SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 31 de maio de 2020

A PEDRA DE BONSUCESSO: LENDÁRIA E PERIGOSA



*Rangel Alves da Costa


Bonsucesso é uma povoação ribeirinha, às margens do Rio São Francisco, no sertão sergipano do município de Poço Redondo. Povoação singela, convidativa, com banho de rio que é um verdadeiro maravilhamento da vida.
A povoação é reconhecida pela religiosidade de seu povo, pelas raízes culturais que permanecem vivas e pelo senso de preservação de sua comunidade. Mas também muito conhecida por uma pedra existente ao largo de uma de suas ruas, cujo estranho magnetismo já vem, desde muito, provocando todo tipo de histórias.
Os mais velhos dizem que é apenas uma pedra normal, sem causar efeito algum em quem nela se sentar, mas outros foram disseminando uma lenda muito diferente. Segundo estes, de normal a pedra não tem nada. E dizem mais: comprovada está a boiolice de muitos que nela já sentaram.
Certamente que mais uma história criada para dar fama ao lugarejo, até para atrair turistas, mas, de um jeito ou de outro, a verdade é a Pedra de Bonsucesso se tornou não só famosa como lendária.
 Pedra esta que já ganhou fama mundial pelo seu poder de transformação de instintos humanos. Com efeito, diz a lenda que todo aquele que sentar na pedra começa logo a sentir “certas diferenças” no seu íntimo. O homem passa a desmunhecar, a mulher passe a ter vontade de usar botina 44.
Diz ainda a lenda que muita gente já saiu de Bonsucesso exatamente pela força de atração da pedra, que com seu misterioso e fascinante poder, era como se chamasse a pessoa para nela sentar. Então, para evitar uma “sentadinha” e depois se acostumar com a transformação, a pessoa preferia deixar o lugar.
Ontem, um morador da povoação ribeirinha me confessou algo ainda mais instigante. Disse-me o beiradeiro que muitos pais não permitem de jeito nenhum que seus filhos brinquem ao redor ou se aproximem da pedra. Os motivos são óbvios.
Disse-me ainda que a pedra era bem maior, grande mesmo, mas foram quebrando aos poucos por medo que acontecesse o pior: que todo mundo que passasse adiante sentisse seus estranhos e misteriosos efeitos, sentisse a força transformadora da danada e perigosa.
Hoje, o que dela resta serve apenas para sentar. Mas é na sentada onde mora o perigo. Também estranho é que muitos jovens de outros lugares, até de outros estados, visitem Bonsucesso exclusivamente para sentar na pedra.
Estranho, muito estranho esse desejo pela “sentadinha”, mas dizem que fazem até fila.


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Lá no meu sertão...


Assentamento Cajueiro, em Poço Redondo, sertão sergipano




Fogo da chuva (Poesia)



Fogo da chuva


Cai um chuvisco
chuva leve
cai

um friozinho
de abraço
teu abraço atrai

meu frio
vai aumentando
e ao teu corpo vai

um calor
que se apossa
e de mim não sai

chove lá fora
mas a fogueira
queimando vai.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Dona Domingas e sua almofada de fazer renda de bilros



*Rangel Alves da Costa


Como vai, Dona Domingas? Esta senhora, Dona Domingas, certamente é uma mestra na renda de bilros, uma das maiores artesãs de Poço Redondo, no sertão sergipano do São Francisco. Mas ela já não produz mais como antigamente, já não é avistada como noutros tempos tecendo sua arte na calçada do entardecer. O que houve, sim, o que houve, Dona Domingas? Cadê a almofada, cadê a linha, cadê o tamborete, cadê os bilros, cadê os espinhos longos e pontudos de mandacaru, cadê o papelão marcado com linhas perfeitas e motivos floridos? Dona Domingas, bom dia! Cadê a formosura da renda, cadê o prazer pelo ofício, cadê a arte maior nascida de mãos rendeiras? As calçadas adormecem nos silêncios da passagem das horas. Os cantos das salas já não cantam a canção dos bilros. Ainda se faz, mas agora se faz muito pouco. Já não ouço, como noutros dias, o som dos bilros sendo tocados, sendo levados por cima da almofada e tracejando a marcação. Já não vejo a artista dando vida ao seu bem-fazer, bem-criar, bem-gestar os traços do encantamento. As rendas de bilros não podem parar, as rendeiras não podem ser esquecidas, a arte sertaneja não pode deixar de brotar. Que Dona Domingas e todas as rendeiras de Poço Redondo e do sertão, jamais guardem suas almofadas nem repousem em desencanto suas mãos sábias e geniais.


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quinta-feira, 28 de maio de 2020

E AMO VOCÊ...



