SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 31 de dezembro de 2017

ALÉM DA VIDA: A HISTÓRIA DE UM AMOR


*Rangel Alves da Costa


Certa feita, ante os mistérios envolvendo o amor cuja força terrena se eleva, com igual ou maior força, além da vida, disse um poeta: Tão sagrado é o amor pela força invisível surgido, que mesmo não se contentando em ser tão amado na existência terrena, com inexplicável tenacidade ainda se revela após a partida de um dos amados.
Eis a força do amor que se eleva e se revela além da vida. E um amor assim realmente existiu e entre pessoas por muitos conhecidas, cuja história será doravante narrada, preservando suas reais identidades, tudo em nome da ética na escrita, mas com o pleno consentimento daquele que carrega sobre o si o livro ainda aberto desse amor vivenciado e tão duramente pranteado.
Um amor entre dois homens. Sim. Um profundo e entranhado relacionamento amoroso entre duas pessoas do mesmo sexo: dois homens. E logo alguém poderia indagar se não seria demasiado imaginar-se qual a grandeza daquilo que se poderia chamar de profundo amor entre duas pessoas do mesmo sexo.
Ora, qual o sexo do amor? O amor só se perfaz pela cultura de que somente deva haver relacionamento e comunhão entre pessoas de sexos diferentes? O amor é tão profundo, bonito e perfeito, que não escolhe sexos diferenciados, mas tão somente que seja verdadeiramente compreendido, respeitado, amado. E assim aconteceu entre essas duas pessoas, entre esses dois homens que um dia se conheceram e daí em diante se reconheceram como partes um do outro.
A. e F. Apenas as iniciais. Dois homens cujo relacionamento ao invés de despertar arraigado preconceito social, pautou-se pela compreensão e pelo respeito, principalmente familiar. Firmado o relacionamento, passaram a viver juntos num mesmo lar. E assim permaneceriam em terrena comunhão afetiva se o destino não colocasse o inesperado pelo caminho. Eis que F., mesmo jovem e forte demais para de repente ser acometido por uma oculta enfermidade, acabou sendo tomado pela fatalidade.
Pequenas dores, chegando e partindo. Apenas mal-estar, dizia F. inicialmente. Mas os sintomas se repetindo e se repetindo. Quando as dores já não puderam ser fingidas e o seu companheiro mais uma vez insistiu para que a medicina tomasse conta da situação, aquele destino jovem já estava traçado. Ele sempre se negando a procurar cuidados médicos, já era tarde demais quando foi hospitalizado. E faleceu aos 24 anos.
Neste e a partir deste instante A., seu companheiro, sentiu o chão desabar sobre seus pés. Nada mais triste que amar e perder, que querer e não poder mais ter, que buscar ao seu lado e saber que nunca mais poderá encontrar. Assim o sentimento da perda através da morte. Instantes terríveis a partir de então. A., completamente desnorteado, tomado de angústia e aflição, passou a amargar a perda como se a sua vida também estivesse se findando. No seu pensamento, a morte seria um caminho ao reencontro do seu.
Será que havia razão para tamanho sofrimento? O convívio, o amor, a compreensão e a amizade entre os dois, havia colocado sua própria razão no coração. A perda de seu companheiro já havia sido anunciada a A. pelos mistérios da vida. Numa noite, adormecido, A. chorou a perda tão próxima sem perceber. Na manhã seguinte F. perguntou-lhe por que chorava enquanto dormia. Não havia resposta a dar. Mas a resposta já estava dada.
Após o seu falecimento, o companheiro passou a viver sem forças e sem ânimo para qualquer ato da vida. Seus pensamentos, envoltos em melancólico enlutamento, só pensava em deixar essa vida, em partir também, em ir abraçar seu companheiro onde estivesse. Premeditou a própria morte, iria se matar lançando seu veículo de cima de uma ribanceira. Mas no dia marcado para tal desatino, eis que um fato surpreendente aconteceu. Chegando à escola onde ensinava para abraçar e agradecer sua diretora por todo apoio dado, e certamente desta também silenciosamente se despedir pelo que tencionava fazer, de repente da amiga ouviu: “Posso lhe confessar uma coisa? Sonhei com F.”.
E prosseguiu dizendo que no sonho F. mandava um recado a ele, dizendo que estava bem, pedindo perdão por não ter ouvido seus conselhos, mas principalmente rogando que ele jamais fizesse aquilo que pensava fazer. Ora, a diretora sequer sabia que A. estava determinado a provocar aquele fatal acidente naquele dia, jogando seu carro da ribanceira. Como pôde isso acontecer? A vida e a morte em comunhão. O amor além-vida preservando a vida de quem tanto continuava amando.
Espantando com tal revelação, A. apenas silenciou. Retornou, porém, com a certeza de que os dois continuavam mais juntos, mais próximos um do outro do que ele jamais poderia imaginar. Era como se F. acompanhasse os seus passos e sentisse o seu sofrimento, era como se apenas o limite entre a vida e a morte os estivesse separando. Então sentiu que poderia conversar com ele, com o seu tão amado companheiro.
Foi buscar no espiritismo esse diálogo, essa tão desejada presença. Ante a proximidade entre o falecimento e a primeira sessão espírita, as respostas de F. chegaram através de outro espírito. Na carta, toda a revelação daquilo que A. precisava tanto saber. No além-vida, seu companheiro estava bem, estava em paz, desejoso apenas que seu amado reencontrasse na terra a mesma felicidade que tanto precisava ter. Daí em diante, mensagens psicografadas passaram a mostrar toda a pujança desse amor na vida e além da vida.
E assim por que o verdadeiro amor é eterno. O amor é mistério que une os seres mesmo em mundos e vidas diferentes. Assim na vida, assim na morte, e para a eternidade. Assim como o amor entre A. e F.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Uma recordação



Caminho de lua e sol


Caminho de lua e sol


Com uma mala velha
vou por uma estrada antiga
e deixo que os anos passem
até que eu me finde sem fim

deixei a porta fechada
e flores de plástico no jardim
o outono toma conta de tudo
enquanto vou seguindo adiante

se há um mundo que quero ter
é um mundo que se faça assim
apenas meus passos pela estrada
e toda lua e todo sol sobre o olhar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – roupas, brilhos e oferendas de ano novo


*Rangel Alves da Costa


A passagem de ano é sempre marcada por costumes, tradições e rituais que, segundo acreditam, têm o dom de transformar o ano novo em verdadeiro maravilhamento. Assim é que uns vestem roupas brancas, amarelas, douradas, da cor do céu. Já outros pregam dinheiro na roupa, cartões de crédito e até cheques. Uns passam a entrada de ano na beira da praia, descalços, lançando oferendas ao mar. Outros se encharcam de perfumes, de champanha, de cerveja. Sem esquecer que alguns abraçam e beijam todo mundo que encontrar pela frente, desejando a conhecidos e desconhecidos o paraíso na terra. Tudo bem, é costume, é tradição. Alguns chamam isso de exagero, de desnecessidade, de falar de coisa melhor a fazer. Realmente, respeitando-se os rituais religiosos, muito do que se vê é apenas um auê, um festim e até um mero exercício de falsidade. Ora, a pessoa passa o ano todo sem falar com a outra ou até falando mal, e de repente vem com um abraço encharcado de falsidades. Melhor seria que cada um chegasse ao final do ano revestido apenas da pele de sua alma: caráter, honradez, dignidade. E todo o ano novo abriria prazerosamente suas portas para o merecimento passar.


