SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O SER SEM DISFARCE


Rangel Alves da Costa*


Haveria possibilidade de o ser humano ser apenas o que é e, sem disfarce, agradar não somente a si mesmo? Haveria possibilidade de o indivíduo refutar todo adorno e toda exteriorização que possa ter por cima de si e se manter apenas com o que originalmente lhe cabe?
Por outras palavras: Haveria possibilidade de o ser humano desprezar todo tipo de vestimenta, de enfeite, de utensílio ou qualquer outro objeto por cima do corpo e ainda assim ser reconhecido ou valorizado socialmente?
Quer dizer, o ser humano e o seu desprezo pelas vestimentas e quaisquer outros adornos, de pés descalços, cabelos sempre ao natural, com o perfume da própria pele, sem relógio ou anel. O seu luxo se bastaria no alimento comedido, na higiene pessoal e nos afazeres cotidianos iguais aos demais.
Mas não somente isso, pois também um indivíduo sem palavras além das necessárias, sem ações além das necessárias, sem nada além do estritamente necessário. Quer dizer, alguém vivendo dentro dos limites da existência, sem ultrapassar o que lhe cabe fazer para apenas viver.
Seria possível o indivíduo viver e ser aceito socialmente sem que leve consigo a fama que tem, o prestígio ou o nome familiar? Em meio à sociedade que sempre olha para o adorno ou o brasão, seria possível a sobrevivência daquele que é pobre, que não possui amigos influentes, não tem carro, conta bancária nem usa roupa de grife?
Numa roda de pessoas cheias de anéis, etiquetas, títulos e graduações, caberia a palavra daquele que apenas sabe ler e escrever, mas que trabalha muito mais que qualquer outro que se diga honoris causa em tudo? O ser comum, alguém somente do povo, seria ouvido e respeitado diante de figurões com suas vaidades e arrogâncias?
A verdade é que todo mundo acostumou a menosprezar o valor intrínseco do ser humano. Prevalecendo a exteriorização, o adorno ou a etiqueta, ou ainda a imagem imposta, certamente que nenhuma importância terá aquele que nada mais é que o ser humano na sua essência, porém despido das honrarias tão exigidas pela sociedade.
Ora, qual a importância terá aquele que não tem formação educacional, não possui anel no dedo nem é chamado doutor, diante daquele que é tudo isso e muito mais? A sociedade reverencia mais aquele de paletó e gravata ou aquele descalço, o que estaciona um carro importado ou o que passa montado num jegue, aquele bem vestido e penteado ou aquele de roupa rasgada?
As respostas são óbvias. Todo mundo prefere valorizar o que está além do próprio ser ao próprio ser em si. Em casos assim, tanto faz que a pessoa seja da pior índole, pois seu julgamento está garantido pelo que é externamente ou pelo que possui. Tanto faz que tenha honra ou caráter, pois tudo se justifica pelo poder, pela riqueza, pelo que demonstra ter. E o outro, aquele que apenas é sua realidade, nada será diante de olhos que só enxergam brilhos, ainda que falsos.
Num mundo de recompensas, bajulações e conveniências, dificilmente haverá espaço para o ser sem disfarce. E o ser sem disfarce nada mais é que o indivíduo revestido apenas pelo que tem porque praticamente nasceu com ele. É o indivíduo caracterizado apenas pelo caráter, pelo jeito humilde de ser, possuindo o bastante que a sua condição humana lhe permita.
O ser sem disfarce é apenas o que é. Não possui adornos nem riquezas, não é amigo de autoridade nem vive se prevalecendo de ter poderosas influências. Seu luxo é o de não passar fome, seu título maior é a ética pessoal, sua riqueza maior é poder andar de cabeça erguida e adormecer sem preocupação com dívidas ou perseguições. Não tem dinheiro, mas também não deve; não possui muitos amigos interesseiros, mas os que possuem merecem sempre ser reconhecidos e valorizados.
Eis o ser sem disfarce. Contudo, um ser quase em extinção na selva onde se privilegia muito mais a aparência que a verdade.


Poeta e cronista
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O cisne triste (Poesia)


O cisne triste

Nem cisne branco
nem o cisne negro
apenas um cisne triste
sempre à beira do lago
esperando um dia quebrar
o longo feitiço da solidão

e avista um cisne branco
prometido ao coração do rei
e avista um cisne negro
trazendo dor no coração
e então se joga nas águas
e se deixa lentamente levar
até a margem da realidade
onde talvez possa encontrar
o belo cisne chamado amor
e depois bailar a valsa da vida
cheio de alegria e prazer
até que a paixão duradoura
seja o adeus do último ato.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 510


Rangel Alves da Costa*


“Quis ir...”.
“Mas fiquei...”.
“A estrada é longa...”.
“Tanto sol...”.
“Tanta lua...”.
“Destino incerto...”.
“A saudade tanta...”.
“O amor demais...”.
“Prefiro ficar...”.
“Quis chorar...”.
“Mas sorri...”.
“Sinto tanta dor...”.
“No peito um pavor...”.
“Tanta tristeza...”.
“Tanta solidão...”.
“Tinha que chorar...”.
“Mas prefiro sorrir...”.
“Quis dormir...”.
“Mas não adormeci...”.
“Preciso pensar...”.
“Olhar para a telha...”.
“Avistar o meu barco...”.
“Navegar...”.
“Navegar...”.
“Encontrar o mundo...”.
“Tudo tão distante...”.
“E depois voltar...”.
“Se a viagem cansar...”.
“Hei de o sono abraçar...”.
“Quis amar...”.
“Mas não amei...”.
“Amar é bom...”.
“Mas é ruim...”.
“Faz alegrar...”.
“Mas faz sofrer...”.
“Tanto ter...”.
“E tanto perder...”.
“Pensar que tem...”.
“E não ter ninguém...”.
“Depois do beijo...”.
“A boca seca...”.
“Querer amar...”.
“E nada encontrar...”.
“Quero plantar...”.
“Quero colher...”.
“Quero a certeza...”.
“Pouco ter...”.
“Mas ter o meu...”.
“Sem que a ilusão...”.
“Venha com o prato...”.
“E afaste a mão...”.
“Basta que eu tenha...”.
“O coração...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

