado está que ANGICO É A JOIA DA COROA DO CANGAÇO. Provado está que todo município quer ter a Gruta do Angico e somente Poço Redondo tem. Provado está que Poço Redondo, o legítimo detentor da Joia da Coroa, todos os dias deixa ser usurpado, deixa ser usado para fins de lucratividade dos outros. Provado está que Poço Redondo não possui o mínimo interesse em preservar o que é seu, em dizer aos outros que aquilo é seu e muito menos lucrar com o que é seu. Provado está que Poço Redondo entrega de mão beijada não só Angico como toda a beira de rio para que os outros explorem e lucrem como quiserem. Provado está que para Poço Redondo tanto faz como tanto fez que digam que Angico é do outro lado do rio ou que pertença a outro município. Tá tudo errado. Será que essa situação nunca vai mudar? Será que os outros vão se perpetuar ganhando dinheiro com aquilo que está dentro das terras de Poço Redondo? Para finalizar, mais uma pergunta: Quanto Poço Redondo lucrou na última Missa do Cangaço e quanto lucraram alguns municípios vizinhos?


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domingo, 29 de julho de 2018

A ETERNIDADE DE LAMPIÃO



*Rangel Alves da Costa


Ontem, como em todos os anos, muitos eventos relembraram os oitenta anos da Chacina de Angico ou da morte de Lampião. Com efeito, naquela fatídica manhã de 28 de julho de 1938, na Gruta do Angico, em Poço Redondo, sertão sergipano, a volante alagoana carcava o coito e disparava para por fim ao cangaço.
Morreram Lampião, sua Maria Bonita e mais nove cangaceiros. Pelo lado dos atacantes (volantes), apenas um: o soldado Adrião. Mesmo em meio às inúmeras histórias fantasiosas e das constantes indagações surgidas sobre o episódio, a verdade é que a morte do cangaceiro maior apenas fez nascer o mito. E o mito imortalizado.
Ora, Lampião continua mais vivo do que nunca, continua mais presente do que nunca, continua mais fincado nos sertões do que nunca. Nem as armas, as munições, o punhal e a degola conseguiram matar completamente Lampião. E se todo um exército disparasse contra ele - e somente ele -, ainda assim não conseguiriam dizimá-lo de vez. Todos os exércitos do mundo jamais colocaria fim ao cangaceiro maior.
Quanto mais morto mais vivo ele está. Quando mais se passam os anos da chacina mais ele é avistado e visitado não só no Angico como por todo o Nordeste. Todo mundo procura Lampião, todo mundo segue os passos de Lampião, todo mundo dialoga com Lampião. Pode-se, então, dizer que um homem deste morreu?
Não morreu e certamente não morrerá. E a cada ano parece que ele rejuvenesce, fortalece-se ainda mais. Nunca se procurou tanto por Lampião como agora. Nunca se escreveu tanto sobre o cangaço e o seu líder maior como agora. Nunca abraçaram a saga cangaceira como agora. A bem dizer, o cangaço deixou de ser um fenômeno acadêmico, de temática mais afeita ao estudioso e pesquisador, para se tornar de intenso interesse popular.
A popularidade que o cangaço vem alcançando é fato verdadeiramente espetacular. Os eventos realizados (principalmente aqueles que levam a marca Cariri Cangaço) demonstraram bem o interesse do povo, do homem comum, da terra, pelo seu passado e pela saga percorrida na sua estrada. Lampião já não é visto como “bicho-papão”, como figura aterradora, como o “além-inexplicável”.
Lampião popularizou-se de tal forma que todos agora querem ter a “honra” de guardar consigo ao menos uma pequena lembrança daquela história. Por isso mesmo que as missas do cangaço são tão concorridas, que centenas de pessoas se embrenham nas matarias e carrascais para homenagear o Capitão e os demais que com ele tombaram. E são jovens, adolescentes, pessoas cujo interesse maior é apenas vivenciar, ao menos agora, aquele misto de realidade trágica com trama aventureira.
Por que fazem assim? Simplesmente pelo descortinamento da outra face do cangaço. Demorou muito, mas aos poucos foram entendendo que o cangaço não foi somente o mal, o sangue jorrando, a atrocidade, a covardia, a morte e o medo. Foram compreendendo, sim, o cangaço enquanto história, enquanto realidade vivenciada por um por um povo do seu mesmo berço sertanejo e nordestino.
E Lampião deixou de ser o cangaceiro, apenas o cangaceiro, para se transformar num homem que, mesmo odiado, merece ser reverenciado pela luta e pela tenacidade. Já não se discute apenas se foi herói ou bandido, e sim a motivação e o contexto de sua luta, mas principalmente seu poder e força em ser aquilo o que foi: indiscutivelmente um homem que fez da luta bandida uma ação heroica.
Um homem que viveu o seu tempo para eternizá-lo e eternizar-se, fincando para todo o sempre a imorredoura estátua da instigante presença. Daí que já não se fala em amores ou ódios por Lampião. A unanimidade agora é apenas Lampião. O todo tão vivo e tão buscado. Aquela presença que está em Angico, está nos livros, está na mente de cada um. Aquele que esteve, aquele que está e sempre estará. Se fosse apenas a maldade em pessoa continuaria com tamanha presença? Ele ainda está e continuará por que foi além de todo o bem e de todo o mal. Eterniza-se, pois, o homem de mil ou de todas as vidas, o Virgulino, o Lampião, o Capitão.