Escritor
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sábado, 30 de dezembro de 2017

UMA GENTE POR FORÇA DE DEUS


*Rangel Alves da Costa


Com algumas modificações, vez que publicado em jornal impresso, republico o texto abaixo:
Um ano passou e outro já abriu sua porta e janela para uma nova realidade. Para trás ficaram as festas, as comemorações, as confraternizações, as trocas de presentes. Muitos foram às compras, muitos adquiriram muito além de seus poderes aquisitivos, já outros vivenciaram o período como apenas um desfecho de um ano bom e proveitoso. Certamente que disfarçando muito as realidades, mas não há que se negar que as ilusões também fazem parte da utopia existencial humana.
Muita gente, contudo, não viveu qualquer tipo de ilusão. Sem utopia existencial, o chão é chão, a pedra é pedra, o espinho é espinho. Não há remendos nem disfarces, não há outra coisa senão o viver entremeado de angústias, sofrimentos e aflições. A ceia não foi colocada à mesa, nenhum papel de presente restou pelos cantos, nenhum brinde foi levantado em copos de plástico ou estanho. Há, pois, uma gente que de humano somente os sonhos e as esperanças, a fé e a devoção, pois do restante apenas o diferenciamento perante as posses e as benesses dos demais.
Para muitos, a passagem do ano significa apenas mais um dia nascido. Como dito, não há ilusões guardadas, não há expectativas douradas nem planos grandiosos nos passos seguintes. Inicia-se a luta como todas as lutas de todos os dias. É a sobrevivência que dita a caminhada. Nada se quer demais, apenas o ter. E nada demais, apenas o pão. E um pão que na pobreza possui muitos nomes, pois carência de tudo, desde a dignidade na moradia à dignidade do próprio existir.
Que não se enganem: pessoas existem apenas pela feição humana, sem muito além disso, pois de sobrevivência tão difícil que somente adentrando sua porta para sentir a feição aterradora de um nada ter. Panelas vazias, fogo apagado, pratos guardados, crianças famintas, crianças doentes, crianças chorosas, famílias inteiras querendo um pão. Sim, de vez em quando alguém aparece com uma cesta de alimentos, com um pacote disso e daquilo, mas tudo tão sem nada que em pouco tempo nada mais restará.
E como vivem pessoas assim, famílias inteiras assim? Como conseguem viver e sobreviver pessoas que amanhecem e anoitecem sem ter café, almoço ou janta? Fato é que em se tratando de pobreza, as aparências nem sempre enganam. Não enganam mesmo. Passar diante de um barraco ou de uma casinha de feição empobrecida é, muitas vezes, apenas uma visão menos dolorosa do que aquilo que se possa encontrar lá dentro. Entre e vá ver, entre e vá sentir, entre e vá compartilhar ao menos por um instante dessa dor que nunca tem cura.
Indaguei: Como vive e sobrevive uma gente assim, na carência e na desvalia de quase tudo? E logo respondo: Na fé, na esperança, na perseverança, na expectativa de que o instante seguinte seja melhor. Igualmente o sertanejo que suporta na esperança de chuva todas as dores e sofrimentos, do mesmo modo aqueles que vivem nos vazios e desalentos de seus barracos, na secura da panela e da barriga. Estes, contudo, e não há que disso duvidar, possuem uma fé infinitamente maior que qualquer outro de mesa e colher.
Repito, pois, que há uma gente que só sobrevive como gente pela força de Deus. Há uma gente que só amanhece e anoitece pela força de Deus. Há uma gente que só fala, sorri e encontra ânimo para lutar pela força de Deus. Há uma gente que só encontra razão pra viver pela força de Deus. Há uma gente que só continua existindo pela força de Deus. Há uma gente que somente suporta as agruras e as angústias do dia a dia pela força de Deus.
Há uma gente que somente se diz gente e vive como gente pela força de Deus. Pela força de Deus por que sobrevivendo pela incontida fé em Deus. Uma gente que é pobre, carente, sofrida, desvalida de tudo, mas de imensa riqueza na fé, na perseverança, na religiosidade, na comunhão com o sagrado, na esperança por dias melhores.
Não é fácil vive em contínuo desemprego. Não é fácil viver mendigando pelas ruas. Não é fácil acordar e deitar sem o pão para saciar a fome. Não é fácil estar doente e não ter remédio, não poder comprar um comprimido sequer. Não é fácil ouvir o filho chorando querendo comida. Não é fácil viver ameaçado em barraco de lona. Não é fácil viver nos escombros e ainda pensar que possui moradia. Não é fácil a roupa em frangalhos, os pés descalços, a imundície forçada. Não é fácil viver assim. Mas há muita gente que vive assim. E somente suporta viver assim por força da fé em Deus.
De agora em diante, pelo resto do ano e sempre, então lembre que há gente assim, uma gente que só sobrevive pela força de Deus. Vá lá, bata à sua porta, entre. Conheça essa gente e suas carências. Seja também um Deus em suas vidas. Ajude-a a sobreviver e a também ter esperança no sagrado humano.


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Lá no meu sertão...


Uma cartinha



Pedra e pó (Poesia)


Pedra e pó


No silêncio da pedra
na solidão da pedra
na angústia da pedra
na dor da pedra
estou

quieto e calado
entorpecido e inerte
apenas uma pedra
prestes a pó
se tornar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - tristeza profunda


*Rangel Alves da Costa


“ELI, ELI, LHAMA SABACTANI?!” - Deus, meu Deus, por que me abandonaste?! Minha janela não se abre para as flores do jardim. Meu jarro com flores de plástico foi levado na ventania. Sumiram as palavras dos meus livros. Já não tenho canção nem poesia. Os lenços estendidos no varal esvoaçaram tristonhos. Os dias, as horas e os segundos são como calendários e relógios inexistentes. Havia uma paisagem e um brilho no meu olhar e agora tudo se esconde em negrume de solidão. Os Salmos já se cansaram de serem lidos e relidos. Os Evangelhos já não dizem das boas-aventuranças. O que fui, o que sou, como estou? “Eli, Eli, lhama sabactani?!”. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!