NAS VEREDAS DO MEU SERTÃO


Rangel Alves da Costa*


Vereda é palavra que nasce matuta, entrincheirada nos apertados do mundo, quase sempre escondida nas matarias. Mas também pode ressoar como percurso onde se avista o destino ou a esperança. Vereda pode significar tanta coisa.
Dependendo da intencionalidade da palavra, vereda pode expressar atalho, caminho estreito, clareira aberta na vegetação; mas também lugar de maior abundância em meio à caatinga, local apropriado para o cultivo. Nas veredas da vida, a existência.
Mas aqui, onde a viagem é por trilhas matutas, sertanejas, vereda tem somente um significado, mas de longo alcance: os difíceis, estreitos e espinhentos caminhos, incrustados no meio da mataria, envoltos em pedras e cactáceas, por onde o sertão caminha.  
Naquela vereda Lampião mil vezes passou na sua luta de todo dia. Saía do coito, desaparecia, entrava no mato e inventava uma estrada. Avançava em meio a xiquexiques, tocos espinhentos, cipós e galhagens, num silêncio de cobra rastejante.
A mata é perigosa, possui ouvidos e olhos, por trás da moita o inimigo, nos escondidos a traição. E a vereda apenas espera que o andante apresse o passo, não perca tempo afastando garranchos e folhagens, apenas siga rumo à clareira ou ao esconderijo debaixo das pedras grandes.
A via é estreita, difícil demais, mas o bando inteiro, conhecedor da vereda e seus segredos, parecia estar caminhando por uma estrada aberta, enxergando porteira lá adiante. Mas havia de ser assim. O mato fechado e caminho apertado eram uma coisa só para quem tinha de estar acostumado com os perigos de cada passo na estrada.
Vereda era trilha do coiteiro, do caçador, do homem do mato. Onde ninguém mais avistava chão possível de caminhar, lá ia o roló para pisar no caminho. Estradinha que não tinha errada, pois ia dar no coito cangaceiro, no tufo onde a caça se escondia, no esconderijo mais escondido do mundo.
E foi abrindo veredas que o sertão se fez conhecido. A vereda foi sua primeira estrada. Num tempo de mata fechada, ainda virgem e exuberante, sem curva ou norteamento, somente o facão para derrubar pé de pau, afastar o mato rasteiro e permitir caminhada. Seguir para onde? Ora, apenas ir adiante, sempre adiante.
Naquela vereda o velho desbravador, primeiro bandeirante sertanejo, caminhou sem destino, derrubando na foice o empecilho, vencendo na lâmina os  tufos impedindo passagem. Seguiu adiante e deixou atrás as primeiras estradas. E sabido é que onde o homem pisa o mato não cresce do mesmo jeito.
Naquela vereda o homem da terra foi abrindo porteira para novos horizontes. Tudo mataria, tudo mato fechado, perigoso e desafiador, e só mesmo a força dos conquistadores para vencer os espigões, as pontas cortantes, os animais peçonhentos, até alcançar descampados e estabelecer moradias, fundar vilas e cidades.
Naquela vereda passou Antônio Conselheiro na sua trilha sertaneja de revolta e fé; por aquela vereda passou o forasteiro temendo o desconhecido, avançando às cegas para fugir das bocas e olhos avistados na escuridão das folhagens; naquela vereda caminhou o boi e o jumento, o cavalo e o bicho doméstico, o homem e sua família, em busca de assento na imensa e desconhecida casa chamada sertão.
Naquela vereda passou meu avô, meu pai e eu também. E por suas trilhas também passarão os meus filhos e os filhos dos meus filhos, uma geração inteira desde a primeira, porque somente através dela é possível encontrar o lar, um pedaço de terra, o grão e a semente, a vida inteira.
Toda vereda é meu chão. Estrada e passo do meu sertão. Ainda que o asfalto desponte adiante, liso e reto, eu prefiro caminhar pelas trilhas onde me reconheço e encontro minha razão de ser tão sertanejo.