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Lá no meu sertão...


Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição - Poço Redondo/SE



Retrato do meu sertão (Poesia)



Retrato do meu sertão


Candeeiro e vaga-lume
panela de barro e pote
varanda e rede armada
cantar bem passarinheiro
imensa lua lá em cima
sol de beleza e queimor
bela flor meu mandacaru
aí mora o meu amor

fincado na terra sertão
casinha de barro e cipó
fogo de chão no quintal
roupa estendida em varal
um rádio de pilha tocando
aguardente de tiquinho
uma procissão com andor
no sertão do meu amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - um domingo pra lá de movimentado



*Rangel Alves da Costa


Eu tive um domingo pra lá de movimentado, pois corrido mesmo. Eu estava em Poço Redondo, sertão sergipano, e na condição de fundador e responsável pelo Memorial Alcino Alves Costa fui solicitado a receber uma equipe de televisão aracajuana. Comprometi-me não só receber a equipe como levar mais gente da comunidade para possíveis filmagens e entrevistas. Então desde as oito da manhã que eu já estava à espera da equipe. Amigos e convidados foram chegados e depois das nove começaram as filmagens. A equipe da televisão não esperava, contudo, encontrar pessoas tão importantes na história não só do sertão como do cangaço, pois ali estavam uma filha da ex-cangaceira Adília, um filho do ex-cangaceiro Cajazeira, e também uma filha de Mané Félix, o mais famoso coiteiro do bando de Lampião. E também parentes de cangaceiros e outras pessoas de largueza histórica no lugar. Muitas conversas, muitas entrevistas, filmagens e mais filmagens, o tempo passando e tudo como se nem se quiser tivesse perto de acabar. Assim que as filmagens terminaram e a equipe e as pessoas foram embora, e isso já depois de uma hora da tarde, eu já me preparava para pegar as malas e retornar a Aracaju, quando turistas chegam ao Memorial. Tive que permanecer mais alguns instantes e de lá saí em correria. O retorno já estava marcado e eu não poderia me demorar mais ainda. Uma correria danada, mas sempre bom que assim aconteça. Tal movimentação demonstra a importância cada vez maior que vem tomando o Memorial Alcino Alves Costa.