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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

MEU POÇO REDONDO, MEU SERTÃO, FELIZ 2018!


*Rangel Alves da Costa


Meu Poço Redondo, minha Poço Redondo, meu sertão, feliz 2018!
Minha Poço Redondo que acordou, que despertou, que abriu a janela, que viveu, que correu, que amou, que lutou, que chorou, que se molhou de sol, que se encharcou de esperança, que entardeceu e anoiteceu e que agora fecha sua porta para repousar.
Repousa minha cidade, descansa minha Poço Redondo, retoma as forças para os dias seguintes, para os passos seguintes, para todo o viver de seu chão e dos filhos teus. Logo um novo sol se abrirá sobre ti. Não o sol queimando do alto ao chão, mas o sol brilhoso de um novo tempo que chegará com o nascer do novo ano.
Minha Poço Redondo, minha linda e bela Poço Redondo, desejo-te um jardim em flor, um canteiro de paz, uma colheita dos melhores frutos, uma mesa fartamente estendida com o pão da prosperidade.
Que a administração municipal administre em nome de todos, que os bens e serviços sejam em nome de todos e para todos, que as dádivas da governança sejam para a melhoria da qualidade da qualidade de vida de toda a população.
Que o filho da terra reconheça o outro como irmão, seja forasteiro ou não. Que o poço-redondense seja cada vez determinado a lutar pelas grandes conquistas para si, para todos e sua municipalidade.
Que cada poço-redondense seja mais compreensivo, mais esperançoso e mais orgulhoso de seu próprio chão. Que a fé e devoção que animam o povo sertanejo não se dispersem pelos falsos ídolos que a todo instante tentarão diminuir sua crença divina.
Que ao invés das calçadas, o povo sente mais nas igrejas, nos templos, nas casas sagradas. Que ao invés da bebida amarga, o jovem se encharque do vinho da sabedoria e do conhecimento faça um encontro bom com a sua história, a sua cultura, a sua imensa riqueza.
Que ao invés da droga, o jovem se aviste como um ser mais forte e diga a si mesmo que a vida é para sonhar com grandes realidades e não fingir a existência envolta em pesadelos.
Que as comadres cuidem mais dos seus e menos da vida dos outros. Que todos saibam esperar dias melhores sem fazer das demoras motivos de críticas desnecessárias. Que façam da caridade um gesto bondoso e fruticante ao coração.
Que todos guardem suas armas afiadas, seus cartuchos vorazes, e compreendam a vida como uma dádiva e não como dor do outro e de sua família. Que não permitam que a violência seja um cotidiano e que o medo seja mais forte que a razão de viver.
Que, mesmo nos passos do progresso, minha Poço Redondo nunca deixe de ter aquele encantamento antigo, onde todos eram amigos e a paz reinava pelas vastidões. Que Deus, na sua força e poder, oferte a Poço Redondo um 2018 grandioso.
Quem dera meu Deus, a instalação de indústrias, a chegada de empreendimentos, o aumento do mercado de trabalho. O povo precisa trabalhar, precisa viver com dignidade, precisa ter o seu pão sem a indignidade da submissão.
Assim, minha Poço Redondo, durma em paz, repouse em paz. Acorde em paz, levante em paz. Em paz caminhe os seus passos, viva os seus dias, siga sempre em frente ao alcance da felicidade.
Amanhã já quase será um novo ano, um novo tempo. E dias melhores virão e um novo e lindo sol brilhará sobre ti. É o que Rangel, teu filho, tanto deseja!


Escritor
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Lá no meu sertão...


Chico, Velho Chico!




Pra pensar (Poesia)


Pra pensar


A vida
vai
ou voa
ou cai

viver
sem ilusão
e voar
no chão

um dia
sem esperar
aprendeu
a voar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - minha história


*Rangel Alves da Costa


Minha história é feita de história, é cheia de história, é vivida e vivenciada na história. Sigo os passos de meu pai Alcino como se ele ainda estivesse adiante a me chamar. É pelos sertões que ele tanto amou que também caminho com amor maior. Não fico com raiva acaso me chamem de matuto, de caipira, de sertanejo. Sou isso tudo com muito orgulho e prazer. Não há caneta dourada nem folha timbrada de papel que seja mais bonita que a simplicidade da terra, do homem e sua história. Sou assim desse mundo, de um mundo tão sertão, tão cangaceiro e missionário, tão saga e tão vindita, que pareço fincado no chão e não na feiura do cimento e ferro. Eis-me, aí, numa casinha, à porta de uma casinha tão carcomida de tempo. Eis-me, aí, de rosto envernizado pelo sol escaldante nos rincões dos nazarenos, nas distâncias cimentadas pelos passos de volantes e cangaceiros. Na moldura do tempo, os restos que significam mais, muito mais, que qualquer pujante arquitetura que nada consegue dizer. Digo-lhes, pois, que nesta murcha flor sertaneja é que está o mais belo jardim: o jardim da história mais rica que possa existir. E não há florada que me encha de contentamento maior.


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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