Poeta e cronista
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Outono e primavera (Poesia)


Outono e primavera


Por amor viver
entre duas estações
estar na primavera
e também no outono
eis que o tempo
ora de suave brisa
ora de ventania
sempre refletindo
sopro de sorriso
açoite de tristeza

avistar a flor
no instante amado
e logo as cinzas
no instante odiado
fazer sofrer o jardim
que não tem culpa
se nunca sabemos
qual a estação
outono ou primavera
realmente queremos.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 509


Rangel Alves da Costa*


“Os heróis morreram em batalha...”.
“Ter um trono e não ter a vida...”.
“A estrada não é só de encontros...”.
“Os desencontros são trazidos no vento...”.
“Cavaleiros de brumas e tristezas...”.
“Sombras da noite em corações escurecidos...”.
“Parece tudo antigo e tão agora...”.
“Fortalezas desfeitas pelos inimigos...”.
“Um rei que fingia bondade...”.
“Um reinado onde era tudo fingido...”.
“Todo ouro era de latão...”.
“Todo brilho era enferrujado...”.
“Toda glória era ilusória...”.
“Nem soberano o rei era mais...”.
“Quem se desumaniza se torna incapaz...”.
“E uma princesa chorando aflita...”.
“Compreendendo a vida e toda aflição...”.
“Servos e camponeses na dor e miséria...”.
“Um povo sofrido sem ter o seu pão...”.
“Sem ter moradia e sem educação...”.
“Sem ter esperança de dias melhores...”.
“Apenas ajoelhado aos desejos do rei...”.
“Um rei de mentiras e de absurdos...”.
“Onde dizia ouro estava a pedra...”.
“Onde dizia luz estava o breu...”.
“Onde dizia a melhoria estava o destroço...”.
“Nada que dizia era acreditado...”.
“Mas o povo o aplaudia e se punha ajoelhado...”.
“O povo confiava no rei...”.
“Quanto mais o rei chicoteava...”.
“Mas o povo lhe aplaudia...”.
“Quanto mais o rei escravizava...”.
“Mas o povo acenava contente para o rei...”.
“Quanto mais o rei massacrava...”.
“Mais era visto como o rei dos reis...”.
“O rei aumentava impostos...”.
“E o povo fazia lhe fazia festa...”.
“O rei aumentava os tributos...”.
“E o povo só faltava beijá-lo...”.
“E por mais que o rei mandasse açoitar...”.
“Ferir ou cegar...”.
“Mais o povo dizia vida eterna ao rei...”.
“Até que um dia...”.
“Depois de fazer todas as maldades...”.
“E o pai o endeusar ainda mais...”.
“Eis que o rei decidiu ser bonzinho...”.
“Mandou distribuir um cartão...”.
“Que dava muitos direitos ao povo...”.
“Principalmente moeda e alimentos...”.
“Então o povo se revoltou...”.
“Mas continuou aplaudindo o rei...”.
“Porque aquele cartão era a segunda coisa mais importante da vida...”.
“A primeira era...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

DELENDA CARTAGO (AS LIÇÕES DO TEMPO PRESENTE)


Rangel Alves da Costa*


Delenda est Carthago: Cartago deve ser destruída! Era o furioso grito do império romano contra o seu inimigo cartaginês, que deveria ser urgente e completamente aniquilado. As ameaças devem ser combatidas com precisão e rigor, de modo a não dar chance a soerguimento e se tornar novamente em ameaça. Ou se destrói de vez a adversidade ou esta retomará forças para novamente se impor como difícil barreira.
Delenda est Carthago, foi a sentença proferida do alto da tribuna do senado romano por Marco Pórcio Catão, no sentido de que era necessário combater e destruir de uma vez por todas as ameaças da cidade de Cartago. Se por uma ou duas vezes uma ameaça se fez tão perigosa, não haveria como esperar mais uma afronta. O revide teria que ser dado antes da próxima ação. Se mesmo derrotado o inimigo não se fez prostrado, então que se coloque o ferro dos fortes sob o seu túmulo.
Segundo o tribuno, era preciso fazer todo esforço possível para aniquilar de vez aquilo que mais parecia uma Fênix que sempre renascia das cinzas. Parecia não reconhecer as derrotas impostas e persistia em querer vingança. Assim, afirmou o tribuno: Ceterum censeo Carthaginem delendam esse: Portanto, creio que Cartago deve ser destruída. E arrasada ao ponto de não restar nem o pó que possa pairar sobre Roma como nuvem do passado.
Mas por que essa fúria romana contra Cartago, cidade fenícia no norte africano, e que pela sua ousadia e destemor fez o tribuno Catão exigir sua completa destruição? Por que um povo tão pacífico e avesso a guerras ousou desafiar Roma em três contendas ao longo dos séculos III e II a.C.? Por que o general romano Cipião Emiliano teria chorado ao não deixar pedra sobre pedra na última cidade cartaginesa?
Tudo começou na disputa pelo poder marítimo no Mediterrâneo. Cartago, cidade antiga e bastante desenvolvida na arte da navegação, por muito tempo lutou contra os gregos pelo domínio marítimo e foi fixando seu domínio sobre ilhas importantes, como a Sicília e a Sardanha, que mais tarde passaram a ser cobiçadas pelos romanos. Na luta contra os romanos se deu o que a história denomina de Guerras Púnicas.
Desse modo, Púnicas foram as três guerras travadas entre Roma e Cartago durante quase um século, entre 264 a.C. e 146 a.C., pelo domínio das águas e do comércio do Mediterrâneo. Cartago, principalmente sob o comando de Aníbal, provocou grandes perdas ao império romano, mas jamais conseguiu derrotá-lo. Contudo, por já haver vencido duas vezes e ainda assim o exército cartaginês persistir como ameaça, o senador Catão exigiu seu total aniquilamento. E a última batalha foi tão destruidora que o general romano Cipião chorou sob os escombros da grandiosa e valente Cartago.
A frase proferida por Catão do alto da tribuna, um exemplo da força da oratória, não só expressa a necessidade de tomar medidas drásticas e urgentes em situações graves, mas principalmente ecoa como a urgência de se avançar em direção aos objetivos ainda que sobre o sangue do inimigo. Em busca da vitória, de firmar conquistas ou simplesmente afastar aquilo que se mostra como ameaça, tudo será justificado pelos fins almejados. E o poder como finalidade maior.
O exemplo romano-cartaginês pode ser avistável em diversas outras situações. Na política partidária, se expressa na necessidade de sepultar de vez os adversários, de derrotá-los não só moral como eleitoralmente. Aquele que mesmo derrotado continua como intimidação logo deverá ter contra si lançadas todas as armas, e estas indo desde a mera calúnia e difamação às acusações mais estapafúrdias. Mas que depois, em se tratando do submundo da política, não deixam de ter resquícios de verdade. E até comprovadas.
As palavras do tribuno romano também ecoam no mundo dos negócios, nas relações profissionais e onde haja disputa por poder ou por status. No jogo do vale tudo, ninguém respeita ninguém, e o mais normal é que tapetes sejam puxados, rasteiras dadas, falsidades e traições sejam vistas como normalidade. E quanto mais poderoso o contendor mais armas terá para afastar o inimigo, ainda que frágil e insignificante, do caminho das pretensões egoísticas.
Os egoísmos, as vaidades, as soberbas e os egocentrismos também espelham a ira romana contra a valentia e a persistência. É usual que aquele que se acha superior, mais importante ou mais capacitado entre todos, logo deseje diminuir ou menosprezar o outro que, sem representar qualquer ameaça, deseja apenas um lugar ao sol. Mesmo a humildade e a singeleza serão vistas, aos olhos do poder, como possíveis e futuras ameaças. E urge extirpá-las.
Assim, ainda na força do eco da fúria romana, a humanidade caminha ensinando que a gana dos fortes, dos poderosos, não se contenta apenas em derrotar, mas destruir completamente tudo aquilo que seja visto como adversidade, ainda que não represente qualquer ameaça mais consistente.


