SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 31 de agosto de 2016

CUSCUZ PURO


*Rangel Alves da Costa


O cuscuz é um dos pratos típicos mais apreciados do mundo. Típico por que cada povo costuma ter uma receita própria e à base de milho, arroz, trigo e outros cereais. Dependendo da região, o cuscuz se torna num misturado que mais parece outro prato.
As receitas são muitas, levando miúdos, carnes diversas, queijos, salsichas e outros embutidos, temperos, conservas, dentre outras opções. Mas nada igual ao nosso velho e conhecido cuscuz nordestino, sertanejo de cheiro e fogão. Cuscuz de massa ou flocos de milho, sem mistura, saído fumegante do cuscuzeiro.
Conheço muita gente que se basta no cuscuz puro, sem acompanhamento algum. Até diz que qualquer coisa misturada às fatias amareladas acaba distorcendo o generoso sabor. E com razão. E tem gente que aprecia tanto o prato que é capaz de devorar um cuscuz inteiro em poucos instantes.
“Agora, imagine sendo o cuscuz autêntico, de milho ralado em quintal, cozido em fogão de lenha e recoberto por pano limpo, de onde logo surge uma névoa quente, cheirosa, perfumada, apetitosa, para depois ser fatiado e saboreado com manteiga da boa, ovos de galinha de capoeira ou queijo da terra se espalhando ainda quente pelas fatias e ao redor...”.
Conheci um senhor que causava um problema sério na hora do café da manhã ou do jantar. Sempre queria cuscuz, e puro, mas tendo de ser vigiado pela família para não fugir do limite. Como eram feitos dois cuscuz, sendo o dele um pouco menor, comia inteirinho o seu e depois olhava para os cantos e, não avistando ninguém, corria a pegar fatias no outro cuscuzeiro.
“Agora, imagine se esse cuscuz tão apreciado fosse saboreado com uma xícara de café batido em pilão e torrado, feito em chaleira antiga, derramando pelas beiradas o mel enegrecido dos deuses. Manteiga se derretendo por cima de cada fatia, mais adiante uma porção de tripa assada, fininha, mas daquelas que escorre pelo canto da boca a cada mordida...”.
Muita gente come o cuscuz puro por falta mesmo da chamada mistura. Mas tenho certeza que muito mais gente prefere ele assim, sem acompanhamento algum, pelo simples prazer em comer, em saborear cada pedaço de fatia, e sempre querendo mais. Quando no ponto, nem muito endurecido nem muito molhado, descendo ainda fumegante no prato, realmente faz esquecer qualquer outra comida que possa ser misturada. Basta esfriar um pouquinho e mastigar revirando os olhos.
“Agora, imagine um cuscuz de milho ralado, como aqueles próprios das fazendas e lugarejos afastados, chegando sobre a mesa acompanhado de um bom pedaço de porco assado, uma boa costela de gado, ou mesmo uma carne torrada e oleosa. Antes de tudo, molhar a fatia com o óleo da fritura, depois espalhar por cima uns pedaços já cortados segundo cada garfada ou colherada, e tendo ao lado uma xícara de café negro e encorpado. É um não querer sair mais nunca da mesa...”.
Muita gente prefere pão, inhame, macaxeira, sopa, ou mesmo o que tiver na hora da fome da manhã e da boca da noite. Mas há os verdadeiros apaixonados, fanáticos pelo cuscuz. E tanto faz que seja em floco ou a simples massa, bastando que chegue com aquele cheiro inconfundível do milho cozido. Verdade que o aroma nunca é igual àquele ralado em quintal e cozido sumarento sobre o fogão de lenha, mas a intenção vai pela fome e a fome faz surgir o perfume.
“Agora, imagine um cuscuz caipira, de milho ralado, com leite de coco por cima, ou mesmo leite de gado morno, com nata grossa por riba. Imagine um cuscuz assim acompanhado de uma perna de preá assado, de uma nambu ou codorna, de uma caça qualquer. Imagine um prato assim diante de um cabra que chega cansado ou que tem de ter sustança para o trabalho do dia. A pessoa come de perder a hora, de dar moleza, de dar vontade de somente se estirar numa rede e sonhar. Com mais cuscuz...”.


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Lá no meu sertão...


A Cavalhada em Poço Redondo, sertão sergipano - VIII







Poesia com fome e sede (Poesia)


Poesia com fome e sede


A poesia
está com fome
pobre poesia

a poesia
está nua
pobre poesia

a poesia
está com sede
pobre poesia

a poesia
está chorando
pobre poesia

a poesia
não quer esmola
quer poesia

e uma poesia
assim faminta
de poesia.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - por que os televisivos amam tão pouco?


*Rangel Alves da Costa


Sim, os televisivos e famosos quase não amam, ou não amam mesmo, e apenas se juntam, apenas ficam, apenas passam temporadas como se casados fossem. Vivem cenas televisivas, com tórridos apelos ao telespectador, e depois tudo se desfaz com a maior naturalidade do mundo. Poucos são os exemplos de artistas, atores e atrizes, e outros famosos que fizeram durar seus casamentos ou suas uniões conjugais. No demais, casam hoje e amanhã as separações já estarão estampadas nos folhetins. Mesmo aqueles já com filhos crescidos, passados dos vinte anos de união, de repente acabam se solteirando. O exemplo mais recente é o de Fátima e Bonner. Outros casamentos, contudo, nem chegam a procriar e logo estão no adeus. A coisa é tão fugaz, tão frígida, tão fria e tão instável, que o desfazimento da relação ou da união sequer provoca qualquer tristeza ou desalento. Também pudera, amanhã o solteiro já estará com outra atriz, com outro ator, outro famoso, aos beijos ardentes e coisas mais. Em tais uniões ou relações - estas tão passageiras como as estações - certamente que não há lugar para o amor, para a paixão, para um compromisso maior. Apenas uma novela na vida real, que simplesmente acaba. E as cenas do próximo capítulo já serão ao lado de outro ou outra.