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sábado, 28 de julho de 2018

GARRAS DA NOITE



*Rangel Alves da Costa


No alto da montanha, o grito, o uivo, o brado em meio à noturna escuridão. No alto da noite, o mesmo grito, o mesmo uivo, o mesmo brado na noturna e soturna escuridão. Lobos e homens vivem seus instantes, seus dramas, suas angústias, suas saudades suas aflições.
E assim por que a noite do lobo é também a noite do homem. Não de todo lobo. Não de todo homem. No animal ou na pessoa há de existir todo um contexto propício para se reconhecer dentro da noite do lobo. E na noite do lobo sempre a solidão, a angústia, o sofrimento, a saudade, a mais triste desolação.
Os lobos são animais noturnos. Até se torna fácil imaginá-los por cima dos montes, com a cabeça voltada pra lua, seus dentes afiados sobressaindo e os uivos, os longos e tristes uivos sendo ecoados. Mas por que os lobos uivam tanto e sempre procuram lugares bem altos, geralmente rochedos e montanhas, para expressar sua solidão? Não seriam de tristeza, aflição, angústia, desespero, dor do abandono, os uivos dos lobos?
Dizem que os lobos uivam para espantar as dores, angústias e aflições aprisionadas dentro do peito, para se fazer ecoar nas sombras da noite, para gritar seus lamentos nas montanhas enluaradas. Mas dizem também que os gemidos altos e estridentes nada mais são do que o mais angustiante e doloroso brado de um coração que não mais tem por quem clamar.
Mas outros, talvez pretendendo negar o poder sentimental dos lobos, dizem apenas que o uivo é o meio através do qual eles mantêm contato entre si. Contudo, não negam que esses sons, muitas vezes assustadores aos ouvidos humanos, são emitidos para manifestar os mais diversos sentimentos. Daí reconhecerem que os lobos possuem outras motivações nos seus lamentos. Ressentem-se das saudades e relembranças, mas a principal delas é mesmo a necessidade de gritar contra as agruras do mundo.
O uivo gritante dos lobos contra as asperezas da realidade ecoa com feições de revolta, de indignação, de enraivecimento, repulsa, ira, enojamento, fúria, insurreição, insurgência; enfim, tudo aquilo que possa se resumir numa única sentença moral: Não aceitar a realidade como ela está sendo, impiedosamente, imposta. Então o lobo faz de seu grito um brado dizendo não, uma forma de negar o seu contentamento com a realidade.
Diante do que foi dito acerca dos lobos selvagens e seus uivos, urge perguntar: Por que tantas pessoas sobem nas montanhas, em noites do mais cortante entristecimento? Por que parece se ouvir gritos, ruídos, lamentos, chamados aflitos, verdadeiros uivos de lobos solitários? Por que parece que faces se voltam pra lua e corpos de braços abertos querem encontrar significados para suas noites, seus instantes de solidão, suas vidas solitárias?
Não possuem caninos afiados, não assustam, não são apavorantes como os lobisomens nem selvagens quanto os lobos, mas verdadeiras matilhas vagam pelos ares da noite procurando aquilo que não conseguiram encontrar durante o dia. O dia inteiro na esperança de uma lembrança ao anoitecer, um telefonema, um encontro marcado, um toque na porta e nada.
Ora, pessoas tão normais, tão alegres, fagueiras, parecendo sempre felizes e contentes e basta se aproximar o anoitecer e vão se transformando totalmente. Mas também todo mundo sabe que as angústias, as dores da solidão e outros sentimentos não andam tão visíveis assim pelos rostos.
Talvez seja por isso que todas as feições exteriores de determinadas pessoas, inclusive suas roupas, seus pertences e seus luxos nada mais são do que falsas couraças encobrindo ou tentando esconder verdadeiros lobos que não veem a hora da noite chegar, a lua descer suas cores de abandono, para subirem nas suas montanhas para os uivos de sempre.
Talvez nem fechem bem as portas atrás de si para se transformarem em lobos. Ali à frente, logo ao primeiro olhar, na montanha mais alta do quarto, da sala ou da varanda, estará sempre a lua repousando sobre a fotografia, sobre a carta esquecida em cima da escrivaninha, sobre os restos de um amor que nunca foi esquecido. E então vão surgindo os uivos, os tristes uivos de lobos tão solitários.
E as matilhas vão vivendo os seus dilemas, buscando suas explicações, como se aqueles uivos molhados de uísque, cheios de fumo dos cigarros, molhados pelos lenços que se espalham ao redor, fossem trazer respostas.
Nunca trazem porque as montanhas sempre estarão no mesmo lugar à espera de seus lobos e estes animais indomáveis parecem não querer conhecer outras paisagens que transformem seus gritos em leves cantos nem passear pelos trigais que tão belamente brilham ao anoitecer.
Noites assim, de lobos e homens, de uivos e gritos. Enquanto a lua brilha ou se esconde por trás das nuvens, as vastidões distantes e os quartos fechados ouvem e sentem suas presenças. Quase um lancinante miado agourento de gato em cima do telhado, mas apenas o lobo na sua noturna dor.


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Lá no meu sertão...


Pífano e Sanfona de Poço Redondo, sertão sergipano!





