Rangel Alves da Costa*
Em muitos lugares os pássaros não cantam
mais. Mas principalmente no sertão os pássaros não cantam mais. Não há como
ouvir canto daquilo inexistente, não há mais como ouvir trinado passarinheiro
se as aves arribaram de vez, sumiram das galhagens e deixaram a mataria
sertaneja em doloroso silêncio. E também os ninhos, restando somente as gaiolas
com seus prisioneiros tristonhos. Triste sina viver chorando e o seu dono
pensar que está cantando.
Rolinha fogo-pagô, coleirinho, curió, sabiá,
sofrê, cabeça, azulão, pintassilgo, toda uma passarinhada voava de galho em
galho em cada palmo daquele chão. E também o caboclinho, o tiziu, o tico-tico, a
lavandeira, o sanhaço, numa festança de vida por cima das catingueiras,
baraúnas e quixabeiras. E ainda o lamento rouco do carcará, do gavião, do anum,
da coruja e do caburé. Cadê o piar da nambu e o palrar do periquito?
Passarinho pousava na mão, cantarolava em
plena janela, fazia ninho na cumeeira e pelas vagas das coberturas de palha ou
telha. O menino era amigo do passarinho, conversava com ele e prometia que jamais
iria puxar seu pescoço mesmo que a fome apertasse demais. Pelo seu voo e pela
escolha do local do ninho, logo o sertanejo sabia se a chuvarada se aproximava.
Eis que passarinho em alvoroçado voo ou quando faz moradia rente ao chão é
porque pingo grosso vai cair. Todo bom sertanejo sabe que é assim.
Os ouvidos atentos do sertanejo não
precisavam ir muito longe na mataria para sentir a presença da orquestra
passarinheira. Nas margens das estradas, nas malhadas das fazendas, nas
beiradas de riachos, tanques e açudes, onde houvesse proximidade com mato e
água, ali sobressaía a plangência da cantoria. Muitas vezes difícil de avistar
o cantor, eis que pequenino e escondido na copa da grande árvore, mas a certeza
de sua presença.
Mas também um tempo diferente, um passado até
recente onde as aves possuíam garantia de moradia e de pouso e repouso. Não
precisavam voar muito para encontrar uma galhagem segura para construir seu
ninho e procriar. Por todo lugar os arvoredos, ainda que nem sempre grandiosos
e imponentes, permitindo o aconchego da passarada. Os viveiros se formavam
entre os galhos, enquanto que os troncos e arredores acolhiam outras espécies
da fauna sertaneja.
O sertão era assim, tomado de uma vegetação
rica e adaptada às condições climáticas, sem ter que se curvar ressequida todas
as vezes que a seca do dia a dia chegasse querendo a tudo devorar. Em meio ao
xiquexique, facheiro, mandacaru, ao cipó e à macambira, as árvores amigas da
catingueira se espalhando de canto a outro. Juazeiros, angicos, cedros,
umburanas e bonomes dividiam espaço com plantas que trocavam folhas por
espinhos. Paisagem tão conhecida, e muitas vezes entristecida, retratava a
pujança e a fragilidade de uma terra.
Fragilidade sim, pois mesmo que o sertão seja
visto como a Fênix que sempre renasce das cinzas e o seu habitante, o
sertanejo, um forte, na expressão euclidiana, não há pedra fincada no tempo que
resista à brabeza da seca maior. E tudo se curva e se dobra, esmorece e
definha, se prostra esperando a gota d’água. Até mesmo o mandacaru, tido como
imortal diante das inclemências, mantém seus braços ossudos e espinhentos em
direção aos céus. E dizem que chora, dizem que implora.
Mesmo com as plantas ressequidas, com a nudez
marrom-acinzentada, e mais tarde embranquecida, enfeando toda a paisagem, e o
homem tudo fazendo pra manter água barrenta no fundo da moringa, ainda assim se
ouvia o canto da passarada ao amanhecer. Cantoria que ia diminuindo quando os
galhos já estavam nus e não restava nem lama no fundo do poço. Era o instante
de a asa branca arribar para outras distâncias e lá permanecer até a invernada
chegar. E toda a revoada passarinheira fazia o percurso de volta, enchendo de
canto bonito toda aquela vida sertaneja.
Mas hoje não há mais passarinho nem quando os
tanques estão cheios e as plantas rasteiras florescem verdejantes. E não há
mais passarinho porque a vegetação nativa foi completamente destruída e a
desertificação e os descampados tomaram o lugar das moradias e pontos de apoio
dos animais. O bioma caatinga perdeu suas crias imponentes, as grandes árvores
penderam de morte pela incúria do homem, onde havia pé de pau, tronco e
galhagem, agora parece um deserto espinhento.
Aconteceu exatamente aquilo que os mais
velhos já previam desde muito: onde se tira e não se põe um dia nada restará. Impossível
haver canto passarinheiro se quase não resta pé de pau nem para o ninho nem
cantoria. Aquele que levanta voo vai ter de pousar na terra esturricada. E
mesmo na chuva não há mais retorno. As tantas aves que um dia se foram não
conseguiriam mais avistar o lar de outrora.
Soa contraditório às políticas agrárias
atuais, mas quando os latifúndios se estendiam por muitas léguas e a vegetação
permanecia intocada em grandes extensões, havia lar para o bicho e sequer se
falava em extinção daquelas espécies próprias do sertão. Mas bastou que a
imensidão das terras sertanejas começasse a ser loteada e toda a vegetação
nativa foi sendo devastada. E na devastação o silêncio de morte.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com