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terça-feira, 30 de agosto de 2016

CANÇÃO DE MÃO-DE-PILÃO


*Rangel Alves da Costa


No pilão antigo, ainda hoje fincado no quintal como relíquia imorredoura de gerações que se foram, toda a representação e memória de um tempo de lutas e sacrifícios, onde a sobrevivência tantas vezes dependia da batida da mão do pilão sobre a fundura na madeira.
Aquele talvez o último dos muitos pilões que sofreram nas entranhas a batida forte do roliço tronco de madeira de lei. Quando as mãos levantam a madeira e em seguida descem com força bruta, sem tempo para gemer, então se ouve um grito rouco, seco, saindo das entranhas do tronco. E gritos que se repetem compassadamente, segundo o tempo da batida, até a mão-de-pilão ser deitada após o trabalho feito.
O pilão, nos tempos idos, estava em tudo e por todo lugar. Não havia tribo sem pilão, não havia senzala sem pilão, não havia casa-grande sem pilão, não havia cortiço sem pilão, não havia quintal sem pilão. Para esmagar caroço de milho, tirar a casca do arroz, tornar em pó o grão do café, esfarelar a folha seca, para moer raízes e frutos. Mas ele sumiu.
O pilão sumiu, ou quase sumiu. E só não sumiu de vez por que os mais antigos possuem verdadeiro amor familiar àquele tronco agora adormecido num canto do quintal. Quando abrem as portas dos fundos e caminham pelos arredores, basta avistar o velho pilão e logo começam a recordar o passado e a canção da mão-de-pilão. Canção esta jamais escrita, jamais cantada com voz melodiosa, apenas ouvida e guardada na memória pelo som da mão descendo sobre o pilão.
“Tum-tum-tum. Levanta do chão a mão do pilão, limpa as pontas da mão do pilão. Coloca o grão dentro do pilão. A mão levanta a mão do pilão. Tum-tum-tum. Dentro da fundura a maior aflição, com o grão gemendo sob a mão-de-pilão...”.
As velhas mãos, já tão cansadas de tempo e idade, não têm mais forças sequer para levantar a mão do pilão. Mas noutros idos, ao amanhecer e entardecer sempre ecoava a canção do pilão. Precisava transformar o milho em xerém, bater o café em caroço, tirar a casca do arroz de várzea. Ou assim se fazia ou pouco se tinha como alimento do dia a dia, para o homem e para o bicho.
“Tum-tum-tum. Bate que bate o pilão na boca da noite, e bate mais forte senão logo chega o açoite. Negra mão na mão-de-pilão, pilão escravo de toda aflição. Tum-tum-tum. Bate que bate o pilão sem mostrar o cansaço, pois o algoz se aproxima tendo a mão o ferro e o laço...”.
A tecnologia do pilão é das mais antigas existentes. A necessidade fez com que o homem primitivo buscasse meios para esfarelar, triturar ou amassar, aquilo que encontrava como grão, raiz ou folha. Como perdia muito ao simplesmente bater sobre o grão numa pedra, então achou por bem abrir uma fundura num tronco, de modo que ao bater e triturar nada se perdesse. Depois separava com peneira o farelo ou o pó e o problema estava resolvido.
“Tum-tum-tum. Enquanto sobre e desce a mão-de-pilão, da voz se ouve uma canção. Mas é canto triste e de lamentação, falando de saudade e de solidão, mareando os olhos e o coração. Tum-tum-tum, assim bate o pilão, assim também a vida em recordação...”.
Não há melhor café que aquele nascido com o grão batido em pilão. Quando o pó desce pela peneira sobre o pano limpo e depois é levado para a chaleira já com água fervente, em cima de fogão de lenha, então logo tem início uma verdadeira magia. Tudo se perfuma, tudo se encanta, pois não há nada mais aromatizado e saboroso que o café de pilão borbulhando seu negrume precioso.
“Tum-tum-tum. A memória ainda guarda a batida do pilão, a nostalgia ainda relembra a mão sobre a mão do pilão, num misto de sofrimento e emoção. Tum-tum-tum, pois assim batia o pilão. E de saudade somente bate o coração...”.


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Lá no meu sertão...


A Cavalhada em Poço Redondo, sertão sergipano - VII






Mar em mim (Poesia)


Mar em mim


em mim
um mar
assim
sem fim
de azul
carmim
de seda
e cetim
um além
sem-fim
uma paz
de jardim
um medo
tão assim
de aportar
no confim
do olhar
molhado
e fim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - a vila dos solitários


*Rangel Alves da Costa


Há pouco li uma reportagem sobre uma vila dos solteiros, que também pode ser dos solitários, e acabei me reconhecendo um pouco no que foi relatado. Diz a reportagem do G1 (Os solitários homens do ‘vilarejo dos solteiros’ na China, de Robin Brant, da BBC) que grande parte dos homens do vilarejo permanece solteira e até sem esperanças de terem futuras companheiras, principalmente pelas dificuldades de acesso ao local onde vive, o que os tornam como que isolados do restante do país e das mulheres aptas ao casamento. Talvez ali em Layoa, que é nome do vilarejo, também exista uma casa para mim e minha solidão. Só há uma diferença entre minha pessoa e os rapazes do vilarejo. Eles continuam solteiros e solitários porque não conseguem ter companheiras. Enquanto eu assim continuo por uma opção pessoal. Ou não.