Grito da selva (Poesia)



Grito da selva


Ouvi uivos, ganidos, ferozes bramidos
e mãos afiadas sedentas de sangue
e garras pontudas famintas de vida
quanto mais o sangue jorrava adiante
mais a selva se movia querendo mais

procurei lobos e outras famintas feras
procurei por terríveis olhos vermelhos
e por línguas espargindo a vermelhidão
mas só avistei as armas ainda apontadas
e os homens se dizimando feito feras.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – preferia dizer a ela



*Rangel Alves da Costa


Minha namorada é linda. Minha namorada é bela. Minha namorada é céu. Minha namorada é nuvem. Minha namorada é horizonte. Minha namorada é mar. É lua, é sol, é estrela, é a cor da alva, é o tom poente. Tão doce é o seu sabor que não sei se fruta ou o mais puro mel. Tão suave sua voz e seu olhar que não sei se canção do vento ou espelho d’água. Tão bom estar junto dela que não sei se paz que não sei se sonho. Tão bom estar dentro dela que não sei se êxtase que não sei se frêmito. Tão bom ser de sua história que não sei se romance ou conto de fadas. O mais doloroso e triste se mostra ao inverso: saudade de querer a presença, aflição de não tê-la no instante, tristeza de não vivê-la toda hora. Olho ao lado e avisto a cama e sei que ela não está lá. Mas ela está. Ela esteve ali e novamente está. Sinto sua presença, sinto seu perfume, o seu cheiro bom, ouço a sua voz. E de tudo faço um templo onde o deus do amor está representado em nós.


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sexta-feira, 27 de julho de 2018

FRÁGIL FEITO FERRO



*Rangel Alves da Costa


Alguém confessou ao espelho que não se surpreendesse se no dia seguinte ou a qualquer momento não ser mais ele que estaria ali para ser espelhado, ainda que com a mesma feição. E assim porque sentia por dentro, tomando a mente e todo o seu corpo, algo que estranhamente avançava para minar suas forças, para reduzi-lo a nada. Sempre se imaginara com força insuperável, indestrutível, mas que agora sendo colocado à prova por uma força silenciosa e destruidora. Verdadeiramente sentia-se como um ferro sendo tomado pela ferrugem.
E a ferrugem enfraquece o ferro, eis uma absoluta verdade. E muito o espelho ouviria se perguntasse por que assim acontece. Igualmente ao ferro, o homem também vem da natureza, pois do barro da terra, segundo preceitua o criacionismo. Tal qual o minério de ferro, é purificado para ganhar consistência. E também como a matéria bruta que se transforma em aço, o ser humano também acaba se tornando em estado de durabilidade. Então surge, no homem, um problema crucial a ser resolvido: como não deixar que a ferrugem vá, imperceptivelmente, domando a sua estrutura?
Mas de qual ferro e ferrugem se está falando? Do metal extraído do minério e transformado em aço e a deterioração advinda da oxidação pelo contato com o ar e a umidade? Ou de quaisquer outras forças que não resistem às ações inevitáveis do tempo? Talvez sobre tudo. Sobre o ferro da vida, da idade, dos seres. Sobre a oxidação que a tudo vai silenciosamente tomando até adentrar no seu cerne, nas suas entranhas e enferrujar até destruir o impensável de ser afetado. E a completa destruição é o último estágio dessa ferrugem.
Acontece no metal e no homem. Gota a gota, pingo a pingo, a umidade vai se formando sobre a férrea e indestrutível solidez. Mas a cada instante, lenta e imperceptivelmente, vai oxidando e fragilizando a força. E de repente outra feição vai se espalhando, dando outra cor e outra forma, que nada mais é que o enfraquecimento, a perda da absoluta resistência. O indestrutível então vai se dobrando ao acaso, a força padece ao querer do nada. E é assim que a ferrugem enfraquece o ferro.
É assim que o metal se dobra à voracidade da maresia; é assim que a pedra vai sendo carcomida, diluída, para se tornar em grão, em pó; é assim que a madeira é devorada pelo frágil cupim; é assim que a aragem vai tornando em cinzas a brasa vivaz; e é assim em tudo. Por mais que a feição externa permaneça com aparente resistência e nada aponte que a matéria já esteja sendo corrompida, é no percurso dos dias que tudo vai sendo tomado pelas situações inesperadas.
No ferro, o surgimento de uma pequena crosta já indica sua afetação. Mas tudo tão lentamente que se imagina poder resolver o problema com uma simples limpeza externa. Porém, quanto mais se remove mais vai haverá destruição. Quer dizer, não adianta dar apenas uma aparência de descontaminação quando o ambiente é propício para a continuidade.  Eis uma metáfora da vida: Há um muro pintado de novo e repintado, mas aquela aparência será de pouca valia se a estrutura já estiver corrompida, prestes a desabar a qualquer momento.
O ferro da vida, pois, se põe na constante ameaça da maresia do tempo, da existência. Como num espelho que vai embaçando pela idade e numa fonte parada que vai secando pela exposição ao sol e ao vento, assim também com a estrutura do aço humano. E o ser de repente se vê atormentado pelas enfermidades ou por aquilo que já lhe domou internamente. Mas também nas fraquezas da mente, como para demonstrar que o ser humano pode ser um castelo de areia prestes a ruir pela simples umidade da areia.
Assim na fortaleza que se torna ruína, no poder que enfraquece ajoelhado, no reinado absoluto que é invadido por um bárbaro qualquer. E na vida, no ser humano. Tanta pedra, tanto ferro, tanto fogo, para, de repente, apenas sentir que desde muito já vem sendo devorado pela idade, pela doença, pelas circunstâncias cruéis da existência.
Por isso mesmo, engana-se aquele que imagina ser suficientemente poderoso para superar qualquer ameaça que possa surgir. Ora, nada mais enxerga que o visível, que a aparência, que o perceptivelmente sólido e forte. Mas não se volta para a visão do íntimo, das entranhas, para as raízes. E, como uma fruta de pele sedosa, o seu interior já poderá estar sendo tomado por minúsculos seres que a tornam imprestável.
Em tudo na vida há uma ferrugem que ainda não despertou. Imperceptível, porém já com presença ameaçadora. Impossível percebê-la diante da aparente solidez e resistência. Mas ela já está ali, silenciosamente presente, impossível de ser evitada. Acaso o ser humano fosse mais atento, mais realista e procurasse avistar as coisas sem recortes, logo perceberia que o ferro que será tomado pela ferrugem vive rodeado por fatores para que o inevitável aconteça. Quer dizer, o próprio homem provoca a maresia diante de si.
E o que fazer, então? No metal, a química apenas retarda a ação; no ferro humano, somente o homem para se preservar e ser menos afetado pelo inevitável. Mas não há como fugir da ferrugem.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Em meio ao sertão