*Rangel Alves da Costa


Todas as mulheres. Ou algumas. Ou apenas você. Um relacionamento ainda inexistente, pois apenas na possibilidade de algum demonstrar esse amor.
Todas as razões para te amar. Além de gostar, além do prazer que dá, aprendi a certeza de te amar. E tanto amo você.
Amo o entardecer, do dia o envelhecer, a magia do instante e sua canção de ninar para a noite adormecer. Ao longe a luz apagando, logo a lua vai descer.
E amo você...
Amo da matutice o saber, de seu pouco ou nada ler, mas que na escola do mundo não há doutor de maior merecer. Basta olhar adiante e sabe tudo descrever.
E amo você...
Amo a mão velha e seu benzer pra todo mal combater, sua sabedoria sagrada e seu profundo conhecer, sua prece e suas folhas para a vida proteger.
E amo você...
Amo desamar o embrutecer e o vaidoso envaidecer, pois amo a simplicidade e a paz em cada ser, pois tudo achado demais não passa de um nada ter.
E amo você...
Amo o café derramado que logo começa a ferver, exalando um perfume de inigualável prazer, não bastando uma xícara, pois logo outra a beber.
E amo você...
Amo quem conscientemente sabe tão bem enlouquecer, fazendo o jamais feito sem loucura transparecer, pois conhece seus limites e até onde se perder.
E amo você...
Amo o amanhecer e o novo dia a nascer, iluminando a estrada e o que além possa se ter, abrindo os caminhos aos passos para cada sonho acontecer.
E amo você...
Amo o passado trazer para o distante reviver, como se fosse retrato chamado a novamente conviver, mesmo que doa a saudade, mesmo que cause sofrer.
E amo você...
Amo relembrar o menino pela rua a correr, tomando banho de chuva sem de nada temer, pois vivendo a sua infância e sem nada a lhe aborrecer.
E amo você...
Amo o silêncio da noite e minha pena a correr, escrevendo qualquer coisa daquilo que eu possa crer, talvez um verso de amor ou linhas de padecer.
E amo você...
Amo acender a vela e a face de Deus logo ter, fazer minha oração e ter a luz no escurecer, sentir o ânimo da alma e no espírito o poder.
E amo você...
Amo quem me chega suave, sem arrogância ou engradecer, que mereça um abraço e toda palavra a dizer, que traga contentamento e torne alegre o conviver.
E amo você...
Amo ter sede de vida e amo da vida beber, fartura do que preciso para um bom viver merecer, gota a gota na lição do que desejo aprender.
E amo você...
Amo o tempo que passa e o ponteiro a bater, hora a pós hora na vida e mais vida querer ter, pois é o relógio que temos antes de depois nada ter.
E amo você...
E por que amo tudo isso e amo tanto você? De nada adiantaria ter a noite e o amanhecer se tudo o mais que eu possa ter não venha tendo você.
Ter a vida e o viver é ter o viver com você.
Você, nome espalhado numa simples palavras, mas tão imensa e tudo, pois você é quem eu amo. E amo.


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Lá no meu sertão...


Rangel e Rangel


Tão terno amor (Poesia)



Tão terno amor


Depois do olhar
ela estendeu-me a mão
e no sorriso terno
estava dizendo sim

no meu silêncio
pássaro voando
sem sair do lugar
segurei sua mão

mãos de amor
assim enlaçadas
seguimos pela estrada
com pés sobre nuvens.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – cada letra



*Rangel Alves da Costa


Escrever é um ato de solidão. Mas também de amor e devoção a cada letra, a cada palavra, frase, ao contexto do escrito, enfim. Escrever não é atitude de profissão nem ofício mecanizado ou alheio aos sentimentos. Escrever é ato de criação, é gestação artesanal, é dar sopro de vida ao que vai brotando na junção das letras e das palavras. Escrever é gestual de santeiro, de seleiro, de ferreiro, de bordador, de doceiro, pois tudo no cuidado do talhe, do entalhe, do detalhe, do remendo, da emenda, da costura, do fazimento inteiro de cada retalho. Escrever é ter à mão um cinzel e ser um Mestre Tonho no seu ofício de criação. Escrever é ser um Orlando dos Couros perante os seus moldes, seus cortes e recortes, suas costuras na pele dura. Escrever é como arte e ato da jovem Sara, de Dona Domingas, de Cenira, de Dona Conceição de Laura, todas bordadeiras, sendo cada bilro como um lápis que faz surgir a escrita. Escrever é como ter a fé e a devoção de Dona Zefa da Guia, pois tudo gestado entre o natural e a força superior da criação. Escrever é como ter o esmero e cuidado da doceira Naní. O açúcar, a medida de sal, o ponto. Escrever é como ter o silêncio da saudade e o sentimentalismo do poeta. Nada nasce sem uma pitada de angústia, de nostalgia, de aflição. Escrever é como tocar um lábio amado, beijar um corpo macio, fazer amor e sentir prazer. Ou a paixão emerge no pensamento ou nada será criado como algo que mereça ser lido. Escrever é ser barqueiro, canoeiro, ribeirinho das águas. O barco repousa na mente, nos beirais do pensamento e das ideias, para depois de repente sair, partir, navegar...