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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

ELEIÇÕES: OS ÓDIOS E OS AMORES


*Rangel Alves da Costa


Neste período eleitoral, de nomes já escolhidos, de candidaturas lançadas, de coligações e slogans, de repentinas uniões amorosas e súbitas e ferrenhas inimizades, nas redes sociais avultam as paixões, as tendências, as “lavagens de roupas sujas” e verdadeiras pérolas extraídas dos anseios populares. Despontam os momentos ideais para que os eleitores se fanatizem de vez ou façam de Geni cada candidato opositor. Flores e aplausos a uns, pedras e pontapés em outros. Assim a costumeira cultura eleitoral, sempre pautada pelos ódios exacerbados e os amores exagerados.
Como as propagandas já estão permitidas nas redes sociais e por toda a mídia virtual e além, então surgem as mesmices e os achados estrambólicos. Um candidato se autodenomina o mais honesto do mundo. Ora, mas outro político não havia dito o mesmo e está em vias de ser provado o contrário? Outro candidato se diz amigo do povo, como se antes nutrisse um certo desdém. E tantos outros se afirmando competentes, incorruptíveis, compromissados demais em fazer o que somente caberia a um prefeito eleito. E assim por que há candidato que vai tomar conta de hospital, cuidar da infraestrutura municipal, não deixar faltar nada à população.
Os slogans dos candidatos a prefeito e vice, na grande maioria, não expressam efetivamente nada além de quaisquer palavras, que mais tarde se tornarão em letras mortas. Há um tal de compromisso com o povo que mais parece brincadeira com o entendimento do humilde leitor. Há também um tal de trabalho e desenvolvimento que mais parece o poder infinito da transformação. Coisas que acabam cansando e até enojando os eleitores mais experientes, vez que acostumados a tais compromissos e promessas e pouco ou quase nada resultar em realidade.
Com relação ao momento eleitoral, uma postagem numa rede social sintetiza a aproximação do candidato perante o eleitor, principalmente aquele economicamente mais desfavorecido, assim expressada: Começou a caça ao pobre. Abraça o pobre, beija o pobre, acaricia o pobre, ouve o pobre, promete ao pobre, e até inventa um passado de pobreza igual, mas depois ganha a eleição e esquece o pobre. Quer dizer, o político sempre procura fazer do pobre sua riqueza eleitoral. E depois esquece mesmo, pois assim sempre acontece. E quatro anos depois...
Noutra postagem, alguém escreveu: Um verdadeiro milagre aconteceu. Depois de quatro anos, pois desaparecido desde que foi eleito vereador há quatro anos, sem que sequer a família e amigos soubessem do seu paradeiro, eis que agora reapareceu e novamente se apresentando como candidato. O sumido agora não faz outra coisa senão abraçar todo mundo, prometer mundos e fundos, e dizer que o trabalho deve continuar. Tem gente que tem até medo, pensando ser um fantasma reaparecido depois de tanto tempo.
Há mesmo quem relacione os candidatos de agora, mas já em cumprimento de mandato, com os pokemóns go. E dizem que os tais monstrinhos escondidos já existiam no Brasil antes mesmo da chegada do jogo. Viviam camuflados nas câmaras de vereadores, nas assembleias, nas altas câmaras, nas prefeituras. Por isso que ninguém os encontrava de jeito nenhum. Sendo preciso surgir o jogo da disputa eleitoral para que fossem caçados para prestar contas das gestões em troca do voto. O problema é que tem monstrinho que nem precisa ser caçado, pois de repente aparece na frente do eleitor com um sorriso descomunal. Denominam este de poke-cínico.
É um tempo também de guerras, guerrilhas, falsidades e armadilhas. Um tempo de fanatismos e armas à mão e na língua. As cidades interioranas, em pé de guerra, se tornam tão divididas e entrincheiradas que mais parecem campos de batalhas. Famílias brigam entre si, velhos amigos se tornam inimigos, os partidários dos candidatos logo cuidam de enlamear todos os adeptos dos outros agrupamentos políticos. Assim mesmo, pois basta declarar o voto a um e os eleitores do outro - senão os próprios candidatos - começam a achincalhar e a difamar desde as gerações passadas. Quer dizer, só presta quem votar no seu candidato. Do contrário, será chamado de traíra, de safado, de calhorda, e assim por diante. Por isso mesmo que de vez em quando um puxa a arma e revida a desdita na bala.
Um tempo também demasiadamente propício aos puxa-saquismos, às bajulações. Quanto mais um candidato se mostrar com força de ser eleito mais aumentam as paparicagens e adulações. Tudo, logicamente, na esperança de emprego futuro. Ou mesmo para manter o cargo comissionado que já possui na prefeitura. Daí as paixões, as bandeiras erguidas, as brigas com os oponentes, as defesas arrebatadas. É quase como se daquela eleição e da vitória do candidato dependesse a própria vida. Esquecem a panela no fogo e vão para esquina brigar, deixam de lado o ganha-pão de cada dia para ir atrás de um comício ou de carreata.
Mas o difícil de explicar é o seguinte: Por que não se passam nem três meses da eleição e todo mundo já está falando mal do eleito? Ou ainda: Por que no pleito seguinte todo mundo volta a se apaixonar novamente?


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Lá no meu sertão...


A Cavalhada em Poço Redondo, sertão sergipano - VI









Orei (Poesia)


Orei


Orei
por um amor
ausente
inexistente
desconhecido

orei
porque desejo
amar
compartilhar
sentir

orei
porque a boca
só tem a prece
e eu queria
também um beijo.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - escombros, apenas...


*Rangel Alves da Costa


Passo agora e só encontro escombros. Conheço a história de imponência, de pujança, de riquezas e poderes, mas passo agora e só encontro escombros. O coronel já não existe, aquele coronelismo está enterrado com o poderoso senhor dono de mundo, com o tenebroso dedo feudal em riste apontando para a terra, para o bicho e para o homem, e tendo aquele em mais valia que este. Antigo casarão rodeado de jagunços, capazes, matadores. Centro de poder e mando, dali saía a ordem para eleger governantes, para açoitar o trabalhador, para perseguir desafetos, para a emboscada e a morte. Um mundo sem fim de terras numa terra de sem-fim, mas tudo com o seu tempo certo de existência. Quando, sobre o terno de linho branco, respinga a ferrugem do tempo é por que o fim de tudo se aproxima. E o poder e mando desmoronam com a própria morte, com o coronelismo defuntesco que não vale nada além de um resto qualquer, toda a herança vai sendo carcomida como carniça apodrecida. E, mais tarde, somente restarão os escombros. Estes mesmos escombros que agora encontro pelos meus caminhos na vida e na história.