Maria minha (Poesia)



Maria minha


Maria minha
sim meu Capitão
tu é minha santinha
sou meu Lampião

mesmo que em nós
a canção seja na dor
o viver seja tão atroz
ainda seremos amor

minha Maria
Capitão do meu coração
tu é a flor do meu dia
sou sim meu Lampião.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – apenas noite



*Rangel Alves da Costa


Noite inteira, completa, em sua feição mais noturna. Mas apenas noite. Silêncio. Solidão. Vazios. Carências. Apenas noite. Os grilos não cantam. Os sopros de vento já não passam mais. Os gatos não miam no telhado. Os andantes noturnos entrincheiraram-se. Apenas noite. Ruas nuas. Lua nua. Saudade crua. Apenas noite. Memórias. Relembranças. Nostalgias. Lágrimas caídas. Lágrimas escondidas. Apenas noite. Portas fechadas. Janelas fechadas. Quartos escuros. Segredos. Mistérios. Apenas noite. Febres. Tremores. Ânsias. Dores. Gritos. Apenas noite. Aflições. Angústias. Melancolias. Apenas noite e sempre assim nas noites assim. É em meio à escuridão noturno que os sentimentos parecem se desprender e gritar. É em meio ao noturno que tudo desperta para o delírio d’alma. É em meio ao negrume que o corpo se enche de queixumes e tudo desabrocha em frêmitos. E no sonho, quando se adormece e é possível sonhar, uma nuvem que desce encobrindo a lua.


