Rangel Alves da
Costa*
O sertão,
no seu contexto mais amplo, representa um cenário cheio de contradições. A
força e o encorajamento do homem se contrapõem à sua impotência diante das
agruras das estiagens; a beleza das paisagens opõe-se à feiura da terra
esturricada e da vegetação recurvada pelo queimor do tempo; as tantas riquezas
naturais confrontam a pobreza imperando pelas vastidões.
No
mandacaru carcomido de sol desponta a singela flor; nas locas das pedreiras
abrasadas surgem as cabeças-de-frade com sua auréola avermelhada; a sede é
saciada na lama endurecida e a fome é enganada pelo inexistente. O sertão,
pois, é assim, lugar do absolutamente impensável, recanto onde se assentam o
fantástico e a realidade mais contundente.
Com razão,
já disse o antigo historiador que o sertão é terra a ser reinventada. Na sua
formação, quase nada se comunga como um todo harmônico, aspecto que geralmente
se observa noutras regiões. No sertão, ora é tudo e ora é nada; ali as águas do
rio e às suas margens, poucos metros adiante, já a sequidão e a pobreza do
ribeirinho. Embora árida, a terra é fértil, porém sem a serventia que merecia
ter. As secas também não deixam.
Também não
pode ser visto como normal que uma região tão moldurada por riquezas naturais,
de povo tão tenaz e trabalhador, de aspectos históricos e geográficos
incomparáveis, seja tratada pelos governantes como o africanismo brasileiro.
Toda ação afeiçoa-se a esmola, a falsa piedade, a caridade eleitoreira, como se
a terra sertaneja estivesse tomada de mendicância e desvalias.
Ora, a
pobreza é realmente alarmante, porém fruto de outras contradições externamente
impostas. Os problemas ocasionados pelas constantes estiagens são
demasiadamente conhecidos, e o homem da terra tenta sobreviver com as forças
que tem, e sempre consegue. O que não se concebe é que os governantes perpetuem
tais situações através das conhecidas medidas emergenciais que acabam nada
resolvendo.
Como nada
é resolvido, vez que não se combate a predisposição natural da seca e sim seus
efeitos, eis que surgem outras incoerências perante o homem da terra. Os
efeitos das secas são combatidos através da submissão, da manipulação e do
constrangimento. De repente o valoroso sertanejo tem de se ajoelhar perante a
autoridade implorando água para matar a sede da família e da vaquinha; se vê na
indigna obrigação de bater à porta de político para pedir favor.
Tudo isso
constrange, machuca e maltrata o aguerrido agrestino. Não há submissão maior ao
homem que ser forçado a implorar esmola d’água ou de qualquer coisa àquele que
conhece as intenções por trás de qualquer atitude. O próprio governante se
utiliza das medidas emergenciais para praticar clientelismo, para ter o
sertanejo aos seus pés, para fazer da troca de favores uma forma de manutenção
do poder.
Mas tudo
parece realmente contrastar naquelas distâncias. Tanto que se dá e tanto que se
toma; tudo de uma forma e tão diferente; o que possui a feição de couro, o
verso já está tomado pelos modismos que ali também chegaram impiedosamente. A
vaqueirama trocando o cavalo pela motocicleta; o menino deixando de lado o boi
de barro por causa do jogo eletrônico; a música de raiz, forró pé-de-serra de
chinelar salão, sendo completamente esquecida em troca de bandalhas e
bandalheiras.
A força do
progresso, não se pode negar, e as inevitáveis mudanças também por lá. Mas
desde os tempos mais antigos que muito já contrastava. Lampião era devoto da
cruz e beato da espada e do mosquetão; Padre Cícero era, a um só tempo,
arrebanhador de fiéis sertanejos tanto na igreja como na política; Antônio
Conselheiro segurou o cajado da transformação através da fé e da insurgência
pacífica, mas também armou seus fanatizados para enfrentar tropas. E a fé do
povo, infelizmente, sempre foi manipulada para fins eleitoreiros.
E em tudo
o contraste, a contradição sertaneja. E até na sua lua e no seu sol. Enquanto
Luiz Gonzaga canta que "Não há, oh gente, oh não, luar como esse do
sertão...”, noutra canção o mesmo filho de Januário entoa que “Rompeu-se o
Natal, porém barra não veio, o sol bem vermelho nasceu muito além...”, ou “Senhor,
eu pedi para o sol se esconder um tiquinho...”.
Eis o
sertão, lembrado e cantado pela lua imensa, bonita, espelho maior do romantismo
do homem do campo, mas também recordado pelo seu sol abrasador, fornalha
causticante que vive amedrontando a terra, o homem e o bicho. Eis o exemplo
maior da contradição: uma lua que banha e um sol que resseca. E debaixo disso
tudo um povo que merece muito mais a felicidade.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Adorei seu texto.
Boa noite.
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