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domingo, 28 de agosto de 2016

“QUEM DÁ MAIS, QUEM DÁ MAIS?” – A TRADIÇÃO DO LEILÃO SERTANEJO


*Rangel Alves da Costa


Os leilões de agora são muito diferentes daqueles de antigamente. Ainda num tempo de candeeiros, de lamparinas e luz da lua sobre os arredores da cidade, ainda assim não havia festa mais iluminada e bonita.
Como para um evento junino, as malhadas das fazendas – geralmente pequenas propriedades – ganhavam bandeirolas, fogueiras e enfeites e comodidades apropriadas à ocasião. E após o anoitecer a chegada dos sertanejos das vizinhanças e mais distante, a pé ou montados em cavalos ou jumentos.
O leilão era o evento anunciado, mas evento matuto inseparável do forró pé-de-serra, do pífano, da dança em sala de reboco, do chinelado fazendo a poeira levantar, da bebida e da casca de pau, do flerte e do namoro. E também da confusão, de vez em quando. Negar uma voltinha de dança era tido como desfeita de briga.
Quando o dono da casa mandava parar o fole para anunciar os inícios, então não demorava muito e o leiloeiro recebia a prenda a ser leiloada e começava a percorrer o salão e a malhada cantando a qualidade e o preço inicial da arrematação. “Um bolo de macaxeira que é uma maravilha. Feito hoje, com coco de mais de um coqueiro, no forno a lenha, vale mais que esse preço. Quem dá mais, quem dá mais?”.
Antigos leilões sortidos de tudo aquilo tão próprio do sertão: galinha de capoeira, capão, cabrito, bolos, doces, garrafas de cachaça, bebidas destiladas, caldeirões de mungunzá e arroz doce, cocada da marrom e da branca, sela, chocalho, sapato de couro cru, queijo, manteiga em garrafa, e muito mais. Mas também sabonetes, perfumes baratos, goiabada, prato e copo.
O leiloeiro, mais conhecido como corredor (aquele que faz o leilão correr), deve ter um dom especial para anunciar e vender os produtos. Não é qualquer um que sabe correr leilão. Precisa ser alegre, de boa voz, piadista, poeta e conhecido na região. E com uma técnica tão especial que permite dobrar o preço com poucas palavras. Instiga o desafio entre compradores e a cada lance dado chama o outro a colocar mais dinheiro por cima.
“Vixe Maria que a coisa tá ficando boa. Rosendinho ofereceu dez conto nesse Cinzano. Mas é pouco, é muito pouco. Olhe ali, Jeremias aumentando pra doze. Rosendinho já diz que dá quinze. E aí Jeremias, vai aceitar a desfeita? Vinte, vinte conto, Bastião levantou a mão ali. Tá em vinte, quem dá mais, quem dá mais? Bastião parece que vai passar a perna nos cabras. Rosendinho se enraiveceu e já ofereceu trinta no Cinzano. E agora, e agora, vou mandar bater o martelo? Bastião virou num bicho, danou-se, já tá apontando trinta e dois. E Bastião vai levar. E dou-lhe uma, e dou-lhe duas, e dou-lhe... Vendido!”.
Os tempos são outros, mas os leilões permanecem vivos na região sertaneja. Não mais com aquela feição matuta de antigamente nem ao som da sanfona (ainda que se encontre leilão acompanhado pela sanfona, zabumba, triângulo e cantador), mas com o mesmo entusiasmo dos participantes. As prendas também se modernizaram, não sendo raros objetos até de informática.
Além disso, o que se observa é que em muitas situações o leilão se transformou num negócio rentável, sempre de bom retorno para o organizador. Se antigamente havia muito mais prazer do que intuito lucrativo na festança, agora não passa de um meio de lucratividade. Ora, as prendas, brindes ou presentes, são doados em grande quantidade. Como no leilão cada produto ou objeto geralmente duplica ou triplica o seu real valor, então se torna num negócio mais que rentável. Além do fato de que quem faz o leilão é também quem comercializa as bebidas e os tira-gostos.
Contudo, não deixa de ser uma tradição que permanece viva e com grande número de participantes. Após a música eletrônica parar e o leiloeiro começar a correr o primeiro produto, então as pessoas se empolgam e querem mostrar que têm dinheiro. E assim, no quem dá mais, quem dá mais, aquilo que na cidade não vale mais que dez reais ali é arrematado por trinta ou quarenta. Tudo em nome da tradição.
Ontem mesmo, aqui no sertão onde nasci e sou visitante habitual, presenciei a realização de leilão. Nada arrematei. Apenas observei para escrever estas linhas.


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Lá no meu sertão...


A Cavalhada em Poço Redondo, sertão sergipano V





Flor de cacto (Poesia)


Flor de cacto


O amor
é flor
é espinho
é cacto

tão belo
e perigoso
tem flor
tem espinho

beija-se a flor
fere-se no espinho
pois o cacto
é amor real.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – quem vai sentir saudades de Dilma?


Rangel Alves da Costa*


Quem vai sentir saudades de Dilma? O aviso prévio já lhe foi dado desde muito, o novo dono da casa precisa do imóvel imediatamente desocupado, o seu tempo de permanência se exauriu e ela sabe que nada mais pode fazer. Se não quiser sair, pois durante muito tempo afirmou que da casa não sairia de jeito nenhum, vai ter que ser despejada à força. Com pé na bunda. E que coisa mais impensável a alguém acostumada a chutar a bunda dos outros com as botinas da arrogância. Mas ela vai ter de sair de qualquer jeito. Despejo por falta de pagamento dos compromissos, despejo por falta de honestidade, despejo por irresponsabilidade no zelo do bem sob sua posse. E assim que for enxotada, ou vai pedir abrigo noutro lugar ou país ou vai ficar no meio da rua. E acaso a rua seja o seu destino, certamente que ninguém irá lhe estender a mão, pois despejada sem poder é igual a desconhecida que é sempre ignorada. E passará um ex-vizinho e fará quem nem a conhece, e passará quem vivia na sua sala e também fará quem nem a conhece. Quem até poderia ajudá-la não está podendo nem ajudar a si mesmo, pois também ameaçado de ir morar num lugar muito indesejado. Verdade é que tem muita gente chorando por causa desse forçado despejo. Mas depois tudo passa. E quando tudo passar será preciso saber quem vai sentir saudades de Dilma.