Poeta e cronista
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Mistérios profundos (Poesia)


Mistérios profundos


Há mais mistérios
entre o amor e o coração
que o amante desconhece

há mais segredos
entre o sentir e o amar
que toda percepção

há mais enigmas
entre o homem e a mulher
que toda imaginação

há em todo amor
uma esfinge e uma magia
e deuses sem as respostas

há em todo amor
um espelho e seu reverso
refletindo o seu inverso

e há uma deusa no templo
lendo sua sorte no amor
e sorrindo e chorando.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 508


Rangel Alves da Costa*


“O calendário cada vez mais apressado...”.
“A promessa que jamais será relembrada...”.
“Um dia após o outro e o mesmo dia de ontem...”.
“Tanta fartura ao redor e na mesa ou na boca...”.
“Uma mão de esmola ou mais uma...”.
“Uma África em cada Nordeste...”.
“Bolha de sabão que não estoura no ar...”.
“Um cavalo de pau apressado...”.
“Luar sem dragão e com a solidão...”.
“Um doido querendo janela...”.
“Uma pedra querendo tanto conversar...”.
“Um pião que vai girando sozinho...”.
“Na vida tanto redemoinho...”.
“Um lápis sem ponta e sem o caderno...”.
“Uma nuvem de chuva tomada de sol...”.
“Tantas marquises de meninos de lua...”.
“Camas desfeitas se adormecem na rua...”.
“Uma concha de mar sem segredo...”.
“Poesia que chora sem ter um final...”.
“É o romance e a saga da vida...”.
“É a vida transformada em história...”.
“Um conto de fadas dentro da realidade...”.
“Moringa chorando sem água por dentro...”.
“Uma porta que bate sozinha...”.
“Uma cancela sem ter visitante...”.
“Um cavalo riscando adiante...”.
“A morte feia que quer visitar...”.
“Antes de morrer é preciso viver...”.
“E tão difícil andar e mais difícil ter...”.
“Uma luta debaixo do sol...”.
“Peixe na lagoa pescando de anzol...”.
“Sem ter noite e sem ter alvorada...”.
“Tudo que some pela madrugada...”.
“Nem sonhar ninguém pode mais...”.
“A tempestade que chega está muito faminta...”.
“Que leve a ventania com sua boca voraz...”.
“Nada ser e ainda ser incapaz...”.
“Um mundo de cão sem coleira e doente...”.
“Andar pisando em cabeça de serpente...”.
“Ou a morte ou a morte há de ser...”.
“Piado de coruja adiante da casa...”.
“Um tempo de tristeza e de agonia...”.
“Tanto sofrimento num só coração...”.
“Findou o braseiro e restou o tição...”.
“Mas tudo há de ser e tudo será...”.
“Eis a vida ou o que dela restar...”.
“Tanto faz como tanto fez...”.
“Sem salário não precisa de mês...”.
“Canta aboio, um gemido mais triste...”.
“Se perguntar por dor eu sei onde existe...”.
“Nada mais eu sei...”.
“E se sei já devorei...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