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terça-feira, 26 de maio de 2020

POÇO REDONDO E O VÍRUS QUE AVANÇA POR TODOS OS LUGARES



*Rangel Alves da Costa


Os casos de covid-19 estão aumentando assustadoramente em Poço Redondo, município do sertão sergipano.
Desde a noite desta terça-feira 26/05, dentro do cômputo geral, nada menos que 26 casos já foram registrados. O número deveras assustador, principalmente para um município onde o primeiro caso não tem muito tempo que foi confirmado.
Tratando-se de uma pandemia, onde a doença se espalha indistintamente por todo o mundo, logicamente não seria de se esperar que o município ficasse imune à proliferação da doença.
O preocupante, contudo, é que o vírus já está chegando a lugares, povoações e comunidades, onde se imaginava de maior proteção. As comunidades de assentamentos do Alto Bonito e da Queimada Grande, por exemplo, já registram casos.
A sede municipal centraliza o maior número de casos, mas considerando a dimensão territorial do município, logo se vê com temeridade que o vírus avance ainda mais e vá provocando um descontrole no sistema local de saúde.
Seria um caos se o número de afetados atingisse um nível de insuportabilidade no atendimento. Quanto maior o número de afetados e isolados, mais difícil será o acompanhamento.
Perante tal quadro, considerando ainda que muitos outros casos surgirão e que as formas de atendimento médico estarão em iminente colapso, a única medida possível a ser imediatamente tomada diz respeito a cada um, a cada pessoa, a cada cidadão de Poço Redondo.
Cada poço-redondense deve chamar para si a responsabilidade da autoproteção, da precaução e da prevenção. Cabe a cada poço-redondense zelar pela saúde da municipalidade.
Não adiantarão os esforços da administração se grande parte da população insiste em descumprir as medidas de isolamento, de toque de recolher, de não se aglomerar, de utilizar máscaras quando tiver de sair, de tomar todos os cuidados de higienização.
Não se trata sequer de um querer de cada um, mas de um dever, uma obrigação de cada um, vez que toda a população acaba se sujeitando aos riscos provocados por apenas uma pessoa.
É uma questão de respeito ao próximo, de saber que a vida do outro não deve estar na dependência de uma atitude impensada, irresponsável, ou de um simples ato de negação de uma triste e medonha realidade.
Estamos numa batalha e precisamos vencer. E só venceremos essa batalha contra o vírus com as armas do respeito a si mesmo e ao próximo, com a precaução e a busca máxima de proteção, com a extrema responsabilidade perante esse bem maior que é a vida.


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Lá no meu sertão...


Sertanejo...




Pedido (Poesia)



Pedido


Eu pedi um beijo
estava com sede

eu pedi um abraço
estava com frio

eu pedi um colo
estava cansado

eu pedi seu corpo
estava apaixonado

e me deste amor
vivo enamorado.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – passado e memória



*Rangel Alves da Costa


Ontem uma jovem me chamou de “um dos guardiões de memória de Poço Redondo”. Fiquei lisonjeado, muito agradecido. Contudo, sou isso não. O que faço é simplesmente reconhecer e valorizar o meu povo, a sua história e a sua memória. O que faço é apenas lutar para que o presente seja entrelaçado com o passado, e o que passou continue com valia para o conhecimento das gerações de agora. Ora, não somos somente o presente, o agora e o que virá. Somos raízes, somos o ontem, desde o sobrenome que carregamos ao tempo que já vivemos. É preciso caminhar, seguir em frente, mas sempre olhando para os caminhos do passado. Um avô, um bisavô, um tataravô, qual significado possui no histórico familiar? Simplesmente tudo. Ninguém nasceu do nada. Tudo vem de gerações. Desde o Poço de Cima ao Poço de Baixo, desde as beiradas de Curralinho ao Poço Redondo que como cidade se firmou, tudo merece ser lembrado e conhecido. Neste momento, a presença de cada um faz apenas parte da construção de uma história que já vem desde longe. Você faz. Mas seus pais já fizeram e ainda fazem, seus avôs, seus ancestrais. Olhem para trás e se encontrem, se reconheçam. Eu reconheço, e por isso sempre valorizo.