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sábado, 27 de agosto de 2016

OLHAR E PALAVRA


*Rangel Alves da Costa


Outro dia, num pequeno texto, expressei a seguinte reflexão: O silêncio deveria ser a voz humana! Mas agora me pergunto o que seria do ser humano sem a palavra, sem o poder verbal de expressão, sem a oralidade na comunicação.
Contudo, no instante seguinte eu já havia obtido uma resposta aceitável para tal indagação. Numa síntese, seria o seguinte: Bastaria o olhar como palavra! Então me surgiu outro questionamento: Como conseguiria o olhar expressar tudo aquilo que é tão próprio da palavra
Então, ante verdadeiros questionamentos filosóficos, subi à montanha do pensamento e, lá no cume, igualmente O Pensador de Rodin, fui longamente meditando até chegar às seguintes conclusões:
Palavra e olhar são formas de expressão que se aproximam, mas, muito mais, se distanciam. A palavra presencialmente falada possui um alcance menor. Mesmo num grito, o seu alcance não vai além do que ecoa. E já distorcida da sua força real de expressão.
O olhar, mesmo face a face com o interlocutor, possui uma profundidade indescritível. Não é a mera visão adiante, mas o além que alcança, adentrando na alma e obtendo respostas que ninguém imaginaria possíveis sem palavras.
Ademais, o olhar, sempre além do eco longínquo do que resta do eco, alcança distâncias, rompe horizontes, vai aos espaços, obtendo respostas a cada instante, incessantemente, e de modo visível ou imaginado, e não apenas pela frieza do dito.
Enquanto a palavra diz, o olhar testemunha. A palavra pode mentir, omitir, distorcer, criar versões para o mesmo fato presenciado, mas o olhar a isto não se presta.
O olhar, em verdade, é muito mais verdadeiro que o dono dos olhos. O avistado nunca chega como mentira. Pode haver uma distorção da realidade, quando se imagina enxergar uma coisa quando se está diante de outra, mas não porque assim deseja. Já a palavra, dependendo daquele que a pronuncia, pode distorcer a realidade do fato acontecido no mesmo instante.
Aliás, uma das maiores mentiras do ser humano, e tão próprias das palavras, consiste na expressão “eu não vi nada” ou “eu não vi nada demais”. Ora, viu sim. E viu tudo. Se estava presente no acontecido, então não há como dizer que viu pela metade ou nada viu. Quando a palavra delimita o que foi enxergado, nada mais faz que uma escolha de situações que lhe sejam convenientes.
E tem gente até que vê demais perante fatos presenciados. A mentira nasce assim, a partir da criação de fatos e situações inexistentes. A pessoa encontra um gato e mais adiante repassa a outro que se deparou com um tigre. O outro diz mais adiante que a cidade está sendo invadida por perigosos animais da floresta. E num instante alguém já foi mordido, engolido, e por aí vai.
Mas o olhar não mentiu igual àquela primeira pessoa. O olhar é sincero, sempre sincero, mesmo que aviste com malícia. A forma vista é a realidade abstraída pelos olhos, enquanto a malícia é o real avistado, porém depurado segundo as intenções do pensamento. E o pensamento nem sempre reflete o visível na sua exatidão.
De qualquer modo, mesmo que as palavras se esmerem para conceituar e definir fatos e situações, coisas e objetos, nem de longe conseguem expressar as realidades sintetizadas pelo olhar. A palavra geralmente define segundo a aparência. Pouco se preocupa com as verdades intrínsecas.
Quem ou o que, além do sensível olhar, sabe definir o que seja uma lua cheia, pássaros em revoada, horizontes ao entardecer, borboletas esvoaçando ao redor da janela, a planta que brota sua primeira flor, a chuva caindo sobre a vidraça embaçada?
Quem ou o que, além do sincero olhar, sabe reconhecer e definir um lenço acenando em despedida, uma cruz sendo cravada na terra, um luto dolorido ou uma lágrima de saudade? Ou quem, melhor que o compreensivo olhar, conhece a percepção de uma face perante o reencontro de um velho amigo?


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Lá no meu sertão...


A Cavalhada em Poço Redondo, sertão sergipano - IV






Sonhos indomados (Poesia)


Sonhos indomados


Não consigo domar o meu sonho
adormeço pensando na face bela
adormeço declamando poesia de amor
mas não consigo guiar o meu sonho

e pelos espaços e além vou subindo
levando à mão um buquê perfumado
e do alto avisto o seu passo abaixo
e me desprendo para cair na solidão

não consigo domar o meu sonho
quero sonhar abraçando e beijando
quero sonhar compartilhando prazer
mas não consigo sonhar meu desejo

e do alto vou caindo e caindo mais
até os seus braços negarem acolhida.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – no quarto escuro


Rangel Alves da Costa*


O quarto está sempre no escuro, mas não sei por que ele é avistado sempre assim escurecido. Dizem que nele mora a solidão, a tristeza, a dor, a angústia, a aflição, o pesar dos dias e das noites. Creio que não tudo isso, mas também não muito distante disso, pois tenho conhecimento que ali é o quarto de uma pessoa solitária, muito solitária. Então fico imaginando a solidão sem acender a luz, a solidão na escuridão da noite, a solidão madrugada adentro. Tudo escurecido. Talvez os olhos entristecidos avistem o mundo através das frestas da janela, compreendendo o mundo lá fora como uma sombra sem fim. Certamente chora, sofre, padece, escrevendo poemas dilacerantes pelas vagas escurecidas, beijando impossíveis bocas, tateando e acariciando corpos inexistentes. Talvez além da janela fechada exista um jardim, uma fonte cristalina, um ninho de passarinho. E também um sol que brilha e uma flor que viceja na primavera. Mas sempre outono, outono, outono. E de folha morta pelo chão molhado de lágrimas.