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quinta-feira, 26 de julho de 2018

NADA SEI



*Rangel Alves da Costa


Nada sei. Nem mil diplomas nem mil formaturas se aproximam de um velho e humilde Livro da Sabedoria.
Livro da Sabedoria escrito na velhice, pela velhice, pelo conhecimento da vida.
Nada sei. Nem mil anéis dourados de doutor nem mil pós e doutorados sequer chegam perto do antigo e carcomido Livro da Vida.
Livro da Vida escrito no conhecimento da estrada, na experiência dos anos, no viver.
Nada sei. Nem toda minha ciência nem todo o meu academicismo se aproximam do quanto se faz presente no olhar profundo e nos cabelos brancos do Livro da Idade.
Livro da Idade escrito na luta e na perseverança, na força e na fé para continuar.
Nada sei. Insipiente a sabedoria que se arvora do conhecimento mecânico, programático, metodológico, como se a letra e a fórmula fossem suficientes ao aprendizado e ao que está escrito no Livro da Experiência.
Livro da Experiência que vai sendo escrito nas rugas, nas marcas do tempo, na idade.
Nada sei. Aqueles que verdadeiramente sabem também sabem silenciar suas sabedorias. Aqueles que realmente conhecem não bradam seus conhecimentos nem gritam suas capacidades. Sabem tudo guardar no Livro da Simplicidade.
Livro da Simplicidade cujas páginas envelhecidas são legíveis a tão poucos.
Nada sei. E nada sei por que tudo o que sei sequer se aproxima do que eu deveria saber. Ora, procuro conhecer apenas aquilo que for útil ao momento e não me preocupo em novamente ler o Livro dos Dias.
Livro dos Dias que é a junção de tudo aquilo que já foi conhecido e da nova lição.
Nada sei. Passa-se apressadamente e sequer tem tempo de avistar um velho que silenciosamente medita no seu banco de praça. A pessoa vai com mil problemas para resolver e não sabe que bastaria um instante, ao lado do velho, para ser aberto o Livro das Respostas.
Livro das Respostas que em poucas palavras desvendam os mistérios e as indagações.
Nada sei. E muitas vezes nem procuro saber. Há no ser humano um desmedido contentamento em saber apenas o bastante para a resolução dos problemas mais urgentes. Poucos se preocupam em tirar as traças e reler o grande Livro de Tudo.
Livro de Tudo que está escrito na mente de cada e sua leitura se faz na própria ação.
Nada sei. Muitos nada sabem e, por orgulho, escondem o desejo de aprender. Sempre se torna difícil que se reconheçam aprendizes, que se sintam com pouca sabedoria, que se autocritiquem pelas inexperiências. Não sabem da existência do Livro da Humildade.
Livro da Humildade que mostra o ser humano como lírio do campo ante toda ciência.
Nada sei. Minha pouca fé me faz descrente de quase tudo. Não sei se existem milagres, qual a força divina, qual a seiva da religiosidade, o que foi prometido e o que é feito pelo homem. Não acredito o suficiente no Livro Sagrado.
Livro Sagrado que vai além de ser Bíblia para ser aquilo escrito no coração como fé.
Nada sei. As teimosias são como pedras que se deixam transformar em pó por não aceitarem suas fragilidades. Tudo acontece e é como se nada acontecesse. Falta o encorajamento para dizer sobre a carência. E para a leitura do Livro dos Ventos.
Livro dos Ventos que descreve a fragilidade da vida pelo desprezo ao que se deseja.
Nada sei. Creio que sempre será justo o reconhecimento de nada ou pouco saber. Somente tal compreensão permitirá que o ser humano vá juntando grãos para formar sua própria montanha. E lá do alto escrever o Livro das Nuvens.
Livro das Nuvens onde tudo é folha em branco esperando a escrita de cada um.
Nada sei perante todos estes livros. Preciso escrever o Livro do Espelho: qual reflexo sobre mim eu escreverei?


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Lá no meu sertão...


Na escrita...



Entre as vagas da lua vaga (Poesia)



Entre as vagas da lua vaga


E o tão carente sonhador
na noite brota o seu clamor
e entre as vagas da lua vaga
sonhos e desejos então afaga
beijando os corpos os astrais
como beijos que não tem mais

querer a estrela e a luz da lua
querer a noite assim tão nua
mas solitário e apaixonado
pelos fulgores tão desprezado
levanta as mãos para abraçar
e da janela faz seu voar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - olhai os lírios do campo