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domingo, 24 de maio de 2020

IMPIEDOSA SAUDADE



*Rangel Alves da Costa


Saudade, sua danada, por que faz assim comigo, com você, com todo mundo? Por que és tão boa e tão desatinada, tão necessária e tão mortal? Faces já petrificaram pelo cimento de seu poder. Olhos e corações já inundaram e naufragaram ante sua tempestade de recordações. O que era para ser apenas lembrado, recordado, revivido, eis que se transforma em turbilhão.
Danada, danada, você é uma danada. Sentimento dos mais estranhos. Também dos mais exigentes. A saudade não vem a qualquer hora nem em qualquer lugar. Nem tudo provoca saudade. Ela exige motivação e ambientação para acontecer. É sempre romântica, nostálgica, cautelosa demais. Gosta de aparecer junto com o pôr do sol, debaixo do clarão da lua, em instantes de chuva, assim que ecoa uma canção antiga. Também gosta de ser provocada. Parece adorar quando a pessoa vai em busca de velharias, de baús, retalhos e velhos recortes dos tempos idos. Nada lhe atiça mais que um retrato de pessoa amada, uma carta de amor, uma visão ou perfume que produza aquele tão conhecido e doloroso sentimento de querer de novo.
Tudo isso provoca saudade e disso ela se alimenta. Alimenta-se ainda da solidão, das casualidades da vida, das pequenas coisas que fazem relembrar. Gosta de ter um lenço ao lado, uma vela para ser acesa, um copo de bebida, uma taça de vinho, mas também três a cinco gotas de veneno. Por que ela também é devastadora. O dia inteiro ela se transmuda em sorriso, alegria, contentamento. Parece mesmo esperar o momento exato para reaparecer e agir. E sem querer, muitas vezes apenas porque ouviu a onda quebrando no cais, a pessoa começa a recordar e a sofrer. Então a saudade sorri, mas um sorriso dissimulado e frio. E também devastador.
A saudade é pássaro, é passo, é vento soprando. Possui asas, vai e volta em instantâneos voos. Num instante e já está trazendo no seu bico um bilhete que faz atormentar ainda mais. Com poder próprio de ação, de comando de vida e destino, ela abre a janela, escancara a porta, e segue adiante em correria. Não se incomoda com curvas, desafios ou perigos, pois sobe da terra e alcança as nuvens. O pensamento é seu caminho mais certeiro, aquele por onde trafegam as vontades, os desejos, as necessidades da alma. Basta pensar e já se está caminhando. Basta imaginar e já se está diante da pessoa que se deseja reencontrar. No encontro a desilusão, eis que mesmo tendo voz de súplica, a saudade não consegue transportar o outro até a presença de quem tanto entristece pela distância.
Talvez esta seja sua maior falha: sente necessidade de ter bem ao lado, de usufruir, de se dar, e por isso mesmo se apressa em direção ao desejo, mas não pode transportar fisicamente a pessoa desejada. E a certeza de ter avistado na mente, a certeza de ter conseguido estar face a face, bem como a certeza que o reencontro fortaleceu ainda mais o amor sentido, são as consequências mais dolorosas provocadas pela saudade. A mente avista, o corpo sente, parece que está à presença, tudo se transforma em possibilidade, mas apenas a ilusão que conflagra e devora. Sofre, chora, se aflige, se atormenta, mas nunca desiste, pois toda grande saudade sempre retorna, e tantas vezes mais forte que a pessoas chega às portas do ensandecimento. E como vento vai, ganha asas novamente pelo ar e faz surgir da aflição uma velha cantiga de amor.
A saudade é tão ardilosa quanto estrategista. Se oculta, mantem-se escondida, foge de situações para reaparecer em outros contextos. Sempre silenciosa, premeditadamente soturna, só fala intimamente e muitas vezes chegar a gritar o mais alto dos gritos. Talvez com poderes mágicos, acaba conduzindo a pessoa para ambientes propícios a desvelar seus mistérios. Abre a porta do quarto sem se preocupar em acender a luz e simplesmente diz: agora sinta toda saudade guardada no peito, incontida na alma, revelada no teu coração que desespera por tanto esperar qualquer reencontro.
E no silêncio do quarto escuro, em meio a mais aflitiva das solidões, novamente faz surgir a sua silenciosa voz: agora reencontre na mente o que deseja, vá buscar no pensamento aquilo que lhe faz tanta falta, e não veja distância naquilo que pode ter agora ao teu lado. E vai fazendo com que a pessoa relembre a face do amor distante, traga ao pensamento os laços familiares que já estão em outra dimensão, relembre momentos e situações e tenha necessidade de ter tudo de volta, ao menos por alguns instantes. E não para por aí. Abre a janela para as cores do entardecer sejam avistadas, para que a poesia da noite recaia em versos, para que a chuva molhe o rosto e se misture às lágrimas. Depois de atormentar a alma, de afligir todo o ser, simplesmente vai embora.
Vai embora, a saudade vai embora, mas não sem antes deixar um rastro de agruras e sofrimentos. Sempre deixa para trás um lenço molhado, um olhar vazio, um coração fragilizado. Mas depois retorna. Espera somente o lenço enxugar para depois retornar.


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Lá no meu sertão...


Capela de Santo Antônio do Poço de Cima - Passado e Presente



O que posso dar (Poesia)



O que posso dar


Que dê o amor
mas só dou
o que posso dar

viver humilde
casa simples
no meio da roça

uma paisagem
de lua e de sol
e um amor imenso

flores do campo
café com leite
e cafuné

e todo meu amor
pois só dou
o que posso dar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – quantas vidas morreremos para que a insensatez nos aviste e cuspa sobre nossos restos?



*Rangel Alves da Costa


Sim. Quantas vidas morreremos para que a insensatez nos aviste e cuspa sobre nossos restos? Sim. Quantas lágrimas choraremos para que o desumano poder sinta que não choramos em vão nem fingimos a perda dos nossos? Sim. Quantas sepulturas serão abertas e corpos sem despedida serão enterrados para que o gracejo do governante sinta as areias encobrirão vidas e não quaisquer putrefatos restos? Sim. Quantos medos sentiremos, quantas angústias sofreremos, quantas dores padeceremos, até que o abjeto e indiferente olho do poder aviste o pranto que se alastra entre todos? Sim. Quantos morrerão sem nome, quantos simplesmente deixarão de existir, pela incúria, pela desumanidade e insensatez de alguém que se diz governante? Sim. Até quando?


