*Rangel Alves da Costa
Além do couro e do gibão, do chapéu e da
perneira, do peitoril e da chibata, o mundo sertão possui no canto do homem da
terra uma de suas maiores expressões na sua lida de gado, na vaqueirama, na
pega-de-boi, na cavalgada, no meio dos carrascais em busca de rês valente.
Quando a voz sertaneja ecoa seu canto festivo ou dolente, sua canção rimada
cheia de improviso ou historiada, então aquele mundo se enche de um
encantamento sentido até pelo bicho.
O bicho ouve e traduz a voz do vaqueiro. Este
possui um canto certo para determinadas ocasiões. Cantigas quase faladas,
canções alongadas e expressando feitos da vida de gado, gritos e singelas
palavras que traduzem o diálogo da terra. E não há quem não se encante quando,
mesmo ao longe, a voz vaqueira ecoa o seu o aboio ou a sua toada. No meio do
mato então. No meio da caatinga, entre cipós e pontas de espinho, o canto
sertanejo se torna em saga de todo cotidiano e de toda luta.
Não há como imaginar o sertão, suas distâncias
e suas caatingas, seus currais e suas estradas, sem considerar os cantos da
vaqueirama como vozes ecoando por todo lugar. Verdade que noutros idos eram em
maior profusão e mais cheios de autenticidade, pois os vaqueiros de então eram
muito mais enraizados na terra e apaixonados por suas lides. As duplas
profissionais de aboiadores e toadeiros também eram mais fidedignas e
reveladoras da legítima vida de gado em cada canto. Mas nada que tenha modificado muito o
compasso dos aboios e das toadas de agora.
Atualmente há um interesse crescente pela
vida de gado, principalmente vaquejadas. Todo final de semana há uma vaquejada
em algum lugar do sertão. E mesmo mais de uma dentro do mesmo município.
Entretanto, poucos são os verdadeiros vaqueiros - aqueles nobres e destemidos
sertanejos que encourados se lançam nos labirintos catingueiros atrás do rabo
do boi brabo, afoito e corredor - e muito mais uma plateia que acompanha os
festejos como se numa festa qualquer estivesse. Exemplo maior são as roupas
chiques e os perfumes em meio ao cheiro bruto do gado e do cavalo.
Noutra ponta, também não se costuma ouvir
aboios e toadas em pé de balcão como acontecia antigamente. Ora, assim que
fazia o trabalho do dia, a primeira coisa desejada pelo vaqueiro era tomar uma
talagada de pinga da boa, uma casca de pau de raiz, daqueles que o santo bebe
um pouquinho e estremece todo. Chegado ao pé do balcão, depois de duas
relepadas na fita do copo, logo a inspiração chegava em forma de canto, em
forma de aboio e toada. Hoje já não se avista tanto o cavalo numa porta de
botequim e o seu dono lá dentro virando pinga e cantando a vida.
O que se observa atualmente é a
profissionalização tanto do aboiador como do toadeiro. Nas festas de vaquejada
e nas cavalgadas, por exemplo, as duplas se apresentam em palcos ou em cima de
carros de som. São nomes conhecidos no mundo sertanejo e por isso mesmo
contratados para os eventos. Já os da terra vão ficando ao largo do
esquecimento e os seus cantos resguardados para as vaqueiramas solitárias ou
entre poucos amigos. Mas nada substitui a canção boiadeira ao largo do
estradão, no meio do mato, nos escondidos das caatingas.
Há, porém, que distinguir entre o aboio e a
toada, ainda que as duas sejam canções dolentes do homem da terra
sertão. Vaqueiro, aboiador, toadeiro, cantador de vaqueirama, tudo num só canto
sertão. Mas o aboio não é toada e nem toada é aboio. O aboio é cantiga de mato,
saída da voz vaqueira enquanto vaqueja o gado. É lenta, compassada, como se
pela canção dolente o vaqueiro estivesse dialogando com o bicho. Ê boi, ê boi
valente!
Já a toada
é a canção do vaqueiro ou do homem da terra em meio à festança, antes ou após a
pega-de-boi, no beiral do balcão enquanto entorna pinga ou nos palcos das
vaquejadas. É geralmente um canto triste, uma canção nostálgica, rimando na
letra e versos histórias sertões adentro, podendo ser entoada em dupla ou não.
Na toada, de improviso ou não, a homenagem à morte do vaqueiro, a homenagem ao
boi ligeiro, às desditas do sertanejo em meio às angústias e sofrimentos.
Geno Vito,
por exemplo, é erroneamente chamado de aboiador. Mas não. Ele é cantador de
toada, é toadeiro, e não aboiador. Sua arte da cantoria é expressa em versos
rimados, em letras, nas festanças ou nas vaquejadas, e não propriamente perante
as lides de gado. Já o canto surgido no meio do mato, por cima dos cavalos e
nas lides da vaqueirama, ou pelos estradões enquanto a boiada é tangida, sai da
voz do aboiador. Ê gado ê, ô...
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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