SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 21 de junho de 2014

A MORTE DIANTE DE DEUS


Rangel Alves da Costa*


Tarde sombria, com feição da mais escurecida das noites. A família pranteando ao redor, uns ao lado da cama e outros e cabisbaixos e chorosos pelos cantos. Um silêncio entrecortado por soluços, por lágrimas que caíam dos olhos como rochedos desabando.
Ninguém abria a boca para uma só palavra. A verdade estava ali, terrível, assustadora, porém incontestável, eis que a morte esperava apenas o último suspiro para atingir seu triste apogeu. Não havia mais o que fazer, o que implorar, o que remediar. Apenas a morte certa.
O corpo magro estendido na cama, as forças já totalmente exauridas, os olhos semiabertos, o peito vagarosamente arfando, um resto ou último suspiro na boca imóvel. Face esbranquiçada, quase que ossuda, e tudo assim como uma ressequida folha de outono esperando somente a ventania.
E eis o último suspiro. Mas antes de tudo acabar, os olhos se abriram como espantados, como se tivessem avistado algo realmente extraordinário. Mas como um enfermo, no instante de seu suspiro final, consegue avistar algo assim tão inacreditável de causar surpresa?
Aqueles olhos sem luz, sem nada mais enxergar, sem qualquer reação para as coisas do mundo, assim reagiram diante de uma face iluminada que chegara naquele momento, naquele último instante de vida. Ali, diante dos olhos sem luz e no instante do último suspiro, estava a face de Deus.
“Foste um homem bom na existência terrena. Por isso mesmo estou aqui para ensinar o caminho de luz e antes que a escuridão se faça completamente e o anjo da maldade queira desnortear seu caminho”. Eis as palavras de Deus.
E a morte respondeu: “Sim, reconheço esta face de luz. Deus, meu Deus, verdadeiramente não me abandonaste. E sei que vieste me recolher da vida terrena e me levar nos teus braços para os verdes campos do Paraíso. Mas...”.
“Já estava esperando teu pedido de indulgência. Este mas pronunciado se expressa como uma pergunta: mas por que me levar agora, por que não me concede mais um tempo de vida, por que não afasta do meu corpo tantos sofrimentos e me faz novamente um ser vivente na normalidade da existência? Não tencionavas falar assim, invocar-me em teu favor?”. Assim ecoou a voz de Deus, apenas ouvida pela morte ali adiante.
A morte quis dizer que não, porém se arrependeu a tempo. Não teria coragem de confrontar as verdades daquelas palavras. Ora, era a voz suprema de Deus, sob cujos argumentos não há contestação. Mas ainda assim lançou-se em piedade, dizendo:
“Senhor meu Deus, verdade que do meu corpo físico nada mais resta e já tenho os pés na estrada e os braços lançados em Vossa direção, mas teu poder divino, com apenas um sopro, poderá me conceder a vida por um breve tempo. Sou tão jovem, tinha tantos planos, grandes objetivos na vida, e fui ceifado quase que impiedosamente da existência...”.
“Certamente tens estes merecimentos, meu bom homem. Mas pela minha voz já falou o Eclesiastes: Há um tempo para tudo, tempo de semear e tempo de colher, tempo de deitar e tempo de acordar, tempo de nascer e tempo de morrer. Ademais, até mesmo o sol, que vive e brilha todo o seu esplendor, também morre ao cair da tarde. A morte, meu filho, a morte é a estação na vida que o ser humano nunca deseja, mas que assim deve acontecer porque primaveras precisam acontecer perante outros que neste momento estão surgindo à luz”. Disse Deus, enquanto estendia as mãos na direção da morte.
“Só mais um momento, por favor, meu Senhor e Deus. Dai-me, ao menos, o poder de fazer com que estes que estão ao meu redor não sofram tanto com minha partida”. Disse a morte, num último apelo. Mas Deus, fechando-lhe os olhos e cessando qualquer sopro de existência, afirmou, como num eco que se dispersava pelo ar:
“Verás que já foi atendido, mas pela ação divina e não pelo homem. Todos serão consolados, ainda que seja difícil até para Deus afastar a dor em corações que sentirão saudades por ter verdadeiramente amado”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Um comentário:

Maria Luisa Adães disse...

Maravilhoso o que escreveu!

Bendito seja Deus e esse lindo final!

Que possamos ser sempre acompanhados por Ele!

Maria Luísa Adães "os7degraus"