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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

AS PEDRAS DAS LAVADEIRAS


*Rangel Alves da Costa


Todo santo dia, logo cedinho, ela passava entoando a velha canção: Lá vai eu de novo, lá vai eu de novo, levando na cabeça trouxa de roupa do povo. Mas que roupa mais suja, que roupa encardida, não tem sabão que chegue pra essa coisa fedida. E sem jeito a dar, lá vai eu de novo, levando na cabeça a imundície do povo...
Já outra, com medo de perder clientela pela cantiga desaforada, cantarolava baixinho: Caminho que me leva à beira do rio, nessa mesma estrada o mesmo desafio. Molhar, ensaboar, esfregar, sacolejar, depois a roupa estender e logo secar. Caminho que me leva à beira do rio, nessa mesma estrada choro e não sorrio...
As lavadeiras seguiam assim, cantando, mas depois o canto era outro, cheio de saudosa plangência, emotivo demais e até lacrimoso. No bate-bate, no enxagua-enxagua, iam surgindo dolências de entristecer coração. E pelas beiradas e além a voz bonita: Minha mãe partiu e eu fiquei aqui, e minha filha sabe que um dia hei de ir. Enquanto não vou, a roupa eu lavo, assim lavo a alma desse viver escravo. Do tempo e de tudo, que viver mais escravo...
Silenciosas para o instante, de cabeças baixas, sentindo por dentro, as demais se afligiam. Depois também cantavam e em cada canção a poesia sofrida, desiludida, cheia de tormentos. Assim todo dia de difícil labuta. Ofício que sempre começava na noite anterior, quando iam de casa em casa recolhendo as roupas, se estendendo pela maior parte da manhã, até o retorno da beirada do riacho já com os panos lavados e arrumados em trouxas.
Aquilo que comumente chamavam de rio e para onde se dirigiam a cada manhã, não passava de um riacho cujas águas dependiam sempre das chuvas na nascente, ou cabeceiras, como preferiam chamar. Quanto mais chuvas mais enchentes, mais águas muitas, mais facilidades de lavar as roupas nas correntezas que se formavam. Mas quando as chuvas escasseava, então se valiam das águas represadas para o molhar, esfregar, ensaboar, dar a limpeza final. Em situações assim, um sacrifício ainda maior.
Leito de riacho entremeado de pedras grandes, pontudas, lisas, traiçoeiras, onde se formavam os poços fundos. Nas épocas de cheias, adultos e crianças se lançavam de suas alturas para mergulhar sem medo dos perigos lá debaixo, pois sempre existindo outras pedras miúdas e perigosas nas águas rasas. Muitas eram as vezes que as lavadeiras tinham de gritar para que não espanassem aguaceiro por cima dos panos já estendidos nas pedras.
As pedras das lavadeiras já haviam sido escolhidas de muitas outras gerações. As que agora utilizavam já vinham sendo usadas por suas mães, avôs, bisavós, numa linhagem de mesma luta debaixo do sol ou da chuva. Sim, pois se lavava até quando chovia, depois levando as roupas para serem colocadas nos varais estendidos nos quintais e arredores. Estendidas ficavam ao sabor do tempo, da ventania ou de quando o sol novamente despontasse.
As pedras já demarcadas pelos antepassados possuíam toda uma feição especial, além de uma simbologia que muitas das mais jovens sequer chegavam a compreender. Diziam os mais velhos que sobre aquelas pedras, entre a beirada e o leito do riacho, muitos já se ajoelharam rogando por chuva ante a secura do leito. E também que muita moça solteira abriu os braços em noite de lua grande para implorar casamento, prometendo até o impossível de realizar. E o mais instigante: no meio da noite, uma mulher descia da lua vestida de sol, tendo às mãos a flor e o espinho, e em cima da pedra permanecia mirando aqueles horizontes escurecidos, mas tão visíveis aos seus olhos doces. Logo disseram ser a visita, em pessoa de luz, da padroeira da luta e da esperança: Nossa Senhora Sertaneja.
Por isso mesmo que aquelas pedras iam muito além de simples locais onde as roupas eram lavadas, pois simbolizando outras presenças antigas e ainda tão acreditadas pelos mais novos. Daí que aquelas mulheres se ajoelhavam e a reverenciavam quando chegavam e quando partiam, e alguma ou outra não se esquecia de deixar um raminho de flor de catingueira por cima de sua tez molhada. E a flor, misteriosamente, sem que ninguém jamais pudesse avistar como acontecia, simplesmente iam sumindo nas entranhas da pedra. No seu lugar, formava-se uma pocinha de água a mais cheirosa do mundo. Um perfume santo na aridez sertaneja.
Hoje as lavadeiras ainda possuem caminho, mas não na quantidade de antigamente. As roupas sujas são lavadas em casa, na mais pura expressão da palavra. As máquinas de lavar, as pias e outras locais de lavagem, certamente afastaram os ofícios daquelas mulheres. Mas as pedras continuam por lá, com menos água pelos arredores, mas ainda continuam por lá. E os cantos também. Não é raro se ouvir, mesmo sem qualquer presença de lavadeira, cantigas de um tempo muito distante.


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Lá no meu sertão...


A Cavalhada em Poço Redondo, sertão sergipano - III






A prece (Poesia)


A prece


Minha fé
acende a vela
e ilumina
a face de Deus

meu olhar
flameja na luz
e sente
o sorriso de Deus

meu coração
fulgura alegre
porque ouve
a voz de Deus

e minha prece
apenas agradece
a presença
de Deus

na minha vida
no meu viver.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - noite, chuva...


*Rangel Alves da Costa


Agora é noite, já depois das sete. A lua sumiu para a chuva cair, mas apenas chuviscos. Por causa do tempo molhado, as ruas já estão nuas, silenciosas, mais escurecidas e mais sonolentas. Mas não no íntimo de quem faz despertar sentimentos com os chuviscos que caem. Tudo chega como uma poesia molhada, uma nostalgia sem face, um enternecimento que vai remoendo por dentro. Um instante de solidão, de noite sem voz, de bocas apenas trêmulas. Um instante de leve entristecimento, de distantes recordações, de reencontros. Dá uma saudade grande, dá uma vontade imensa de muito indecifrável ao coração. Querer apenas ter, pois o instante assim motiva e chama. Talvez porque esteja mais frio, um friozinho assim de abraço, de carícia, de cafuné e de qualquer palavra pertinho da face. Um beijo talvez, um abraço talvez. Mas somente o pensamento para desejar companhia quando não há nada além da solidão da chuva lá fora, dos chuviscos que respingam por dentro também.