DEUS E OS DEUSES EXTRATERRESTRES


Rangel Alves da Costa*


Eram deuses os astronautas, ou aqueles seres interplanetários que segundo as teorias extraterrestres nos visitaram nos tempos mais distantes para traçar a engenharia das antigas civilizações? Os adeptos das teorias dos antigos astronautas responderiam que sim. Mas respondo que não.
Segundo os teóricos que defendem a participação de seres extraterrestres na construção dos templos grandiosos nas civilizações passadas, bem como a sua intervenção na cultura e no pensamento dos povos antigos, astronautas vindos de outros planetas transitavam com suas naves diante dessas civilizações e as moldavam segundo seus desejos.
Desse modo, toda aquela engenharia misteriosa, grandiosa e até inexplicável, não teria sido possível apenas com a força do homem e a tecnologia disponível no momento. Tudo só foi possível, desde as grandes pirâmides e templos pré-colombianos aos imensos megalíticos dispostos por diversas regiões da terra, pela participação dos seres extraterrestres.
Segundo os teóricos, as Linhas de Nazca são obra da engenhosidade alienígena. Do mesmo modo os templos e monumentos astecas, maias e incas; as imensas figuras talhadas em rochas da Ilha de Páscoa; as enigmáticas construções de Stonehenge; os imensos frontispícios erguidos nos portais das civilizações passadas, tudo isso tinha o dedo extraterrestre.
Dizem, por exemplo, que era humanamente impossível que seres antepassados comuns, dispondo apenas de rudes instrumentos e da força física, fossem capazes de talhar com precisão cirúrgica blocos graníticos e depois transportá-los e colocá-los nos lugares mais elevados dos templos. E muitos desses megalíticos, de tão grandiosos que são, desafiam até mesmos as máquinas mais modernas.
Contudo, o que mais espanta nas afirmações desses teóricos é a sutil desfaçatez que utilizam para dizer, nas entrelinhas das palavras, que nada de grandioso na terra pode ter sido obra do Deus da cristandade, pois tudo surgiu fruto da engenhosidade dos seres extraterrestres, através de seus deuses.
Quer dizer, para os teóricos dos astronautas antigos, foram os deuses interplanetários que, adentrando no espaço criado pelo Deus cristão, acabaram interagindo com as civilizações antigas para fomentar sua cultura, sua arte, seu poder de construção. E para serem aceitos e provar que dispunham de força superior, então começaram a presentear aqueles povos com as imensas construções que ainda hoje resistem nas mais diversas regiões do planeta.
E nas entrelinhas certamente querem dizer que o nosso Deus tido como criador simplesmente nunca fez nada. Se muito fez, colocou os seres humanos na terra e depois os abandonou à própria sorte. Diante da omissão e negligência do Deus da terra diante de suas criaturas, os deuses extraterrestres resolveram ocupar o vazio e mostrar que eles eram muito mais capazes de realizar. É isto que se depreende das palavras desses tresloucados teóricos.
Outro dia, um desses teóricos, o falastrão Erik Von Daniken, talvez forçadamente, acabou revelando que as teorias dos deuses extraterrestres nunca objetivaram confrontar a igreja, a religiosidade nem a prevalência de Deus. Afirmou que ninguém pode negar o poder da criação divina nem contradizer o que vem cimentando por tanto tempo perante a cristandade. Contudo, não explicou porque ele mesmo e seus pares creem nesse Deus apenas como Deus criador e nos outros deuses, os extraterrestres, como construtores.
E teria de ter explicado suas contradições sob pena de essas extravagâncias teóricas continuarem batendo na tecla da existência de um Deus apenas criador e de outros deuses, certamente mais importantes, como os grandes engenheiros da humanidade. Porque aceitam Deus apenas como aquele que criou o mundo, mas não dispôs sobre ele os elementos caracterizadores das grandes culturas. Apenas criou e nada mais fez. E continuam defendendo com magistral eloquência a ação direta dos deuses astronautas no surgimento dos grandes monumentos da humanidade.
Segundo os teóricos, a inteligência, a força e o poder criativo dos povos antigos, estavam além da ação de um Deus apenas criador. Por isso que cultuavam outros deuses e se submeteram ao poder daqueles astronautas que chegavam entre feixes de luzes e transformavam toda a realidade existente.
E agiram com tamanha perspicácia e engenhosidade que aqueles homens se punham dia e noite olhando para o alto à espera do seu retorno. E até construíram uma descomunal pista de pouso, naquilo que se tem hoje como as Linhas de Nazca. Quer dizer, miravam os céus de um Deus à espera de outros deuses.
Mesmo não acreditando em Deus, certamente que esses teóricos não são ateus. Eis que oram para os santos e anjos extraterrestres e creem nos deuses astronautas.


Poeta e cronista
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A flor e o amor (Poesia)


A flor e o amor


Como um espelho
eis que a flor
reflete o amor
como uma lição
eis que o florar
ensina a amar

a flor nasce do grão
o amor no coração

a flor tem cor
o amor tem sabor

a flor expressa beleza
o amor a singeleza

a flor tem aroma
o amor de tudo a soma

a flor é uma estação
o amor além verão

a flor é frágil demais
o amor muito capaz

a flor não faz sofrer
e o amor faz padecer

a flor morre no caminho
e o amor quando sozinho.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 507