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sexta-feira, 22 de maio de 2020

A DOR E AS PALAVRAS AO LEITO



*Rangel Alves da Costa


Um relato angustiante, certamente. Uma realidade – ou ficção, se assim desejem – mas tão presente no cotidiano de muita gente, senão de todos. Quem já não sofreu perante o leito de um parente enfermo?
Quem nunca experimentou a dor de sofrer o mesmo sofrimento do outro, mas ainda assim buscar forças inexplicáveis para “fingir” o que sente e, assim, fazer da ilusão um meio de abrandamento da angústia do enfermo. E muitas vezes já em estágio terminal.
A pessoa doente, em enfermidade profunda, e então o outro se aproxima como se ali estivesse para um abraço de alegria. A aparência engana o que o coração não pode esconder. A boca quer sorrir, mas os olhos querem chorar. Quer demonstrar calma, força, até alegria, mas tudo vai se dobrando ao sofrimento.
Parecendo o cenário da pintura “A Menina Doente”, de Edvard Munch, onde uma mãe está sentada ao lado de sua filha enferma, zelando pelos seus últimos instantes de vida.
Na pintura, as faces esmaecidas da menina, num tormento de fim de vida, enquanto sua mãe pranteia internamente a sua dor. Uma representação triste, comovente e demasiadamente realista.
Desta feita, também um parente zelando pelos últimos momentos de um ser amado. Uma filha e uma mãe. Uma filha sofrendo a mesma dor da mãe, e uma mãe já sem forças para esboçar qualquer reação, senão através de palavras:
“Não chore assim, minha filha. Não chore que vou melhorar...”.
“Mas não estou chorando, mãe, não estou chorando. Só estou um pouco entristecida por tanto sofrimento que a senhora está passando e nada dessa doença ir embora...”.
“Oh filha, suas lágrimas chegam a cair sobre minha face...”.
“Aqui está muito quente e estou suada. Deve ser apenas isso. Deve ser apenas o suor respingando sobre a senhora...”.
“Já não tenho a idade das ilusões, minha filha. Lágrimas são lágrimas, respingos são respingos...”.
“Tá bem, minha mãe, tá bem. Não vou mais chorar. É que sofro tanto ao ver a senhora assim. Dia após dia e a senhora sem ter diminuição nessa febre, nessas dores...”.
“Oh filha, os tempos também chegam. As folhas perdem o viço e se vão com a ventania...”.
“Não fale assim, minha mãe. Por favor, não fale assim. A senhora vai logo ficar bem. E não demora muito e faremos uma viagem maravilhosa...”.
“Viagem, viagem, é o que eu farei minha filha. O vento sopra, tudo em açoite. E logo virá a ventania...”.
“Tome aqui esse remédio. Já está na hora. E, por favor, não fale mais nessas coisas de vento, de ventania. Tudo isso me entristece e sei que a senhora vai ficar logo boa...”.
“Lembra-se de quantos dias, semanas e meses, que eu venho tomando esses remédios sem parar. Qual foi a melhora que eu tive?...”.
“Mas eu sinto melhoras sim. Talvez a senhora nem perceba, mas suas faces ficam mais cheias de vida e sua disposição aumenta quando toma os remédios...”.
“Sei que tudo faz para me encorajar, para fazer com que eu penso que estou melhorando. Mas também sei que os remédios não fazem mais qualquer efeito...”.
“Oh minha mãe, não diga assim. O médico mesmo veio aqui, examinou a senhora, prescreveu os mesmos remédios e disse que a senhora logo vai ficar curada...”.
“Está ouvindo, minha filha, está ouvindo?...”.
“O que minha mãe, ouvindo o que? Ouço apenas o cortinado se balançando pelo vento que bate de vez em quando. Apenas isso. Agora tente dormir um pouquinho...”.
“Não. É a ventania. Ouça!...”.
“Não se preocupe. Vou fechar a janela e ajeitar as cortinas. Não haverá mais nenhum barulho e a senhora não ouvirá mais qualquer som...”.
“Deixe-me apertar sua mão. Dê-me a mão, minha filha. Aperte bem a minha mão...”.
“Por que?”.
“Sou apenas uma folha. O outono chegou. Já não tenho forças para mais nada. Sinto a ventania, sinto a ventania. Estou sendo levada, minha filha...”.
“Não diga isso. A senhora ainda será primavera e a beleza de sua flor...”.
“Filha minha... O vento vem, vai chegando a ventania. Já não me sustento em nada. Que não me leve distante na triste folha que sou. Filha minha, já vou...
“Mãe, mãe?...”.
Nenhuma palavra mais. Nenhum suspiro. O outono havia chegado. A ventania havia levado. Um silêncio profundo. Um grito de dor que vai se soltando das amarras do silencio forçado para se soltar. E que agonia...
Parece aquela cena retratada por Munch. Mas o pintor retratou uma realidade. No quadro, a doente era sua irmã. Sua mãe aquela que sofria ao lado. A pintura não tem voz. Mas a tudo ouvimos e sentimos.
Os leitos enfermos são como folhas secas que vão esperando outonos. As lágrimas ao lado tudo fazem para reanimar e novamente chamar o viço do viver.
E quando a mão se desprende, quando se solta da outra, então a ventania perfaz seu destino. Na folha seca da face, a morte.


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Lá no meu sertão...


Nas entranhas de meu sertão...