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quinta-feira, 25 de agosto de 2016

PELA VIDA


*Rangel Alves da Costa


Não se trata de um esboço biográfico, mas tão somente algumas citações sobre o que fui e o que sou, bem como das esperanças que ainda me restam pela estrada. Apenas partes, logicamente, pois já aos 53 anos eu bem que poderia preencher muitos cadernos e diários com as primaveras e os outonos da existência. De tudo ainda recordo, como se estivesse na meninice ou adolescência, mas nada muito diferente dessas fases na vida em todo mundo. Somente a partir da mocidade, quando os livros e outras lições requerem aprendizagem, é que delimitamos a existência perante os demais. Daí que mais importa, no momento, conhecer alguns capítulos essenciais dessa minha história.
PRÓLOGO - Nasci em Poço Redondo, no sertão sergipano do São Francisco, numa região onde a seca e as estiagens são constantes, a pobreza econômica pontua nas povoações e por todo lugar, e onde ainda é possível encontrar um mundo singelo e sublime, mesmo que grande parte já tenha sido tomada pelos modismos e todas as mazelas do mundo contemporâneo. Nasci num mundo assim, onde ainda é possível compartilhar os instantes com pessoas humildes de beira de estrada, onde os caminhos são ladeados por mandacarus e xiquexiques, e onde, de vez em quando, ainda possível sentir o cheiro de café torrado no fogão de lenha e a galinha de capoeira fervilha na panela de barro. Mas tive de me afastar um pouco de lá aos onze anos, pois não havia outra saída senão dar continuidade aos estudos na capital. Então fiquei dividido, deixando lá o meu coração e levando comigo a força de luta e a esperança de boas realizações pela vida.
UMA PARTE DE MIM - Sou advogado inscrito na OAB/SE desde abril de 2003. Mas meus pequenos orgulhos agora foram acrescidos com o meu registro como jornalista e também como membro da Associação Sergipana de Imprensa. Brevemente irei concluir minha graduação em História, pois saí do curso na UFS - por que havia passado no vestibular pra Direito - faltando apenas um período para a conclusão. E depois tenciono fazer Filosofia. Mas bem antes disso tomarei posse, dia 20 de setembro, na Academia de Letras de Aracaju. Mas não para por aí não. Depois de tudo, ah depois de tudo: Poço Redondo, uma casinha no mato, um sol na janela e uma lua no meu olhar. E a vida, e viver, e viver, na terra onde nasci e que um dia beijará minha face.
OUTRA PARTE DE MIM - Enquanto escritor, eu já tenho cerca de vinte livros publicados e mais quatro ou cinco prontos para publicação. Já desde uns cinco anos que colaboro com textos para o Jornal do Dia, assinando artigos na página 03 aos domingos e também durante a semana. Diversos outros jornais reproduzem textos de minha autoria, bem como sites informativos e de literatura. O Nenotícias também publica assiduamente meus escritos. Para uma ideia melhor de como meus textos estão espalhados por aí, só no Recanto das Letras (site voltado à literatura) consta, até o dia de hoje, 24/08, 6965 textos publicados, com um total de167374 leituras. Repito: 6965 textos publicados de minha autoria, dentre artigos, crônicas, contos, poesias. Vivo, assim, a cada dia, em obediência à máxima latina: nulla dies sine linea. Ou seja, nenhum dia sem uma linha. Ou ainda, nenhum dia sem escrever ao menos uma linha.
PARTES DAS PARTES DE MIM - Solteiro, mesmo já tendo experimentado o amor de muitas mulheres “de todas idades e todas e todas as cores”, verdade é que hoje reconheço ser impossível conviver conjugalmente com alguém. Mulher alguma suportaria o meio jeito solitário de ser, o meu afastamento das badalações da cidade, a minha preferência pelo silêncio e pelo afastamento do mundo lá fora. Vivo praticamente entre quatro paredes, saindo apenas para o exercício profissional, e depois retornar ao que mais gosto de fazer: escrever. E esperar que a sexta-feira chegue para retornar a Poço Redondo, cuidar de um Memorial que lá mantenho, rever os amigos, caminhar pelos seus caminhos, viver o mundo sertanejo no que de melhor ainda lhe resta.
EPÍLOGO - Semeio, cultivo sempre. Não desejo experimentar a dor do menino Zezé quando lhe foi tirado seu pé de janela lima. Sofro demais por cada folha que cai. Quero tudo sempre como algo imorredouro, eterno. Mesmo a vida com seu início e fim.


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Lá no meu sertão...


A Cavalhada em Poço Redondo, sertão sergipano - III





Como um amor antigo (Poesia)


Como um amor antigo


Tão recente que estamos juntos
mas já estou com saudade velha
como se de um amor muito antigo

o teu retrato em preto e branco
teu bilhete amarelado de tempo
um baú cheio de boas recordações

e tenho vontade de fazer serenata
de deixar flores no umbral da janela
de levar á mão uma maçã do amor

que jamais se vá essa feição antiga
nesse amor que construímos agora
ou tenho medo de não saber mais amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - a ponte entre o agora e a eternidade


*Rangel Alves da Costa


É possível, sim, construir uma ponte entre o agora e a eternidade. É plenamente concebível estender o passo de agora até o infinito e além. Tudo é possível. Contudo, antes de fincar o primeiro grão de alicerce, a pessoa há de se perguntar a si mesma: o que sou, o que faço, o que pretendo ser enquanto memória quando não estiver mais aqui? E ainda: o que sou e o que faço são suficientemente dignos para que mais tarde eu seja recordado pelo que fiz? E não somente isso, pois: como estátua que se perpetua dignamente numa praça e o seu nome é sempre honrado, será que eu mereceria uma estátua na memória daqueles que comigo conviveram? Das respostas estará a sentença de apenas viver ou de ter estar vivendo de forma que mereça a eternidade. Verdade que é impossível viver eternamente, mas a memória digna se eterniza feito pedra sagrada. Desse modo, construir a ponte entre o agora e a eternidade significa, antes de tudo, viver o seu tempo de tal modo promissor que jamais seja esquecido pelos que ficam e pela memória dos tempos. E dizer, por fim: quem semeia a boa semente não será reconhecido apenas numa safra, mas pela raiz que bondosamente prospera de modo imorredouro.