Rangel Alves da Costa*


“O tempo e o vento...”.
“A concha e o vento...”.
“A janela e o vento...”.
“A folha e o vento...”.
“O varal e o vento...”.
“Tanto vento...”.
“Tudo vento...”.
“Todo vento...”.
“Eis o mistério do vento...”.
“A mensagem...”.
“O segredo...”.
“A canção solene...”.
“O sopro que chega...”.
“E da minha janela...”.
“Sinto o vento...”.
“Seu perfume...”.
“Sua notícia...”.
“Sua pressa...”.
“Traz uma ponta de saudade...”.
“Traz uma voz da montanha...”.
“Traz um pedaço de nuvem...”.
“Traz um resto qualquer...”.
“Traz um fiapo e um pó...”.
“A folha com seu poema...”.
“Um verso escrito pelo vento...”.
“Somente ele...”.
“Sabe o que não sei...”.
“Somente ele...”.
“Conhece o que já não consigo...”.
“Somente ele...”.
“Tem o endereço...”.
“Somente ele...”.
“Conhece a janela...”.
“Somente ele...”.
“Já beijou a sua face...”.
“Somente ele...”.
“Chega-me como ventania...”.
“Para fazer chorar...”.
“Para fazer sofrer...”.
“Para aumentar a tristeza...”.
“Vento, vento...”.
“Dono da dor e do lamento...”.
“Sopro de vida e de tormento...”.
“Cujo poema...”.
“Escrito em palavras apressadas...”.
“Quase não me deixa ler...”.
“O que preciso tanto...”.
“Pois tem o seu nome...”.
“Um verso de outono...”.
“Mas cuja esperança...”.
“Sempre renascerá...”.
“E chegará como sopro...”.
“No sopro do vento...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

“LONGE DE TI SÃO ERMOS OS CAMINHOS...”


Rangel Alves da Costa*


Talvez um dia eu desça dessa montanha. Mas difícil encontrar a vida noutro lugar. Por isso estou agora ao entardecer no alto do monte, de livro aberto na mão, com os olhos ávidos em Florbela Espanca. E mais ler, repetir e dizer que longe de ti são ermos os caminhos.
Tal certeza se confirma no que tantas vezes leio na poetisa portuguesa, certamente aquela que mais ardentemente impregna versos na minha alma e sentimento. Parafraseando Pessoa, o outro grande bardo lusitano, diria que a poesia de Florbela é o mais belo rio que passa pela aldeia do meu coração.
Já sentia essa ausência, essa tristeza, essa angústia. Já sentia esse fumo miragem que voa entre os meus dedos, que feito névoa se dispersa diante da imagem que esvoaça. Porque a solidão e o pensamento desesperadamente criam asas.
A solidão, a ausência, a solidão pela ausência; o silêncio triste, a voz querendo teu nome, sem que a tristeza do silêncio permita o grito desesperado. Somente o fumo que se dissipa impregna o vazio de uma existência disforme.
Florbela não tem culpa de minha solidão, de minha tristeza. Nem o alguém distante pode se sentir motivo para estar assim. Apenas vejo no espelho da poesia o meu olhar refletido, a falta de luar e rosas, as noites tão silenciosas.
E pensar em ti na reflexão do poema foge ao meu desejo. A poesia faz pensar, faz sentir quanto longe de ti são ermos os caminhos, mas não queria assim. Queria mesmo estar contigo e vivenciar outra poesia. Mas também de Florbela.
A poetisa não tem culpa de tanta saudade, mas não posso negar ou fingir ter sido com ela que aprendi o quanto longe de ti os meus caminhos são cada vez mais ermos, solitários, num abandono desesperançado. Eis que leio e releio na poesia:

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

Talvez um dia eu desça dessa montanha. E não precisarei mais ler esse livro de Florbela. Nunca mais. Não precisarei lançar novamente o olhar sobre os caminhos ermos, a falta de luar e rosas, as noites silenciosas, os beirais sem ninhos.
Não precisarei porque toda palavra já escrita no coração. E porque tenho a palavra e conheço a dor, a solidão, a ausência, é que tentarei vencer o deserto do caminho para encontrar outonos sem chorar, afastar a tristeza nos crisântemos, e enfim alcançar tuas mãos.
E tocar em tuas mãos doces, plenas de carinho!


Poeta e cronista
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Minha menina (Poesia)


Minha menina


Minha menina bonita
tenho presente de sol e de lua
tenho ciranda na noite
pra cirandar no meio da rua
tenho uma concha de mar
enfeite que a menina possua
tenho um poema de amor
numa poesia que já era sua
e também segredo na boca
palavra que o corpo flutua
sonho com a menina moça
e eu beijando a moça tão nua
se a menina tiver sonho igual
é esse o desejo que se acentua.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 506


Rangel Alves da Costa*


“Quero ele morto...”.
“Disse o coronel...”.
“De tocaia ou emboscada?”.
“Perguntou o jagunço...”.
“Matando, dá no mesmo...”.
“Disse o coronel...”.
“De tocaia é mais pió...”.
“Disse o jagunço...”.
“Cuma assim?”.
“Perguntou o coronel...”.
“Pruquê o tiro é na testa...”.
“E se for de emboscada?”.
“O tiro é quarqué lugar...”.
“Entonce mate dos dois...”.
“De tocaia e emboscada?”.
“Sim, e se avexe miserave...”.
“Miserave é quem vai morrer, coroné...”.
“Chispa daqui, coisa ruim...”.
“Coisa pra quem vai morrer, coroné...”.
“Tá conversano demais...”.
“Só to respondeno ao sinhô, coroné...”.
“Num quero mais ouvir sua vez, seu miserave...”.
“Já me chamou de miserave demais, coroné...”.
“Suma daqui seu fio de uma égua...”.
“Miserave e fi da égua é demais, coroné...”.
“Vai-te, seu fi do cabrunco...”.
“Miserave e fi da égua e do cabrunco é demais, coroné...”.
“Tá pensano o quê?”.
“Tô pensano que o sinhô vai me pedir descupa...”.
“Vai-te lascar seu miserave...”.
“Miserave de novo não, coroné...”.
“Seu matador de uma figa...”.
“Pru sua causa coroné...”.
“Seu miserave assassino...”.
“Assassino sim, mai miserave não, coroné...”.
“Chispa daqui agora, seu moleque...”.
“Aí pegou, miserave e moleque, aí pegou...”.
“Pegou o que, seu miserave?”.
“Que o sinhô vai ter de pedi descupa...”.
“Eu?”.
“Sim, vosmicê mermo, e agorinha...”.
“Mai nem cum arma apontada...”.
“Apontada e carregada, ói aqui...”.
“Você ta é louco...”.
“Louco pá enchê de bala um coroné...”.
“Num se atreva...”.
“Sou atrevido coroné, mai miserave num sou não...”.
“Vire essa arma pra lá...”.
“Sim, viro pá testa...”.
“Deixa de brincadeira homem...”.
“Tô brincano não, coroné...”.
“Entonce atire se é homem mermo...”.
“...”.
“Seu mise...”.