*Rangel Alves da Costa


Sim, olhai os lírios do campo. Há muita beleza na vida, há muita singeleza na simplicidade, há muito encantamento na humildade, há um brilho especial no amor. Fuja das arrogâncias, das violências, das atrocidades. O egoísmo, a soberba, a vaidade, a cobiça, a descabida demonstração de poder e de mando, nada disso produz um só fruto. Coisas belas existem que encantam, coisas grandiosas irradiam no espírito como luz maior. E nada que seja da ostentação, do luxo, da riqueza material, do ter pelo ter. É preciso cuidar para que os olhos procurem encontrar aquilo que faz bem avistar. É preciso fazer com que o coração procure sentir aquilo que lhe traga boa significação. É preciso partilhar o terno, o meigo, o afetuoso, o singelo. Jardins de pedras são feios, grotescos, insensíveis. Muros cimentados são feios, brutais, arrogantes. Caminhos espinhentos doem mais do que permitem andar. Então abra sua janela e sua porta para o amanhecer na alma e no espírito. E deixai que os lírios cintilem, brilhem, esparjam ternura e beleza. Vale a pena buscar alimentar-se do melhor da vida. Vale sempre a apena olhar os lírios do campo e compreender que a grandeza está no singelo.


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quarta-feira, 25 de julho de 2018

A BATIDA DO FEIJÃO



*Rangel Alves da Costa


Pretendo em verso cantar um ofício tão distinto que foi perdendo o seu lugar, um afazer sertanejo que hoje quase não há, que é a batida do feijão e todo o seu rodear, desde a colheita da baje ao grão e seu ensacar. Coisa comum noutros dias, num passado de alegrias, onde nem mesmo a pobreza tirava suas magias, na simplicidade de um povo suas lutas e valentias. O comum entre os comuns, nas vidas mais arredias, nas vidas de sopro e vento e de domar ventanias. Toda a vida de um povo e suas alegorias.
No sertão de antigamente, e na saudade que a gente sente, a batida de feijão era um festejar diferente. Ao sertanejo o melhor presente, no viver o que lhe consente. Das roças mais afastadas, ou daquelas nos beirais das estradas, os animais em duras jornadas para transportar as braçadas. Nos lombos as caçuadas ou nos carros-de-bois as carradas, até chegar à cidade e espalhar nas calçadas.
Colheitas nos cantos guardadas, protegidas nas leitadas, temia-se que a qualquer hora caíssem as chuvaradas. Mas depois no amanhecer, com as asas do sol desfraldadas, o feijão era espalhado nas ruas empoeiradas, até que as bajes úmidas fossem ficando ressecadas. E assim dia após dia até que todas as bajes ficassem como tostadas, era sinal de estarem prontas para serem alquebradas.
No dia do batimento as amizades enlaçadas, chegavam muitos amigos ajudando as empreitadas. Juntavam tudo aos montes, de alturas elevadas, após desciam o porrete até baixarem as juntadas. Dependendo do feijão, muitas eram as braçadas, muitos eram os esforços e imensas as poeiradas. De madeira à mão, forças sendo lançadas, bate que bate o feijão, batiam as mãos calejadas.
Os grãos separados das cascas, pulando pelas pancadas, depois juntados ao redor para os trabalhos de ensacadas, quando não eram peneirados e as bagaceiras afastadas. Nos quintais e afastados, outras difíceis jornadas pra peneirar o feijão e as impurezas derramadas. Na peneira sertaneja, as mãos jamais descansadas, penera mais que penera, chega mais peneiradas. Pelos ares a sujeira dos pós e das poeiradas.
Eram lidas cansativas, mas logo depois festejadas. Nos aboios e toadas, nas pingas extravasadas, o forramento da barriga para as grandes paneladas, carnes fritas e torradas, mas também as feijoadas. Forró bom pelo salão, namoros pelas noitadas, chamegos de todo lado, fogueiras em faiscadas.
Assim o feijão batido na batida do passado, ofício tão sertanejo como a vida de gado, hoje pouco inexistente ou já pelo tempo levado, mas deixando uma saudade de olho ficar marejado.


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Lá no meu sertão...


Rangel, na parede da memória...



Loucura (Poesias)



Loucura


Rego a flor de plástico
sopro o sopro do vento
converso com o silêncio
pinto de negro a escuridão

sei sim que sou louco
até sei amar de verdade
até mando carta de amor
só posso estar maluco

sei sim que sou insano
até penso que lábio é pétala
até penso que pele é seda
e ternamente acarinho

tão louco eu sei que sou
que na minha fome maior
guardo-te o maior pedaço
entrego-te o copo inteiro

deixe que a loucura me dome
eu voo por que tenho asas
e tenho a alma tão pura
e isso não é loucura?