A lua é linda (Poesia)



A lua é linda


A lua linda
noite nublada
o luar se fez nada
mas a lua é linda

meu amor é lua
espero e não vem
solidão pela rua
mas ela é linda

ela é minha lua
o desejo não finda
e vai aparecer
pois a lua é linda.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – água de beber



*Rangel Alves da Costa


Água de beber e matar a sede se a sede aparecer. Moringa ou pote, purrão ou quartinha, em tudo a água de beber. Caneca ariada, lustrosa de o brilho aparecer, e surgir fresquinha a água de beber. Coada em pano, adormecida na noite, até a sede da lua quer água de beber. O barro de paredes suadas e frientas por fora, refresca lá dentro a água de beber. Se a janela é aberta e a noite é de brisa, então mais saborosa é a água de beber. A caneca por cima ou pendurada em gancho, vai brilhando na luz e querendo ser molhada na água de beber. Que cansaço e suor, que sede e fadiga, a boca clamando por água de beber. Mas espera um pouquinho e cata uma cocada, mariola ou mudinha, um doce de leite, e depois se deleita na água de beber. Estende a rede e adormece sonhando com o prazer de viver. E acorda em oração para agradecer pela água de beber.


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quarta-feira, 20 de maio de 2020

UMA PRECE MATUTA



*Rangel Alves da Costa


Misericordioso Senhor, Pai onisciente, onipotente, onipresente, Ser que a tudo vê, a tudo sente, em tudo está. E, por ser assim, que sempre esteja no altar do sertanejo mundo, onde os pobres e desvalidos se ajoelham junto ao pedestal a rogar graças pelas bem-aventuranças de sua terra.
Que o seu tempo de Eclesiastes seja também o tempo do homem do campo. E assim, que o sol saia, mas também que a chuva caia. Que o calor abrase, mas que a mansidão das brisas boas sopre pelas feições de seu povo. Que não seja somente a dor, pois todo ser humano merece também a alegria e a felicidade.
Que o sol por alguns dias se isole, fique nas distâncias dos horizontes sertanejos, para que a chuva chegue como milagre divino cheio de esperanças. Que o calor abrasado se vá para o leito das águas e em seu lugar venha a brisa boa, o frescor confortante e o suave sopro alentador.
Que o céu azulado e aberto se distancie em repouso temporário e nas alturas vão surgindo as cores esperançosas de um sertão nublado, com nuvens carregadas e trovões anunciando a chegada da chuvarada.
Que as portas e janelas se fechem, não apenas pelo isolamento, mas para que os pingos d’água fiquem somente na terra, se esparramem pelo chão, façam transbordar açude e tanque. Que a planta definhando se esconda e em seu lugar surja um viço novo, verdejante e florido.
Que o silêncio das ruas e a calmaria dos descampados, sejam de repente cortados pelo barulho das chuvas, pelos bichos em alarido e o sertanejo em prece de agradecimento. Que ao cair, as chuvas boas escorram pelos campos, inundem as fontes, verdeje a vida, faça renascer a paz.
Que o ficar em casa não seja nem para a tristeza nem para a desolação, não seja para pensar angústias nem tecer mais aflições, e sim uma renovação de tudo que alimente a alma e fortaleça o ser.
Que os dias não sejam cansativos pela espera nem angustiantes pela incerteza, mas tão somente dias que passarão para os novos dias, e estes cheios de luz, de saúde e de paz. Que o coro dos anjos volte a cantar, que os sinos voltem a dobrar, que os cantos de amor e de fé voltem a ecoar pelas ruas, pelos lares, pelos campos e além.
Que tudo se renove e se refaça, pois tudo desejo sagrado. Os seres que agora padecem e sofrem são filhos de Deus. E Deus não abandona os seus!


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Lá no meu sertão...


Pelos caminhos do sertão, ele passou, ele seguiu...




No silêncio da noite (Poesia)



No silêncio da noite


Era tarde
e depois noite

não teve por do sol
nem sino tocando

não vi a lua saindo
nem vaga-lume vagando

eu estava entristecido
talvez não fosse assim

eu estava entristecido
talvez nem estivesse em mim

só lembro que eu chorei
uma lágrima chamada solidão

depois o meu lenço voou
em busca de qualquer manhã.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – no varal



*Rangel Alves da Costa


O varal, aquele cordame estendido para o enxugamento de roupas, possui uma simbologia imensa. O varal recebe a roupa refeita depois de lavada, acolhe o lenço ainda encharcado de lágrimas, sente o pouso do passarinho, embalança com o balançar das roupas enxutas, ao sabor do vento, da ventania. Toda vez que passo num quintal e avisto o varal, é como se o cordame balançasse vidas, embalançasse dores, ressecasse lágrimas e aflições. É como se as roupas estendidas de braços abertos quisessem se abraçar, quisessem voar, ir além pra qualquer lugar. Os lenços que enxugaram olhos pranteando amores, os lenços que se encharcaram de saudades e recordações, agora ressequidos temem a desilusão. Tão belo o varal, mas tão triste o varal. De repente vejo uma camisa solta ganhando os espaços. De braços abertos como quer abraçar. Vai subindo aos espaços em busca de abraços, buscando o amor terreno que o céu desfez os laços.