Poeta e cronista
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domingo, 26 de janeiro de 2014

SOBRE SAUDADES


Rangel Alves da Costa*


Saudade não é tão ruim assim. Saudade não dói tanto assim. Ademais, é algo tão necessário como a própria existência. Como o indivíduo vive da ação para existir, igualmente precisa da ponte chamada saudade para caminhar no seu mundo.
Ninguém vive sem passado, sem recordação, despido de memórias. O realizado ou vivenciado ontem sempre retorna à mente clamando para continuar existindo ou relegado de vez ao esquecimento. Mas ninguém esquece de vez o feito ou vivido.
Em tal contexto é que residem os três tipos de saudade: a que vem como algo bom, quase como um desejo ou chamado; a que chega entremeada de prazer e angústia; e a que vem para mortificar, simplesmente para fazer com que a pessoa sofra com alguma situação do passado.
A saudade boa faz parte do alimento espiritual do indivíduo. A pessoa não consegue viver sem chamar à mente fatos, situações ou pessoas. São saudades boas as dos grandes amores ainda cultivados, as doces palavras um dia ouvidas da boca de alguém, os grandes feitos, as grandes conquistas e os sonhos realizados na vida.
A saudade mista, entremeada de aceitação e agonia, geralmente chega quando a pessoa começa a recordar entes queridos que já partiram. E já partiram pela morte ou pela distância. É suportável relembrar pelo amor ou afeto ainda presente, como retrato que jamais deva sair da parede da mente. Porém, o simples ato de recordar motiva tristeza, aflição e sofrimento.
Por sua vez, a saudade nefasta, aquela que vem para martirizar, geralmente é fruto de erros passados do indivíduo. O malfeito sempre retorna como fantasma, o mal praticado surge na mente como penitência. Daí que atormenta, trucida, tortura. E quanto mais a pessoa tenta esquecer mais ela retorna como um grito horrendo.
Nenhuma dessas saudades, contudo, pode ser afastada da mente. Para o bem ou para o mal, para o deleite ou desprazer, de repente ela encontra um motivo para se instalar. E tudo ao redor parece conspirar a favor da recordação. O retrato encontrado, a chuva caindo, a vela acesa, o perfume da brisa, as sombras da noite, tudo pode motivar a saudade.
Entretanto, algumas saudades podem ser provocadas, enquanto outras podem chegar naqueles momentos mais inesperados. E são provocadas aquelas cujos motivos são buscados pela própria pessoa. Ouvir determinadas músicas, rebuscar escritos guardados, abrir baús esquecidos, procurar faces em fotografias, estar em ambientes nostálgicos, tais são alguns contextos em que a saudade surgida não surge como estranheza.
Por seu lado, as saudades não provocadas, aquelas que surgem ao acaso, têm o dom de transformar totalmente a pessoa. Quando a memória irrompe com o filme não desejado, quando o passado volta como cena tão viva e presente, e no cenário a visão jamais desejada, então a pessoa, querendo fugir, começa a agir em total desconformidade com o momento.
Mas não posso negar a existência de saudades completamente estranhas, aquelas que alguns chamariam de “sem pé nem cabeça”. Verdade que todo mundo de repente pode se sentir tomado por recordações de coisas distantes ou alheias ao acervo da memória. E depois fica imaginando o porquê de ter sentido saudade daquilo.
E assim costumeiramente acontece comigo. Num instante e já estou com uma saudade danada da frutinha amarelada do araçá; me dá uma vontade danada de mergulhar nas águas antigas do riachinho que passa pela minha aldeia; me vem à memória o cheiro do café torrado ao entardecer na casa de Dona Lídia.
E que coisa mais estranha: sinto saudade de minha fazenda de ponta de vaca, do meu cavalo de pau, dá mocinha do circo que um dia pensei ser minha namorada. E também o aroma do frasquinho de perfume que fui presenteado pela ilusão circense. E eu era menino querendo ser homem feito. Mas aí já é outra saudade.