IMPOSSÍVEL DOMAR A PALAVRA ESCRITA


*Rangel Alves da Costa


Quem escreve sabe muito que as palavras de repente fogem, ganham vida própria, se lançam pelos seus próprios caminhos. A pessoa começa dizendo uma coisa, escrevendo uma coisa, mas de repente sua escrita já não obedece ao seu pensamento. Não que o autor solte as rédeas porque assim deseja, não que o escritor vá simplesmente deixando que o texto tome um destino próprio, mas simplesmente por que não consegue mais domá-lo.
A palavra, seja falada ou escrita, é arredia demais, perigosa demais, solta e traquina demais. Ainda é possível, através do silêncio e do comedimento, domar a voz, a palavra falada. Mas a palavra escrita, uma vez iniciada, torna-se completamente impossível de ser domada. Duvido que alguém - seja escritor ou não - consiga levar a cabo suas linhas sem que estas tenha dado volteios, ziguezagues, transformado em algo apenas parecido naquilo inicialmente desejado.
Sim, a pessoa senta para escrever e inicia seu texto com a idealização do que quer, porém não consegue firmar sua trama sem que acontecimentos ou situações cismem em modificar o planejado. O pior é que reorientada a ideia, nunca mais a idealização original retomará suas rédeas, pois daí em diante não será mais a pessoa que decidirá o que escrever ou não, mas tão somente aquilo que se impôs como realidade na escrita.
A escrita acaba tomando uma vida tão própria que aliena o autor de seu próprio texto. É como se ela dissesse que não precisa mais da criatividade, de inventividade ou direcionamento, pois sabe muito bem aonde quer ir e o que deseja até o ponto final. Por isso mesmo que uma história pensada para se passar numa cidadezinha interiorana, por exemplo, acaba terminando entre o cimento e o asfalto da cidade grande. Personagens que jamais foram imaginados acabam se intrometendo na história e até se tornam principais no restante da história.
Como dito, depois que a história toma suas próprias rédeas, resta somente ao escritor o cuidado para que tudo não se disperse aleatoriamente. E vai costurando, costurando, como um estranho ou subordinado às palavras. Observa-se, então, uma submissão do autor perante o seu texto. Como ocorre numa novela, onde a audiência e situações inesperadas acabam determinando novos rumos à história, assim também com qualquer texto escrito. Certamente que quem começa uma história já tem à mente um pano de fundo inicial, uma paisagem de meio e um horizonte final, mas nunca consegue seguir seu trajeto.
Ademais, a palavra cega e transforma tanto o autor que ele simplesmente vai se esquecendo do que foi escrito. Exemplo disso se verifica nas correções do escritos. Após escrever, por mais que leia duas ou três vezes, dificilmente o autor vai encontrar algo que omitiu sem querer. Ele nunca encontra uma palavra faltando ou uma dita a mais, nada. Somente outra pessoa consegue avistar as lacunas e os esquecimentos.
Mas isso não é tão ruim assim. Quem sabe se muitas dessas obras famosas não se tornaram assim pelas rédeas tomadas pela própria escrita. Mas também pela maestria dos autores em saber situar cada intromissão surgida no seu devido lugar, entrelaçando tudo e fazendo florescer uma obra-prima.


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Lá no meu sertão...


A fé e o rio



Pássaro e flor (Poesia)


Pássaro e flor


O pássaro voa
pelo azul infinito
e voando canta
o canto mais bonito
por que ama e ama
o amor como grito

a flor brilha
na manhã do jardim
e brilhando canta
um canto de jasmim
por que ama e ama
um amor sem fim

não sou pássaro nem flor
não tenho alegre canção
o meu amor desamado
canta a mais triste solidão
e silencia em lágrimas
no pranto de um coração.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - a foto para o facebook


*Rangel Alves da Costa


A FOTO PARA O FACEBOOK - Ela passou duas horas na cabeleireira e mais duas na maquiadora, e tudo isso apenas para tirar uma foto para postar no Facebook. Ela revirou o guarda-roupa de cima a baixo e a gaveta de bijuterias, usou dois frascos de perfume e um batom inteiro, e tudo isso apenas para tirar uma foto para postar no Facebook. Diante do espelho, foram quase duas horas de retoques, ajeitando aqui e acolá, fazendo tantas poses que quase dá um nó na cintura, desquartejando toda, e tudo isso por causa de uma foto para postar no Facebook. Virava-se para um lado e dizia: Vixe que barriga grande! Virava pra outro lado e dizia: Vixe que bunda enorme! Ajeitava o busto e dizia: Vixe que peito grande! Dava uma rodadinha básica e dizia: Não sei o que é, mas não estou bem! Forçava sorriso perante o espelho e dizia: Ainda não é esse sorriso que quero! Rodava a cabeça procurando a melhor posição do cabelo e dizia: Que horror, acho melhor cortar essa pontinha aqui! Depois de tudo arrumado, tudo aproximado à tão desejada e impossível perfeição, uma última olhada e a decisão: Vou passar um batom mais forte! Agora sim. Então, fez a pose mais bonita e sensual do mundo, mais sexy e sedutora da vida, e clicou. Pronto, a foto estava perfeita. Mas faltava ainda retocar no Photoshop. Editou a foto, tirou todas as rugas, colocou no rosto uma pele de seda, esverdeou os olhos e alisou os cabelos. Depois sorrio e disse: Sou linda! Mas respondam: Vale a pena mentir pra si mesma?


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quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

ANTIGAS CRISTALEIRAS


*Rangel Alves da Costa


Talvez você não se recorde, mas sua mãe sim, e sua avó e bisavó muito mais. Noutros idos - e nem precisava ser casa rica ou de família “ajeitada” na vida - era muito comum que as salas de almoço e jantar das residências, mas também nas cozinhas, fossem guarnecidas por um móvel tão útil quanto singular: a cristaleira.
Pelo nome, logo se depreende ser um móvel para guardar objetos de cristais e outras preciosidades do lar, porém não exclusivamente. Ante a raridade de copos e outros utensílios de cristal, as cristaleiras sertanejas serviam basicamente para guardar as taças, as xícaras de porcelana (ou apenas esmaltadas e adornadas com ramos e flores) e os copos mais bonitos e que dali só eram retirados em datas especiais, assim como um regabofe oferecido a convidado de renome e veneração.
Os livros e dicionários assim definem a cristaleira: Móvel de sala envidraçado no qual se guardam e expõem objetos de cristal como copos, garrafas, compoteiras etc. Surgida ainda no século XVII, a cristaleira comumente serve para designar o móvel de madeira maciça com portas de vidro, prateleiras e espelhos ao fundo, integrando a sala de estar ou jantar. Era móvel essencial no passado de muitas residências.
Sempre com vidros limpinhos, madeira trabalhada artesanalmente e envernizada no óleo de peroba, tendo por cima um enfeite singelo e bonito, as cristaleiras se afeiçoavam a cofres e outras relíquias familiares tão adoradas e bem cuidadas. Aos olhos da dona de casa, ainda que empobrecida pelas circunstâncias da vida, ter uma cristaleira bem guarnecida era orgulho sem igual.
A cristaleira e o oratório dignificavam as residências, demonstravam a abnegação sertaneja em manter suas pequenas e significativas relíquias. Minha avó Marieta tinha uma bonita, logo na sala do meio, após a sala de entrada. Dentro dos objetos com tampa ela também costumava guardar um dinheirinho. De vez em quando me chamava e colocava uma notinha na mão, e dizia: Mas não é pra gastar não, viu meu filho! Pouco tempo depois eu já estava farejando outra nica.
Contudo, o passar dos anos foi cruel para os oratórios, as cristaleiras e tudo aquilo de tão belo que guarneciam os lares sertanejos. Hoje é muito difícil encontrar uma cristaleira ou mesmo um lavatório de mãos. Tá até difícil encontrar um autêntico sertanejo, daqueles que se orgulhe com alma em flor pelo seu mundo sertão.
Há vinte anos, ou em torno disso, não era difícil encontrar antigas cristaleiras nas residências sertanejas, principalmente nas povoações mais afastadas dos centros urbanos. Nas fazendas, lugarejos ribeirinhos, muitos móveis antigos ainda restavam para contar a história dos antepassados.
Contudo, a febre ou o modismo pelos móveis antigos, fez com que uma enxurrada de gente da capital e até do sul do país acorresse em busca de antiguidades. Perante o povo pobre, pagavam qualquer coisa e levavam - para revender por alto valor - as relíquias domésticas e familiares.
Hoje em dia, apenas uma ou outra cristaleira escondida pelos recantos matutos. Comprar é muito difícil, pois as que ainda restam se tornaram em relíquias inseparáveis. Mas de vez em quando ouço falar que não faz muito tempo que uma foi abandonada pelos quintais, ao sabor do tempo.
Para uma ideia, desde mais de dois anos que procuro uma cristaleira para colocar no Memorial Alcino Alves Costa, em Poço redondo, sertão sergipano. Mas parece não haver mesmo jeito. A última que avistei foi numa casa na Fazenda Favela, em Floresta, no estado de Pernambuco. Antiga, bonita, garbosa, afeiçoando-se a uma saudade sem fim.