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quarta-feira, 24 de agosto de 2016

ELEIÇÕES E O TEMPO DE TEMPESTADES


*Rangel Alves da Costa


O sertão pode estar seco como for, tudo esturricando mesmo, mas basta chegar o período eleitoral e tudo parece se transformar em tempestade. Não tempestade de chuva, de pingo d’água grosso caindo, mas de desafios, de ódios e inimizades.
Mas em muito as tempestades atmosféricas se assemelham aos temporais eleitorais. Principalmente no sertão, os dois fenômenos provocam inacreditáveis mudanças. Nas trovoadas, a secura se transformando em viço e vida. Nas tempestades eleitorais, a secura de ganhar fazendo chover sem ter nuvem.
Contudo, parece estar em grande parte do povo - seja eleitor ou não - a mudança maior em períodos assim de raios e trovões pelo voto. Como um mistério que tem o dom de repentinamente cegar, enlouquecer e transtornar, assim o comportamento de muitos que se tornam verdadeiramente ensandecidos.
Descendo das nuvens, as tempestuosas chuvas de trovoadas caem por cima da terra e vão levando tudo que encontrar pela frente. Bem assim acontece com o eleitor em defesa de seu candidato: vai desaguando seu fanatismo sem se importar que sua enxurrada acabe destruindo aquilo desde muito semeado.
E assim acontece com todo mundo que se envolve na atmosfera eleitoral tempestuosa. Não há lado pior ou melhor, não há candidato pior ou melhor, não há eleitor pior ou melhor, não há apoiador ou torcedor pior ou melhor, todos, indistintamente, são envolvidos pelo clima e logo começam a lançar seus raios e trovões.
Em tempos assim, de disputas cegas, acirradas, com todos os lados se achando vitoriosos, a transformação é tão grande que muitos sequer recordam o passado ou anteveem o futuro. É pelo instante, pela disputa, que perdem amizades antigas, que desconhecem a própria família, que se tornam em desgarrada paixão.
O momento é tudo. Nem o passado nem o futuro possui qualquer significação. Cospe na cara de quem tanto deu acolhida, se torna inimigo de quem sempre tratou como irmão, renega qualquer amizade e faz da linhagem familiar um mal que deve ser cortado por causa de uma eleição. Em todo lugar há gente assim, pelo sertão e o mundo inteiro.
Além dos raios e dos trovões prontos para lançar no conterrâneo opositor, muitos ainda acham pouco e enchem a língua de veneno e falsidade e as mãos de pedras e outras armas bem afiadas. E, não se contentando com as tempestades por eles mesmos criadas, passam a agir de maneira tal que mais parece numa guerra mortal onde o inimigo tem de sucumbir.
Assim mesmo. Com as tempestades também chegam os granizos que quebram o telhado de vidro de muita gente. Muitas vezes, quando um raio é propositalmente lançado contra o inimigo do instante, um raio ainda maior acaba caindo aos pés do agressor. Pois neste momento também a lei do retorno, e com o mal injusto pagando dobrado pela injustiça.
Ai de quem de repente se achar em meio a um fenômeno impiedoso como esse. Verdadeiramente ninguém se salva em meio a uma tempestade assim. E também um tempo propício para o surgimento de redemoinhos de honras, de furacões de desonras, de vendavais de violências e arrogâncias.
Nos sertões, a terra está seca e só mesmo a chuva boa caindo para o retorno da esperança. Mas tem gente que nem tem mais tempo de orar pela graça divina. Desde o amanhecer ao anoitecer, virando a madrugada, que só se preocupa em semear tempestades. Mas somente aquelas que ferem.
O pior de tudo é que tais tempestades nem sempre são em defesa do seu candidato a perfeito ou a vereador, mas simplesmente para semear a discórdia e atrair inimizades por onde passar. Não sabe, contudo, que no momento eleitoral ou mesmo muito depois, o raio sempre gosta de cair mais de vez sobre a mesma cabeça.


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Lá no meu sertão...


Cavalhada em Poço Redondo, sertão sergipano - II






Val morena (canção para uma sertaneja) (Poesia)


Val morena (canção para uma sertaneja)


Beijo na lua morena
assim como cor de açucena
beijo na face do sol
morena de sorriso arrebol
no xote, na toada e no mambo
dança a morena de jambo

Val de moreno sertão
vaga-lume que se faz em clarão
Val tão trigueira de sina
belo destino o dessa menina
Val que sorri e que canta
e o sertão inteiro logo se encanta

que sertão esse tão apaixonado
pela morena e seu rebolado
que sertão esse querendo beijar
a fruta mais doce de todo o pomar
que sertão esse querendo canção
de Val morena e do seu coração.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - o caminho e as pedras


*Rangel Alves da Costa


Tenho que caminhar, tenho de seguir, de ir em frente. E não há outro meio senão pelo caminho, pela estrada, pela vereda, por qualquer lugar onde caiba o passo. Temer os labirintos, os espinhos, as curvas e as pedras do caminho, jamais. E não servirá o caminho que ao seu largo não exista flores e espinhos, sombras e pedras. Estas, as pedras, são tão próprias dos caminhos como a luta para viver. Não há viver sem pedras no caminho. E sem medo e sem cansaço é que eu sigo. Sento na pedra e com ela converso. Não há interlocutora melhor que a pedra, mais calma e mais paciente. Sossegadamente ela me ouve e depois abre os seus braços para o meu descanso. Então durmo e sonho com os passos seguintes, com muito mais força e vivacidade. E ao me despedir para ir em frente, aceno à pedra e avisto seu olhar contente. E uma última palavra saída de sua boca: Não tema, não tema, vença as pedras pequenas e logo chegará à montanha. Se procuras Deus, aqui ele está, mas lá no alto alcançará seu olhar!


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