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terça-feira, 19 de maio de 2020

COMO NASCE UM LIVRO



*Rangel Alves da Costa


A construção de ZÉ DE JULIÃO: A SAGA DE UM EX-CANGACEIRO DE LAMPIÃO, foi trabalho duro, árduo, demorado e até cansativo.
Mas também prazeroso, motivador, instigante e de imensa satisfação. Ora, a pesquisa e o desenvolvimento de tema tão instigante e importante na história sertaneja, certamente que mais anima que causa desolação.
Eu (Rangel) e Manoel Belarmino, já tínhamos em mente o esboço, o pedestal, a estrutura, através das pesquisas que já vinham desde os escritos e anotações da Alcino Alves Costa.
Mas como contar num livro, ou construir uma obra que percorresse toda a trajetória de vida, desde a infância à morte, deste que é tido por muitos como o personagem mais importante da história de Poço Redondo?
Como contar em detalhes, passo a passo, a grandiosa saga deste bravo sertanejo chamado José Francisco do Nascimento (Zé de Julião, ou ainda o cangaceiro Cajazeira, esposo da também cangaceira Enedina)?
Como dito, não foi tarefa fácil. Viajamos, pesquisamos pelas estradas e nos escritos, visitamos pessoas que fizeram parte de seu mundo, entrevistamos filhos, parentes e amigos. Fomos ao impossível em busca da construção de verdades.
Sentamos, cotejamos detalhes, discutimos situações, chegamos a consensos e dissensos, tracejamos a quatro mãos. E, enfim, a obra então concluída.
E, por fim, o nosso livro já prestes a chegar às mãos daqueles que desejam conhecer a saga desse grande sertanejo com tantas e múltiplas características. Sim, muitas feições porque Zé de Julião foi um sertanejo muito diferente do que normalmente se tem.
Ora, foi rebelde, crítico, sonhador, mulherengo, cangaceiro, construtor, político, por duas vezes candidato a prefeito de Poço Redondo, injustiçado e perseguido, envolvido no mundo coronelista, morto à traição.
A história, ou a grandiosa e triste história de Zé de Julião. Uma saga de alegria, esperança, sofrimento e dor. E você já pode adquirir o seu livro por antecipação. Basta encomendar que logo chegará às suas mãos.
Fale com Rangel ou Belarmino, ou entre em contato pelo telefone (79) 99830-5644 (Whatsapp).


Escritor
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Lá no meu sertão...


Ao lado do Mestre Tonho



Ao fogo e ao vento (Poesia)



Ao fogo e ao vento


Ao fogo e ao vento
longe do pensamento
as folhas mortas
as folhas tortas
depois de rasgadas
e bem amassadas
de um caderno
que imaginou
amar

poemas e corações
iludidas declarações
ao falso amor escritas
em letras bonitas
sem imaginar
que tanto amar
tornasse em lamento
e hoje merecesse
ir ao fogo e ao vento.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – os dois meninos e o gol



*Rangel Alves da Costa


Ontem eu ia passando ao lado da quadra de esportes da Praça Eudócia, em Poço Redondo, sem sequer prestar atenção em dois garotinhos que brincavam de bola, quando de repente ouvi de lá de dentro um deles gritando: “Vou marcar um gol pra Rangel!”. Olhei surpreendido, não reconheci o garoto, mas vi quando ele chutou e depois vibrou com o gol, já olhando, alegre e satisfeito, em minha direção. Mas o outro meninote que servia de goleiro, prontamente retrucou: “Seu bestinha. Eu só deixei a bola passar porque o gol era pra Rangel!”. Tão emocionado fiquei que até me esqueci de tirar uma fotografia dos dois e eternizar comigo aquele momento mágico e encantador. Tão encantado fiquei que até me esqueci de perguntar os seus nomes. E, agora tomado de tristeza pelo esquecimento da aproximação, confesso que continuo sem conhecer nenhum dos dois. Como sou ingrato com a vida tão bela que me é ofertada!