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Lá no meu sertão...


Poesia do Velho Chico




Para voar (Poesia)


Para voar


Sou a nudez da lua
e o nu vestido de sol
sobre todo o meu eu
apenas estrelas vivas
conchas molhadas de mar
e ventos e brisas mansas
e voos passarinheiros
pelos horizontes sem fim

liberdade que tenho
em querer ser e ter apenas
aquilo quem me desnuda
sem roupas nem nomes
sem direções ou destinos
pois somente se voa longe
quando as asas se abrem
ante qualquer fresta de luz.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - preciso conversar com Deus


*Rangel Alves da Costa


Eu sempre converso com Deus, mas neste final de ano preciso ter com ele um diálogo especial e mais demorado. Com ele converso sempre, pois vivendo dentro de mim, a todo instante no templo erguido no meu coração. E também avistando sua face todas as vezes que acendo uma vela junto ao oratório, que silenciosamente faço orações, que traduzo os ensinamentos cristãos nos evangelhos. Com Deus também converso nas igrejas e catedrais, no silêncio dos templos cristãos e enquanto miro as belezas das paisagens e horizontes da vida. Mas a todo instante uma palavra com ele, pedindo proteção, rogando luz e paz, implorando que jamais me abandone pelos caminhos da vida. Contudo, sinto que preciso ter com ele um diálogo especial neste final de ano. Não para prestar contas do que fiz ou daquilo que deixei de fazer, não para pedir perdão pelos erros cometidos ou reconhecimento pelas boas atitudes tomadas, mas apenas reencontrá-lo cada vez mais forte dentro de mim. Abraçá-lo como um pai, como um irmão, como um amigo querido. A ele contar sobre os meus planos, a ele pedir orientação e proteção antes de cada passo dado. A ele dizer que nada sou nem serei sem sua mão sobre mim. Tudo silenciosamente dito e ouvido, como se a luz flamejante sob a vela fosse a moldura de um filho devotadamente prostrado perante seu pai.


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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

RESSACA


*Rangel Alves da Costa


Já bebi rios, mares e oceanos, já entornei desde o melhor vinho à cachaça de botequim, coisa que não faço mais já desde acima de dez anos, por isso sei muito bem o que seja uma ressaca.
Não uma ressaquinha qualquer, assim como um mal-estar depois de quase não levantar da cama. Não um enjozinho qualquer, daqueles que passa com um bom banho. Mas ressaca daquelas mesmo, das brabas, das vorazes, das matadeiras.
A verdadeira ressaca se incumbe de não aceitar remédio nenhuma. Só é verdadeira a ressaca que deixa o cabra sem pé nem cabeça, sem vontade de nada e negando tudo ao redor, sem qualquer desejo de qualquer coisa.
Só é verdadeira a ressaca quando o sujeito sente a cabeça maior que o corpo inteiro e nela nada mais há que uma roda gigante subindo e descendo, remoendo tudo, chacoalhando, querendo se desprender e lançar ao longe.
Não haverá ressaca se a cama não rodopiar, se o estômago, ainda que vazia, deseje despejar pra fora um litro e meio de qualquer coisa. Não haverá ressaca se o pé da cama onde está o chinelo não parecer a coisa mais longe e mais difícil de alcançar.
Só se reconhece como ressaca aquela onde a goteira se derrama por cima do corpo e a pessoa sequer sente que está chovendo, quando a manhã já parece noite e a noite aparece com um sol imenso queimando tudo.
Nada de sonhos, somente pesadelos. Nada de sono, mas um adormecimento forjado na inércia e o desencorajamento para levantar, para fazer qualquer coisa, até para viver. Nada de olhar para o relógio, pois este é certamente o maior inimigo de alguém com ressaca.
Na ressaca, acaso um despertador solte o alarme é como se um disparo estivesse sendo dado em direção à cabeça. E não raro que a mão consegue alcançá-lo e arremessar na parede, ainda que jogado sem qualquer direção.
Na ressaca grande, o sujeito ressacado encontra a morte em vida. Ora, é um imprestável, um ser abjeto sem valia alguma, um resto jogado num beiral de precipício, um ser que o mais desejado naquele momento é de jamais ter nascido.
Não adianta chá milagroso, comprimido pra dor de cabeça ou qualquer outra invenção humana. Não adianta caldo, escaldado ou papinha. Não adianta leite, refrigerante ou qualquer líquido. Não adianta sequer qualquer coisa. O ressacado decide até não querer mais viver.
A ressaca braba só passa com o passar do tempo, e com início de recuperação somente no dia seguinte, depois que a pessoa passa a se alimentar e repousar a contento. Sinal de que está indo embora se avista quando a mão já consegue segurar um objeto sem tanto tremer.
Quanto mais a pessoa bebe água mais fica com sede. Chega um instante que qualquer líquido se nega a entrar. Comida de jeito nenhum. É comer e botar pra fora. Só de pensar em comida dá vontade de vomitar.
E o pior é que surge uma fome danada, mas não adianta sequer olhar para um prato. Ao deitar, parece que o mundo gira sem parar, dando até vontade de pedir para ser amarrado à cama.
Quer chorar, quer gritar, quer morrer. Sim, quer morrer, pois toda ressaca possui uma propensão suicida, ainda que ninguém já tenha tentado contra si mesmo por causa de uma ressaca mal resolvida.
Por fim, pensa até em beber logo outra para equilibrar os nervos e retomar o ânimo na vida. Mas não adianta. Só há um remédio: beber pouco e, principalmente, não beber.