Poeta e cronista
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Triste poeta (Poesia)


Triste poeta


Eu queria escrever poesia
um poema falando de amor
mas no peito tanta agonia
o coração tomado de dor
me nega aquilo que escreveria
para descrever o doce fulgor

queria escrever a paixão
a certeza do amor sentido
mas a tristeza me toma a mão
me faz esquecer o amor vivido
e torna o poema a negação
e o amor um ser desconhecido.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 505


Rangel Alves da Costa*


“O que é a vida?”.
“O que é o viver?”.
“Maria nasceu...”.
“Antonio morreu...”.
“Pedro sumiu...”.
“Teresa enlouqueceu...”.
“Tião enriqueceu...”.
“Criméria se prostituiu...”.
“O que é a vida?”.
“O que é o viver?”.
“Beraldo viajou...”.
“Antonina retornou...”.
“Tição emagreceu...”.
“Pedrito engordou...”.
“Temístocles envaideceu...”.
“Solange chorou...”.
“O que é a vida?”.
“O que é o viver?”.
“Bastião deitou...”.
“Suelen levantou...”.
“Dagmar se feriu...”.
“Dogival apanhou...”.
“Clarimundo plantou...”.
“Dioclécio colheu...”.
“Pureza pariu...”.
“Clarinha engravidou...”.
“O que é a vida?”.
“O que é o viver?”.
“Terto caiu...”.
“Sinhá levantou...”.
“Porcina comeu...”.
“Everildo cozinhou...”.
“Julinho cantou...”.
“Sinésia se lamentou...”.
“Gerimildo prometeu...”.
“Cacilda se afobou...”.
“Torquato se lamentou...”.
“Geraldino embebedou...”.
“Clécio adormeceu...”.
“Dorina avermelhou...”.
“João cavalgou...”.
“Quiró partiu...”.
“Benilda se escondeu...”.
“O que é a vida?”.
“O que é o viver?”.
“Vida de tudo...”.
“Vida de quase nada...”.
“Tanto fazer...”.
“Nada fazer...”.
“Tanta feita...”.
“E mais desfeita...”.
“Só pra nascer e morrer...”.
“O que é a vida?”.
“O que é o viver?”.


Poeta e cronista
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sábado, 25 de janeiro de 2014

ALGO ALÉM DO PÃO E DO AMANHÃ


Rangel Alves da Costa*


Ninguém é tão indigno de conquistar que não possa ter algo além do pão e do amanhã. Seria apenas conformismo existencial e mera subsistência o empobrecido contentamento de ter apenas o alimento da sobrevivência e a expectativa de continuar vivendo.
Indubitavelmente que todos merecem ter algo além do pão e do amanhã. O ser humano é muito diferente do bicho que apenas berra quando lhe falta a medida de palma ou capim; distancia-se muito do animal que se contenta apenas com um punhado de milho.
Não se fala em fartura, mas em apenas ter. E ter o suficiente para não viver como bicho regrado, diminuído demais ou na miserabilidade. Nada mais indigno ao ser humano que ter de implorar um pedaço de pão, um resto de comida, uma caneca d’água salobra e barrenta para beber.
Logicamente que situações extremas existem onde qualquer esmola ou pedaço de pouco será de grande serventia. Mas é uma questão de vida ou morte, da submissão ao quase nada ou o perecimento por falta de alimento. Ainda assim não condizente com a vida e a dignidade humana.
Cata grão na areia aquele que não tem pedaço de pão; come restos apodrecidos aquele que não possui qualquer outro alimento; se farta de bolachão de barro aquele que está desprovido de bolacha de trigo; bebe lama quase esturricada aquele que não consegue avistar uma fonte.
Um retrato emoldurado na miséria africana, porém encontrado em todos os quadrantes do mundo. Populações ainda existem que sobrevivem apenas pelo próprio dom da existência. Vivem numa miséria tal que somente o milagre da sobrevivência para dar explicações.
Aqui, ali, tudo igual. No Nordeste faminto, no sertão sedento, na imensidão de sofrimento e abandono. E não há esmola oficial que acabe de vez com o padecimento de tanta gente. É menino comendo calango, é jovem comendo palma, é família sem panela no fogo e de barriga vazia.
Impossível que todos vivessem com comida farta na mesa, com o remédio sempre ao alcance, com a água de beber na geladeira e outras bonanças. Mas inadmissível que tantos tenham de amanhecer e anoitecer como se bichos esquecidos fossem, que sintam o vazio por dentro e nada tenham para enganar a fome.
A miséria e a pobreza continuarão existindo, vez que não é somente o alimento que afasta populações da condição de miserabilidade. E continuarão existindo pela diferenças sociais impostas, pelo abandono a que são relegadas, pelo descaso como são tratadas. Não adianta ter a comida e continuar carente de respeito e dignidade.
Ter algo além do pão e do amanhã não significa viver de promessas e de esperanças. Do mesmo modo, não significa ter na dispensa o alimento para o dia seguinte. Tudo isso deveria ser visto apenas como normalidade da vida, como o mínimo aceitável a cada indivíduo na sua existência.
Ter algo além do pão e do amanhã pressupõe dignidade, respeito, tratamento igualitário, garantia de prevalência dos direitos e garantias fundamentais do ser humano. Mas pressupõe, acima de tudo, que o indivíduo afaste de si o sorriso forçado pela esmola recebida e verdadeiramente cante a alegria da felicidade.
Isto mesmo, ter algo além do pão e do amanhã pressupõe a existência da felicidade em cada um. E o homem se mostra feliz toda vez que encontra oportunidades na vida, se sente respeitado e valorizado, é reconhecido como útil na sociedade onde vive, não é visto como mais um que caminha em direção aos lixões.
Quem dera que todos tivessem algo além do pão e do amanhã. Quem dera que todos tivessem a dignidade da sobrevivência sem temer o amanhã. E ter cada manhã como um campo fértil para semear e colher os grãos da felicidade.


Poeta e cronista
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