SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 5 de agosto de 2016

NEGO D’ÁGUA


Rangel Alves da Costa*


Eis um segredo guardado a sete chaves, mas agora revelado para conhecimento de todos. Trata-se da história de um menino que passou a ter uma vida normal, mas cujo nascimento e meninice ainda continuavam envoltos em grande mistério. Por que o menino por tanto tempo viveu como um nego d’água?
Segundo os relatos ouvidos, principalmente dos velhos ribeirinhos do São Francisco, o menino realmente viveu alguns anos como aquele ser lendário que faz moradia nas águas do rio e à noite ressurge, quando pode ser avistado por alguns em cima das pedras. Mas sempre dá um grande mergulho, ou batim para os sertanejos, quando da aproximação de forasteiros ou pescadores.
Não há ribeirinho, pescador ou viajante, que já não tenha avistado um nego d’água ou ouvido falar sobre sua existência. Moreninho, miúdo, de compleição fina, porém astuto e ligeiro, gosta de ficar no alto das pedras grandes, ora às margens ou mesmo dentro do rio. Seu batim é conhecido, pois de repente se ouve um barulho para em seguida ser avistado o redemoinho na água.
Traquina, cheio de travessuras, também gosta de aparecer de repente nos barcos e em seguida mergulhar em gritaria. Por isso mesmo que causa tanto medo aos pescadores e viajantes noturnos das águas. Mergulha de um lado, mas no instante seguinte já reaparece do outro lado. E assim faz até o barqueiro se perder rio acima, ficar atabalhoado ou ancorar pelas margens desconhecidas.
Há muita gente que jura de pé junto já ter avistado um nego d’água. Mas a grande maioria dos ribeirinhos certamente já ouviu quando, ao redor das pedras grandes, de repente um barulho se faz ouvir e as águas se abrirem como se algo tivesse dado um grande mergulho. Sempre à noite, não dizem o nome por medo, mas sabem muito bem que é o tal neguinho nas suas aparições.
Mas voltando ao menino que viveu como nego d’água, sua história é deveras interessante, porém muito triste. Os nomes de seus genitores foram esquecidos. Serão chamados apenas de pais do menino, até mesmo porque não têm culpa da situação que os levou a fixar moradia dentro das águas, em cima de uma canoa, local aonde o filho veio ao mundo.
Era época de seca grande, de aflição se espalhando por todo lugar. Não havia trabalho, não havia como plantar para sobreviver, somente a piaba pescada no rio para alimentar a família. E esta, muito empobrecida, morava numa casinha de barro e cipó, mas tudo quase caindo. Num dia de ventania, com medo que a casa desabasse, a família saiu em correria. De lá avistaram a casinha sendo completamente destruída.
Com a esposa grávida, o moço ribeirinho nem pensou duas vezes quando olhou ao redor e avistou uma canoa ao vento. E foi daí em diante que o casal passou a morar dentro da embarcação, sempre mais afastada das margens. Se havia dono, e talvez reconhecendo a situação do casal, este nunca reclamou. Foi assim, por cima das águas, que a mulher deu a luz. Mas algo muito misterioso aconteceu na noite do nascimento.
Mergulhando afoito por ali, um nego d’água logo se preparou para assustar aqueles viventes do rio. Contudo, ouviu um choro de criança e mudou de ideia. De mansinho, foi se aproximando, levantou somente a cabeça e se deparou, bem na beirada da canoa, com os olhinhos cheios de lua do menino. Achou tão belo que teve vontade de ser aquela criança. Mas não podia, era só um nego d’água. Então chorou tanto que suas lágrimas respingaram sobre o menino. E daí em diante a criancinha fez nascer dentro de si um amor profundo e incondicional pelas águas e seus mistérios.
Os pais, porém, um dia resolveram que ali não era moradia de gente. O menino já estava com oito anos e eles na mesma situação, vivendo dentro de uma canoa. Assim que decidiram refazer a vida em terra firme, o menino se negou a acompanhá-los. Disse que o seu mundo era ali e dali não sairia. Os pais rogaram por todos os santos, mas não houve jeito. Conversaram entre si que o filho não suportaria viver sozinho e logo seguiria em busca dos seus. E saíram das águas.
O menino continuou e agora com a vida que queria ter. Vivia mergulhado no rio e entabulando conversas com seu amigo nas profundezas. Só reaparecia à noite, quando subia nas pedras e ficava mirando a lua grande. Bastava pressentir a aproximação de gente e logo se jogava nas águas. Mas um dia o seu amigo não apareceu, nem no dia seguinte, desaparecendo de vez. Triste, sem encontrar outros negos d’água por ali, resolveu partir. Quase não sabia caminhar quando pisou em terra firme.
Perguntou por seus pais, mas a única informação que obteve foi que haviam partido rumo à cidade. Então seguiu no encalço. E foi um comovente reencontro. Assim o agora rapazinho foi tentando se acostumar com a nova vida. Contudo, não esquecia um instante sequer do rio, das águas, das pedras, dos mergulhos, da amizade construída com o nego d’água. E ele mesmo um nego d’água no seu íntimo.
Mas a vida na cidade lhe atormentava. Tudo seco, sem água, meses e anos sem chuva, como se o seu corpo fosse secando, esturricando por dentro. A sua consumição interior era tanta que um dia correu desesperado em direção ao rio distante. Descalço, não sentiu ponta de pedra, espinho ou cansaço. Mergulhou tão contente que as águas se abriram em flor. E dentro do rio ficou. Só reaparece nas noites, quando namora a lua e depois mergulha para dormir e sonhar.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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