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Lá no meu sertão...



Sertão na boca da noite...




Amor demasiadamente nada


Amor demasiadamente nada


Pergunte-me o que é amar
e responderei que o amor não há

mas se perguntar se já amei
mais que depressa responderei

que amei todo o amor do mundo
e que o mundo desabou num segundo

quando o meu coração se elevava
não sabia que em pluma se transformava

pois tudo na ilusão de querer demais
e aos pés o túmulo aberto onde o amor jaz

um amor existente em tal desamor
é amar o espinho pensando que é a flor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – velho amigo Teixeirinha


*Rangel Alves da Costa


Pelas ruas e esquinas de Poço Redondo, eis que encontro o velho amigo Teixeirinha. “Eu sei, é o filho de Alcino”, primeiro me confirmou pra depois se deixar retratar. Já bem acima dos sessenta anos, nos seus pés e nos seus passos um Poço Redondo que por poucos é relembrado. No seu percurso também parte do percurso de Poço Redondo e do sertão. Homem simples, pacato, de extrema humildade, apenas um fiel vivente de seu mundo sertanejo. Depois disso, de repente o avistei sentado num tronco, debaixo de um pé de pau. A pressa impediu que eu me aproximasse, mas levei comigo a imaginação do que tanto se passava naquela mente sertaneja. Tal contradizendo os modismos, talvez relembrando os tempos idos, talvez indignado com a sina do progresso, talvez apenas deixando o tempo passar retornar a sua casa, molhar seu feijão, fartar a fome com coisa pouca. Assim mesmo, bem assim.


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segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL


*Rangel Alves da Costa


As luzes acendem e apagam. De repente o brilho e num instante as sombras. As aparências não traduzem as realidades. Há sorrisos e alegrias, há semblantes de regozijo e de contentamento, mas também os ocultos com outras feições. Um dezembro que chega e se vai disfarçando a vida, vez que promessas se escondem em impossibilidades. Mas é Natal. Então, Feliz Natal.
Já não se ouve a harpa melodiosa de Luis Bordón. Os cartões natalinos já não são entregues pelos carteiros festivos. As lembrancinhas singelas deram lugar aos brilhos modistas. Os presépios e enfeites natalinos escassearam nas residências. Apenas o comércio pisca o seu apelo às compras. O Papai Noel já não encanta tanto. A ceia permanece como teimosia. Em tempos de crise e de dias tão difíceis, muitos só desejam que apenas tudo passe e um novo ano talvez chegue melhor.
Nada de Carrossel do Tobias nem de passeio no parque. Pipocas coloridas, algodões adocicados e maçãs do amor, tudo se esconde na memória. Folhinhas e calendários só para clientes bons. Pessoas caminhando e escolhendo presentes, pessoas voltando sem nada comprar. Qual a alegria de conviver num período assim, sem que quase nada possa fruir daquilo que chama e oferece? Ora, esta a idealização materialista daquilo que na cristandade possui outra feição.
Ainda assim sempre será Natal. Mas um Natal vivenciado de modo estranho e incompreensível. Aqueles que podem, que possuem recursos para a compra e a fartura, e aqueles que pouco ou nada podem, e que se contentam em se revestir da significação maior do Natal. Não mais como antigamente, mas na sensibilidade da compreensão do Natal como um período sagrado. Muito diferente daqueles cuja comemoração significa apenas mais um festim entre o luxo e o esbanjamento.
Nestas contradições é que o Natal de agora chega e vai embora. Mesmo em férias ou em tempo maior de repouso, poucos aproveitam o período para a reflexão, a meditação, o reencontro consigo mesmo. As viagens não deixam, os preparativos festivos impedem que se encontre um tempo para si próprio. Amigos enfermos são esquecidos em seus leitos, pessoas carentes são relegadas ao esquecimento.
Mas nada que impeça em dizer: Feliz Natal. Feliz por que se espera que cada um alcance sua felicidade e espalhe tal contentamento entre os seus e perante o mundo. Natal por que significando nascimento, natividade, um novo ser que nasce ou renasce para uma nova vida, que é sempre a mesma aprimorada nas melhores virtudes e atributos do ser humano. E Feliz Natal por que o nascimento do menino em Belém deve ser visto também como um novo tempo de felicidade surgido em cada um.
Mas não é fácil vivenciar o tempo natalino. Muito fácil dizer que tenha feliz natal, muito fácil enviar uma mensagem natalina via computador ou celular e dar por resolvida a recordação. E quando depois tudo passa? O Natal, muito mais de ser apenas uma data comemorativa de natividade, deveria servir como um período de reflexões profundas sobre as contradições desse mundo e dessa vida.
Perante as contradições, os prantos estão escondidos, os soluços estão estancados, os lenços restam jogados, os olhos apenas brilhosos. Ou talvez não. O período natalino faz aflorar sentimentos mais que vorazes. São dias em que as nostalgias e as tristezas assomam como enxurrada no ser. Mas ainda assim, Feliz Natal.
Famílias se reúnem ao redor de mesas, bebidas e taças reluzem, presentes são abertos, abraços trocados, palavras bonitas ditas. Tudo é tanta e tamanha felicidade. Ou talvez não. Barracos tristonhos e mesas vazias, crianças famintas e silêncios forçados, um Papai Noel que não chegou - por que nunca chega - e uma noite tão empobrecida como ao redor de uma manjedoura. Mas ainda assim, Feliz Natal.
Amigos secretos, nada discretos, esfuziantes. Uma joia cara, um perfume importado, uma gravata Hermès, uma caneta Mont Blanc, um vinho da melhor safra. Ora, as pessoas têm direito a compartilhar suas amizades, suas alegrias e felicidades. Ou talvez não, ainda que tanto deseje dividir ao menos um pão. Cadê o panetone, cadê o chester ou mesmo um frango qualquer? Cadê o vinho de mesa barato, cadê o refrigerante, cadê um pano de chita pra Zefinha fazer uma roupa bonita? Não tem. Nada disso tem. Apenas as luzes apagadas numa árvore de natal que nunca existiu. Mas ainda assim, Feliz Natal.
Pelas ruas da cidade ainda os brilhos festivos. Os coros nas catedrais anunciam as missas e as cantatas da caristandade. Em muitos jardins residenciais, as hienas iluminadas são apenas parte de uma decoração de céu estrelado, piscando, piscando. Os presépios são adornados de uma riqueza tal que talvez um menino burguês ali estivesse deitado em berço de seda. Contudo, as estrebarias, as manjedouras, as camas de capim e o silêncio entristecido dos desvalidos, não estão muito distantes dali, pois num mesmo mundo se dividem os que têm estrelas e os que apenas avistam a ideia de luz.
Mas ainda assim, Feliz Natal!