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - chove



*Rangel Alves da Costa


Chove. Agora chove. É noite. Agora chove. Escuridão. Sem lua. Agora chove. Ruas desertas. Agora chove. Silêncio triste. Agora chove. Portas fechadas. Chove. Janelas fechadas. Agora chove. Luzes acesa. Chove. Luzes apagadas. Agora chove. Uma saudade. Agora chove. Uma lembrança. Chove. Melancolia e aflição. Agora chove. Olhos tristonhos. Chove. Lenços molhados. Chove. Coração partido. Chove. Desejo de morrer. Chove. Uma febre no corpo. Agora chove. A vidraça molhada. Agora chove. Pingos caindo. Chove. Beijo sem boca. Chove. Abraço sem braços. Chove. Calor e frio. Agora chove. Asfalto molhado. Chove. Um olhar que mareja. Agora chove. Falta de você. Chove. Tanta falta de você. Agora chove. Chove. Chove. Chove...


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terça-feira, 24 de julho de 2018

BASTIANA, CIRINEU E SEUS FILHOS



*Rangel Alves da Costa


Bastiana e Cirineu tiveram uma filharada. Cada menino e menina cresceram debaixo da saia da mãe.
Casa pequena, pobre, mas dava demais pra se viver. Tudo crescido barrigudinho. Joquinha era o que mais gostava do barro da parede.
Tiziu se metia a matar calango e só se via o bicho chiando no braseiro. Mariazinha chorou três dias quando sua boneca de milho perdeu os cabelos e ficou só no sabugo.
A mãe queria comprar uma de pano, mas num tinha dinheiro não. O dinheiro que aparecia era só para o “de comer”, como se dizia.
Quando a seca grande chegou, já rapazinho, Tiziu foi o primeiro a subir no pau de arara, caminhão velho que deixava pra trás os adeuses e as lágrimas.
Pedrinho se enrabichou logo cedo e foi morar com Minervina. Moça bonita, morena trigueira, laçou o rapazinho e esse seguiu seus passos.
Mariazinha deixou sua janela e seus olhos tristonhos quando o vaqueiro Berôncio lhe prometeu o céu e a terra. Casou e foi morar distante.
Os demais filhos foram tendo ou criando motivos para se despedirem da velha casa. Um a um, todos acabaram deixando para trás aquela casa que era tão imensa.
Ora, a casa é imensa não pelo tamanho, mas pela família existente dentro dela. Quanto mais afeto mais se dimensiona os laços e a existência.
Seus pais, sempre entristecidos a cada partida, apenas sofriam sem poder fazer nada. Choravam nos escondidos as saudades tantas.
E a casa, que era tão pequena e tão imensa pela família debaixo do mesmo teto, aos poucos foi ficando vazia demais. Tão grande e de repente um quase nada.
Era como se nada mais houvesse ali dentro que encantasse a vida. Bastiana ia prantear suas dores no quintal. Soluçava baixinho, limpava os olhos nos lenços encharcados da dor.
Cirineu se bandeava para um tronco na malhada e ali deixava a lágrima escorrer. E ali, no meio tempo, apenas um homem entristecido e sem poder domar as saudades tantas.
E a casa vazia, triste, saudosa, apenas nas relembranças de tantas vidas ali. Cirineu já ia confessar a esposa que não suportava mais de tanta saudade, quando uma dor no peito lhe calou para sempre.
Bastiana ficou sozinha. Apenas uma velha no silêncio eterno e na solidão mais dolorosa. Estendia roupa do falecido no varal e depois abraçava com uma ternura de cortar coração.
Quando o vento batia e as mangas da camisa esvoaçavam, então ela dizia: “Já vou!”. E foi. Sentada numa cadeira rente à janela, com os olhos sempre marejados, falando sozinha, chamando pelos seus, de repente a morte fechou-lhe os olhos.
Então veio a ventania, entrou pela porta da frente e seguiu até o varal. Mistérios da vida e da morte, mas a camisa estendida foi depois encontrada como que abraçada a Bastiana.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Saudade deles: Pedro Lucas, Tássio e Cecília do Acordeon




Exemplos (Poesia)



Exemplos


Nada mais doce
que a fruta madura
que a alma assim pura
que o amor em candura
que nós dois em ternura

nada mais terno
que o coração aflorado
que o olhar encantado
que o abraço apertado
que nosso amor enlaçado

tudo assim tão lindo
mas nada disso existe
se o coração está triste
e nossos dedos em riste
na desunião que persiste.

Rangel Alves da Costa