*Rangel Alves da
Costa
Eu tinha
cerca de dez anos quando começou a acontecer comigo uma experiência única na
vida. E a mesma provoca consequências até os dias de hoje. Meninote, eis que
uma senhora já idosa sempre me encontrava nos dias de feira e pedia para que eu
a ajudasse na compra de um quilinho disso e daquilo outro. Um tanto de farinha,
um pouco de açúcar, e assim por diante.
Fiz chegar
tais pedidos à minha mãe Dona Peta e ela me disse que dali em diante aquela
senhora poderia ir, todo dia de feira, buscar alguns alimentos na minha
moradia. E assim, naquele dia certo aquela velha batia à porta de casa e
perguntava por mim. Recebia a pequena feira, agradecia de derramar lágrimas, e
retornava com feição de máximo contentamento. Não morava na cidade, mas um
pouco afastada, sozinha numa casinha, pelos arredores de onde hoje se tem a
parte final do Conjunto Lídia.
Pois bem.
Aos onze anos tive de deixar Poço Redondo para estudar na capital. Prontamente
avisei àquela velha senhora que a minha partida em nada impediria que ela
continuasse recebendo seu auxílio semanal. Ela entristeceu, ficou silenciosa
por instantes, para depois me pedir, com a voz embargada: Quando eu morrer você
me dá o caixão? Não tive como responder. Toda a aflição agora estava em mim.
Mas ela sentiu a resposta no meu olhar.
Eu estava
em Aracaju quando recebi a notícia do falecimento daquela senhora. Em tempos de
estradas e transportes difíceis, não pude comparecer para o adeus à velha e
bondosa amiga. Contudo, já tendo conhecimento daquele inusitado pedido, minha
mãe logo providenciou para que o seu desejo fosse atendido. Adquiriu o caixão e
neste ela foi levada ao destino último na terra. Jamais me esquecerei desse
fato. Até hoje relembro aquela feição e aquelas palavras. Seu nome: Dona
Constância. A mesma Constância Nascimento, mãe de Zé de Julião.
Outrora de
família rica, ao lado do esposo possuidora de muitas terras e bens, já na
velhice se recolheu sozinha aos arredores da cidade. Morava numa casinha de
barro, talvez fazendo das relembranças seu contentamento na vida. Com família
grande, de muitos parentes, certamente que não faltava quem lhe acolhesse nas
necessidades, mas preferia viver no recolhimento e na clausura dos dias. E
também preferiu lançar palavras a um menino de dez anos, como se neste
estivesse um destino que os unisse. Até hoje reconheço essa força do destino,
essas linhas escritas pelos mistérios divinos.
Toda vez
que vou atravessando o Lídia e adentro na estradinha que leva ao Poço de Cima,
eis que ressurge um reencontro com esse passado tão marcante em minha vida. Por
ali a casinha dela, recordo bem. E fico imaginando o seu fechar a porta e ir
seguindo até a cidade, em dia de feira. E na rua o menino. O menino e um
destino.
Nada me
faz acreditar que o acaso consiga tecer tão significante acontecimento de vida.
Ela, Dona Constância, bem poderia deixar que qualquer um arranjasse um caixão
para sua última viagem, mas preferiu, ainda em vida, que um menino tivesse
aquela incumbência. E pelas mãos de minha mãe o destino se cumpriu, pois nas
mãos de minha mãe também o destino do filho, do meu destino.
Poucos
conhecem essa história. Muitos anos depois de Dona Constância minha mãe também
partiu. Hoje são poucas testemunhas desse fato comovente. Uns poucos
familiares, eu e Deus. E agora vocês. E para que acreditem que nossas vidas são
muito além do simples viver. São semeadas por tão grandiosos mistérios que
somente crendo nos poderes sagrados para se acreditar nos nossos outros
destinos.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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