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Lá no meu sertão...


Pífanos da Família Vito - Poço Redondo, sertão sergipano




Ela não veio (Poesia)


Ela não veio


Triste estou
ela ainda não veio

senti o cheiro da flor
vi borboleta voando
abri a janela de luz
abracei a esperança
beijei o cálice do amor

mas ela não veio
e tão triste estou
porque o amor espera
e ela não chegou.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – o gavião


*Rangel Alves da Costa


Talvez sentindo cheiro apodrecido, eis que vem o gavião carnicento, faminto, voraz, feroz. Ou será o homem, ou será o homem? Um cheiro de sangue por todo lugar, uma sangria sem fim, tão medonha como horripilante. Então vem o gavião com seu bico certeiro, com sua sede imensa, com sua maldade no bico. Não sei se gavião, pois talvez o homem, talvez o homem. Um resto de resto, uma vida esvaída, um fim terminado. Não há prato melhor para o gavião. Mas também para o homem. Nada ainda morreu, resta um sopro de vida, mas nada que fuja da morte certa na sanha do gavião. Ele ronda, ele aparece, ele de repente surge, ele avança, ele destroça, destrói, exaure. Ou será o homem, ou será o homem? Tudo parecendo em paz, em silêncio e mansidão, mas eis que um voo repentino a tudo desfolha, a tudo faz zunir, a tudo esvoaça. Ali vem o gavião, surgido do nada, com bico em punhal, com olhos de fogo, com fome de bicho, com sede animal, ali vem o gavião. Ou será o homem, ou será o homem?


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domingo, 24 de dezembro de 2017

NINGUÉM VEIO ME VISITAR


*Rangel Alves da Costa


Não nego que gosto de solidão. A solidão é minha amiga, é minha confidente, é minha namorada. A solidão me completa. Mas não em todos os instantes da vida.
Faço da solidão um mundo que pode ser ajustado através do pensamento. Trago o que quero, busco o que desejo, transformo o que me for conveniente. Pinto paisagens e faço surgir retratos emoldurados daquilo que desejo.
Contudo, a solidão é mundo de instante. Até por que, forçosamente, a porte se abre para outras realidades. Então nos apartamos da solidão até a ele retornar num instante propício a vivenciá-la.
Outros instantes existem em que passamos a sentir falta de determinadas pessoas, de pessoas que nos chegam como bons encontros. Encontros e reencontros se tornam em instantes agradáveis e que sempre somam afetos aos sentimentos.
Por isso mesmo que de vez em quando também sinto falta de pessoas amigas. Gosto quando pessoas de minha estima entram pela porta trazendo sorrisos e boas palavras. É sempre bom conversar com quem a gente gosta.
Em períodos natalinos passados, por exemplo, alguns amigos chegavam para abraços de felicitações. Alguns poucos, apenas, mas suficiente para não me sentir tão esquecido num período tão nostálgico e melancólico como o de final de ano.
Este ano, contudo, até agora não recebi uma visita sequer. Hoje já é dia 24, data em que geralmente se comemora, sempre antecipadamente, a natividade maior, e até o presente momento permaneço esquecido pelos amigos.
Não sei se sinto falta ou estranheza. Também nenhum telefonema nem mensagem virtual. Nada. Que eu saiba, não deixei de ter amigos ou deles me afastei sem querer. Será que as transformações da vida estão transformando também as amizades?
Não sei. Não sei. Não mudei de endereço nem viajei até o presente momento. Não havia desaparecido para que soubessem que não me encontrariam. Não mandei nenhuma mensagem dizendo que evitassem me procurar.
Mas alguém haverá de indagar: Por que não vai até eles? Porque eles sempre estão aqui quando desejam e necessitam e possuem condução própria, o que muito facilita a locomoção. Já eu tenho de ir de taxi a qualquer lugar mais afastado do centro.
O que mais estranhei, contudo, foi a ausência total, plena, absoluta. Ninguém, absolutamente ninguém, veio me visitar. E neste domingo certamente ninguém mais aparecerá. Viajam, preferem estar ao lado da família, vão fazer compras de última hora.
Lembro-me agora daquela velha senhora que sempre esperava suas fiéis amigas para o chá das cinco. Somente ela restando em vida, ainda assim todo entardecer sentava ao redor de uma mesinha e mandava servir chá com bolinhos de chuva.
O tempo passava, a noite chegava e ela ali sentada, relembrando e relembrando, de olhos molhados e coração apertado. A solidão, apenas. Depois ali mesmo adormeceu para o sempre, deixando em cima da mesinha um singelo escrito:

O jardim e as flores já não existem mais
colibris e borboletas voaram para bem longe
talvez em busca de outros doces perfumes
e em mim a solidão que aflora em outono triste
uma estação que a tudo seca e tudo devora
e que agora me chama para também voar
e voando parto nas asas da solidão a esvoaçar.

E assim também noutras vidas, cuja solidão natalina é como um desfolhado outono. E só chega a ventania. E ninguém mais.


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Lá no meu sertão...


Entardecer nas águas do Velho Chico




Onde está o meu amor? (Poesia)


Onde está o meu amor?


Meu olhar já criou asas
pelas ruas e pelas casas
procurando o meu amor
a saudade que chegou
o desejo então voou
me responda por favor

onde está o meu amor?
onde está o meu amor?

chamas de amor e brasas
em redemoinho extravasas
procurando o meu amor
toda a saudade despertou
paixão que desenlaçou
desejando o meu amor

onde está o meu amor?
onde está o meu amor?


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - ruas tristes


Palavra Solta - ruas tristes

*Rangel Alves da Costa


É Natal, mas um Natal de ruas tristes. Tempo nublado, calmo, sombrio, silencioso, vou até o portão da frente e avisto o deserto na cidade grande. Olho para um lado e outro e apenas avisto casas de portas e janelas fechadas e um asfalto ainda úmido da chuva pouca caída na madrugada. Nenhum menino passa correndo, nenhuma voz é ouvida pelos arredores, nenhuma pessoa entristecida passa pela calçada. Já não é mais tempo de estar dormindo. Os cafés já borbulham em chaleira, os pães adormecidos já estão sobre a mesa. Mas este o mundo das casas e não das ruas. Um cachorro sem dono passa. Um gato surge numa esquina. O entregador de jornais não apareceu. Não é feriado, pois apenas um domingo. Não tenho porta, mas meu portão está aberto. Vou até a esquina e avisto a mesma solidão das ruas tristes. Uma janela enfim é aberta. Mas não avisto ninguém. Uma voz sem face, um barulho sem gente. Um carro passa. E só.