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sábado, 16 de maio de 2020

A MESA E A FOME



*Rangel Alves da Costa


Em meio à natureza, no seu habitat natural, o bicho até pode emagrecer demais por carência de alimentos, porém nunca será visto em situação de sobrepeso ou de obesidade. Grandes, largos, corpulentos, mas jamais pelo excesso de gordura, e sim pela própria compleição física de cada espécie.
Contudo, quando o bicho é caçado pelo homem e passa a viver em ambiente doméstico, logo perderá seu aspecto físico natural. E assim ocorre pelo fato de ser alimentado da forma que o homem faz na sua alimentação: exagerada, gordurosa, desequilibrada. O resultado será uma obesidade contrastante com a normalidade do bicho.
O porco, por exemplo, jamais alcançaria um exagero de quilos, de modo até a não poder mais caminhar, acaso seu ambiente de vida fosse distante do homem e seu chiqueiro tomado de restos de alimentos da mesa, lavagens, rações gordurosas e produtos químicos próprios à engorda. É criado assim por que quanto mais banha alcançar mais presumidamente gordo será, e com isto vendido pelo peso.
Noutra situação, um porco do mato é todo esguio, esbelto, na grandeza e na largura apropriados ao seu tamanho. Não existem lobos gordos demais nem elefantes obesos. Não existem guaxinins fora de forma pelo peso ou onças com sobrepeso. Mas basta que a onça seja domesticada num circo, por exemplo, e toda sua estrutura biológica e química será transformada.
O animal, seja leopardo, raposa, tigre ou hiena, come apenas na sua medida. É a sua fome que vai medir o tamanho de seu prato. Mas não com o exagero humano de ingerir cada vez mais alimentos sem qualquer necessidade, sempre forçando dilatação de seu estômago e consequentemente a obesidade. Já o animal se contenta em apenas se alimentar, não forçando nada além daquilo que seu estômago pede.
Uma ilustração. De repente um tigre, sempre à espreita de sua presa, sai de seu esconderijo e corre em disparada em direção a um lobo. Veloz, atroz, levado pela necessidade de alimento e pela fome que está sentindo, num bote avança sobre a presa e prega seus dentes afiados no pescoço do indefeso animal. Daí em diante, e rapidamente, grande parte do lobo é devorado. Quando está saciado, ou deixa os restos para outros animais ou arrasta para algum esconderijo nos arredores. Será a garantia de uma comida posterior.
Não se observa, contudo, o tigre forçando a ingestão de mais e mais alimento. Acaso fosse assim, ali ele permaneceria para roer até os ossos. Assim ocorre com os demais animais, cuja fome faz devorar suas presas, mas sem fazer disso um desperdício na sua mesa natural. Ademais, não é uma questão de apenas matar o outro animal pelo prazer de sangrar sua jugular, mas de necessidade de sobrevivência, de uma imperiosa necessidade de se alimentar para recompor suas forças e se proteger dos avanços de outros predadores.
Mas o que ocorre com homem na sua dieta? Totalmente o inverso do coelho, do tamanduá, da girafa, da lebre, da zebra, do elefante, do lince, do leopardo. Perante a mesa, ante sua gula infinita, o ser humano é um descontente por natureza. Parece mesmo que a sua gula é tão doentia quanto o alimento que ingere. Geralmente, não há limitação do homem perante o que lhe é disposto enquanto alimento. Quer mais e sempre mais, come mais e sempre mais.
Somente quando o alimento é escasso ou pouco mesmo, situação em que não pode desejar sequer um tiquinho a mais e muito menos repetir o prato, é que o homem se dá, forçosamente, por satisfeito. Mas não quando a comida é farta, quando a mesa é grande e as carnes e os mexidos são muitos e variados. Enche o prato, come de se lambuzar, sempre coloca mais e parece até querer chorar quando já não lhe cabe mais nem uma perna de frango. Despede-se da mesa tristonho, cheio demais, largo demais, esbaforido por dentro e por fora, mas prometendo logo voltar. E volta mesmo. Não espera nem a digestão se completar e novamente já estará enchendo um prato.
Como observado, na forma de se alimentar também uma grande diferença entre o bicho e o homem. O animal é comedido, é educado perante sua mesa e seu alimento. Quando o cachorro é gordo demais, assim o é pela mão humana, que lhe empanturra do que não presta. Assim como faz a si mesmo, devorando tudo pelo prazer da gula, acha que o seu bicho doméstico também deve ter sua doentia obesidade.
Bastaria que se mirasse na dieta dos bichos. Alimentar-se por que é preciso, mas somente na medida da fome. Jamais esvaziar tudo que estiver adiante e encher tudo que estiver por dentro e por fora. E como resultado esse balofamento todo que se vê por aí, onde roupa não cabe mais e até a pessoa não cabe mais em si mesma.


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Lá no meu sertão...


Ouvir o silêncio...



Estranho amor



Estranho amor


Esse estranho amor
que aceita espinho e flor
que no frio sente tanto calor
que sente no fel gostoso sabor

uma paixão que inverte
até que a teia desfaça o laço
a distância no lugar do abraço
e a singeleza se torne puro aço.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – eu e os bichos



*Rangel Alves da Costa


Então eu me afastei da cidade e fui prosear com os bichos. Cheguei rente à porteira, um tanto desconfiado do que eles poderiam pensar de mim, mas fui bem recebido. Adiante, um monte deles, e foram se achegando ainda mais. De repente, estávamos todos ali, somente a porteira nos separando, assim como velhos amigos em passageiras visitas. Eu sabia que eles desejavam que eu puxasse a conversa, pois todos calados e olhando em minha direção. Então comecei a prosear. E logo fiquei sabendo de uma pessoa muito rica, dona daquilo tudo, e de nome “Seu Bé”, talvez seja isso mesmo. Perguntei: “Quem é o dono desse pasto?”. Responderam: “Bé”. Perguntei: “De que é essa propriedade?”. Responderam: “Béé...”. Fiz mais perguntas: “De quem é aquele montão de terra a perder de vista?”. Bééé...”, foi o que responderam. Por fim, indaguei onde esse Bé estava. Então todos chamaram numa só voz: “Bééééé...”. Esperei mais de meia hora e o tal de Bé não apareceu. Fui embora, mas já longe eu ainda ouvia: “Béééééé...”.


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