Rangel Alves da
Costa*
Não há
nada mais difícil para um rei que deixar seu castelo para visitar a plebe, a
vassalagem, a pobreza. Evita entrar em contato direto com seus súditos
principalmente por medo de ter jogada sobre sua coroa toda a culpa pela miséria
existente. Vai que de repente encontra alguém que ouse lhe dizer umas verdades,
então a coisa será complicada.
E
complicada porque o próprio rei reconhece as fragilidades e a ineficácia de seu
reinado. Mas jamais admitirá qualquer erro ou culpa porque não pode demonstrar
fraqueza perante os seus comandados nem dar motivações para críticas aos seus
opositores. Por força de sua coroa terá de ter reconhecido seu poder e sua
administração, e esta devidamente recoberta de flores por cima de lamaçais.
Ademais,
para que seu rei não seja contrariado ou tenha que estar relembrando as
sujeiras que se acumulam debaixo dos tapetes do reino, criou-se um consenso
entre os serviçais da corte no sentido de falar somente acerca das maravilhas
existentes, mesmo nas mazelas e nos absurdos. O problema é repassar para a
população cada vez mais pobre e sofrida, descontente e esquecida, toda uma
idealização de bonança do reino.
Reconhecendo
o descontentamento do povo, e principalmente porque não demorará muito para
aumentar os impostos e criar outras taxas para manutenção da cozinha real, o
rei sabe da urgente necessidade de se aproximar das camadas populares e assim
evitar consequências maiores. Ao menos não será acusado de reinar por trás dos
muros do castelo e abandonar de vez as classes empobrecidas.
Mesmo na
distância que exige manter, conhece muito bem os súditos que tem. Sabe que
basta acenar-lhes de longe, enviar mensalmente uma esmola e um punhado de
alfafa, e o povo logo esquecerá que continua sendo enganado e que permanecerá
na miséria mais degradante. Além disso, tem perfeita ciência que é sempre mais
fácil escravizar aquele que imagina estar sendo respeitado e valorizado pelo
seu governante. E o rei precisa que continuem assim, silenciosos e submissos.
Não apenas
no silêncio dos impotentes, mas principalmente na sua total fragilidade, de
pensamento e de ação, pois somente assim o rei poderá colocar em prática, e sem
qualquer contestação popular, seus planos para trazer para si ainda mais
poderes, reinar sem limitações e continuar nada fazendo em nome do povo. Isso
mesmo, nada fazendo e ainda assim sendo lembrado como verdadeiro deus dos
miseráveis.
Mas eis
que diante das pretensões e de objetivos outros, precisa urgentemente fazer
aquilo que mais abomina: se aproximar do povo, ter diante de si a pobreza em
pessoa. Dói-lhe avistar a gentalha, se aproximar da miséria, avistar a penúria
submissa e feia, raquítica e desdentada. Sente verdadeiro asco fazer luzir seus
anéis dourados diante de mãos rudes e maltratadas. Verdade que usa mais de cem
pares de luvas a cada visita, trocando uma após outra toda vez que tem de pegar
nalguma mão lanhada pela dureza do ofício.
E vai o
rei para a sua árdua tarefa, transmudar-se em gente de carne e osso e visitar
outro reino, só que um reinado muito diferente e escondido nas brenhas do seu
império maior. Ali é o reinado dos esquecidos, dos excluídos, dos miseráveis,
dos tratados a esmola e tostão enviados pelo próprio rei. Ali quem reina é o
zé-ninguém, rei maior e absoluto de um mundo que parece impossível de existir
nas entranhas do grande império. Mas existe.
E existe
com tamanha veemência que até o rei que acostumou a ouvir - e ele mesmo
propagar em alto e bom som - não existir nada assim tão empobrecido e
abandonado, tentou por diversas vezes não olhar diretamente para as entranhas
daquele reino de zé-ninguém. E evitava olhar para não ter dificuldade de
reconhecer entre bicho e gente, para não mirar barracos quase desabando por
cima de meninos magricelas e barrigudinhos, para que seu olhar real não se
ferisse com imagens tão degradantes. Mas teve de mirar aquele reino e sua vida
e pensou estar enlouquecendo.
Assustado,
o rei perguntou ao ajudante real se aquilo tudo era verdade. E se era verdadeiro,
o porquê de não ser devidamente informado sobre as condições de vida e de
existência daquele reino. Então ouviu ter sido a própria alteza que havia
afirmado não querer mais saber de pobreza nem de degradação social, e estaria
fora do poder todo aquele que abrisse a boca para dizer que a miséria absoluta
não havia sido eliminada.
Agora
envergonhado, o rei baixou a cabeça e só a levantou quando anunciaram que um
dos habitantes do reino de zé-ninguém lhe estendia a mão. Rapidamente percebeu
que havia esquecido de colocar as luvas e se viu sem saber o que fazer. E fato
inusitado aconteceu. O rei estendeu a mão, mas não para apertar a outra mão,
mas sim para apontar para o alto e dizer que nunca havia visto um céu tão
maravilhoso como o existente ali.
E depois
de prometer o paraíso retornou ao seu palácio. E a primeira atitude que tomou
foi chamar o ajudante real para dizer que esquecessem o reino de zé-ninguém. E
fosse anunciar do alto da torre que a miséria havia sido derrotada de uma vez
por todas.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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