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sábado, 23 de dezembro de 2017

GENTE POR FORÇA DE DEUS


*Rangel Alves da Costa


Neste período que antecede o Natal, a data maior da natividade cristã, e onde grande parte das pessoas distorce seu significado para vivenciá-la como festividade comum, será preciso refletir sobre alguns outros importantes aspectos.
Como dito, grande número de pessoas se entregam aos festins, às compras, às comemorações, aos congraçamentos. Outra parte se esforça para preparar a ceia e ofertar à família ao menos um instante de comunhão. Alguns se humanizam mais, lembram que existem pessoas que necessitam ser visitadas, ajudadas, acolhidas. Outros, ainda que com vontade de ter ao menos o mínimo para festejar seu Natal, simplesmente encontram a tristeza e o sofrimento pelo pouco ou quase nada ter.
Na verdade, ainda que nem todos queiram reconhecer, não só no período natalino e no dia maior, muitas pessoas convivem com tamanha pobreza e carência sequer do mínimo à sobrevivência que a noção de sofrimento já se arraigou como raiz de uma desvalia sem fim. Nestas, ter apenas um frango ou um pedaço de carne como ceia, certamente que seria verdadeira dádiva na existência.
Que não se enganem: pessoas existem apenas pela feição humana, sem muito além disso, pois de sobrevivência tão difícil que somente adentrando sua porta para sentir a feição aterradora de um nada ter. Panelas vazias, fogo apagado, pratos guardados, crianças famintas, crianças doentes, crianças chorosas, famílias inteiras querendo um pão. Sim, de vez em quando alguém aparece com uma cesta de alimentos, com um pacote disso e daquilo, mas tudo tão sem nada que em pouco tempo nada mais restará.
E como vivem pessoas assim, famílias inteiras assim? Como conseguem viver e sobreviver pessoas que amanhecem e anoitecem sem ter café, almoço ou janta? Fato é que em se tratando de pobreza, as aparências nem sempre enganam. Não enganam mesmo. Passar diante de um barraco ou de uma casinha de feição empobrecida é, muitas vezes, apenas uma visão menos dolorosa do que aquilo que se possa encontrar lá dentro. Entre e vá ver, entre e vá sentir, entre e vá compartilhar ao menos por um instante dessa dor que nunca tem cura.
Indaguei: Como vive e sobrevive uma gente assim, na carência e na desvalia de quase tudo? E logo respondo: Na fé, na esperança, na perseverança, na expectativa de que o instante seguinte seja melhor. Igualmente o sertanejo que suporta na esperança de chuva todas as dores e sofrimentos, do mesmo modo aqueles que vivem nos vazios e desalentos de seus barracos, na secura da panela e da barriga. Estes, contudo, e não há que disso duvidar, possuem uma fé infinitamente maior que qualquer outro de mesa e colher.
Repito, pois, que há uma gente que só sobrevive como gente pela força de Deus. Há uma gente que só amanhece e anoitece pela força de Deus. Há uma g ente que só fala, sorri e encontra ânimo para lutar pela força de Deus. Há uma gente que só encontra razão pra viver pela força de Deus. Há uma gente que só continua existindo pela força de Deus. Há uma gente que somente suporta as agruras e as angústias do dia a dia pela força de Deus.
Há uma gente que somente se diz gente e vive como gente pela força de Deus. Pela força de Deus por que sobrevivendo pela incontida fé em Deus. Uma gente que é pobre, carente, sofrida, desvalida de tudo, mas de imensa riqueza na fé, na perseverança, na religiosidade, na comunhão com o sagrado, na esperança por dias melhores.
Não é fácil vive em contínuo desemprego. Não é fácil viver mendigando pelas ruas. Não é fácil acordar e deitar sem o pão para saciar a fome. Não é fácil estar doente e não ter remédio, não poder comprar um comprimido sequer. Não é fácil ouvir o filho chorando querendo comida. Não é fácil viver ameaçado em barraco de lona. Não é fácil viver nos escombros e ainda pensar que possui moradia. Não é fácil a roupa em frangalhos, os pés descalços, a imundície forçada. Não é fácil viver assim. Mas há muita gente que vive assim. E somente suporta viver assim por força da fé em Deus.
Neste Natal, então, lembre que há gente assim, uma gente que só sobrevive pela força de Deus. Vá lá, bata à sua porta, entre. Conheça essa gente e suas carências. Seja também um Deus em suas vidas. Ajude-a a sobreviver e a também ter esperança no sagrado humano.


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Lá no meu sertão...


Sertão do São Francisco




Palavras de um adeus (Poesia)


Palavras de um adeus


Ontem eu ouvi
em palavras escritas
a última voz de um amor
que mesmo existente
já não existe mais

amar sozinho é dor
amar na solidão é dor
amar sem o outro é dor
e muito mais se o amor
ama sempre em desamor

por isso ontem decidi
dizer do amor e do adeus
e dela ouvi um tanto faz
como se o amor existente
já não existisse mais.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - esqueceram de mim neste Natal


*Rangel Alves da Costa


Não tenho dúvidas que se esqueceram de mim neste Natal. Talvez o próprio Natal tenha se esquecido de mim. Da mesma forma que desde muito que vêm esquecendo-se do Natal, tratando-o como uma data qualquer, um simples festim comemorativo ou uma passagem para novas e quase sempre irrealizadas promessas, do mesmo modo fizeram comigo. De qualquer sorte - ou infortúnio -, fato é que já não me chega qualquer exteriorização do Natal. Exteriorização significando os brilhos, os sabores, as cores, os materialismos tão próprios do período, pois interiormente permanecem os sentimentos e a força significativa da natividade cristã. Fora o que sinto no meu eu e com o que tenho de me contentar, o restante é apenas de esquecimento. Esqueceram o meu chester, o meu pernil, o meu queijo de prato, o meu espumante, o meu vinho, o meu uísque, o meu panetone, a minha farofa enfeitada, a minha salada gorda, a minha sobremesa. Certamente também se esquecerão de meu presente. Da soma de tudo, entre o ter e o não ter, resta-me em pensamento a força espiritual daquele menino na manjedoura e a solidão de dias que passam sem ao menos uma árvore de Natal ao lado para outras recordações. Um triste Natal, apenas.


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