SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 23 de abril de 2022

TRISTE BRASIL


*Rangel Alves da Costa

 

Em obra-prima da antropologia e intitulada “Tristes Trópicos”, o pesquisador belga Claude Levi-Strauss traça um panorama essencialmente pessimista do Brasil. A partir de suas pesquisas etnográficas desenvolvidas na década de 30, o professor Strauss chegou chegaria à conclusão que mesmo sendo um país de triunfante beleza e de natureza exuberante, o Brasil pecava de males que o colocaria como um belo tapete encobrindo lastimosas situações.

A degradação ambiental, o crescimento desordenado das cidades, o esfacelamento das relações sociais, as discrepâncias no acesso aos bens de sobrevivência, a situação deplorável da causa indígena. Com efeito, focando principalmente as sociedades indígenas por ele visitadas em expedições, Strauss chama atenção – já naquele período – para o desprezo que as culturas e as tradições indígenas estavam relegadas. Povos originários já sendo alcançados pela devastadora modernidade.

Passaram-se os anos, mas as reflexões continuam com plena validade. Contudo, a atual tristeza dos trópicos possui uma amplitude ainda maior. Um entristecimento que abarca a visão sobre os poderes da República, sobre governantes e políticos, sobre julgadores, sobre a mídia, sobre os costumes, sobre o pensamento da população. Nada, absolutamente nada no Brasil, parece ser respeitado. A inversão de valores passou a ser de tal monta que hoje se tem como normalidade o absurdo, o espantoso, o jamais imaginado para um dito Estado Democrático de Direito.

Será que estes trópicos se alegram com babaquices como Big Brother Brasil e outros formatos de enojar? E devem chorar ao saber das inúmeras pessoas apaixonadas por tais manipulações da realidade. Daí que nas pessoas também a corda sendo puxada para o imprestável, para o abismo. Não há que se esperar grandes coisas de pessoas que ao invés de procurar engradecer pelo conhecimento, eis que acabam preferindo o lamaçal dos degradantes modismos.

Hoje, por exemplo, todos os sites noticiosos estampavam textos e fotografias sobre o namoro da atriz Fernanda Souza com uma mulher, e repetindo-se com fatos novos sobre o mesmo nada. Será que não existiria nada mais sério e interessante nestes trópicos apunhalados pela babaquice? Ou será que a realidade brasileira se resume à traição da mulher com o morador de rua, ou ainda a exposição e os detalhamentos dos trisais existentes por aí? Mas é o que a mídia parece se preocupar. E tudo como se toda a população tivesse que engolir a qualquer custo.

Não há mais fome nestes tristes trópicos? As pobrezas, as carências e as mendicâncias já se generalizaram de tal forma que não merecem mais qualquer destaque na grande imprensa? Será que não vale mais a pena o conhecimento dos sofrimentos e das dores ainda tão presentes nos sertões? Com efeito, muita coisa não há mais que ficar batendo na tecla, principalmente pelo fato de que já fora constada a morte de muita coisa: a seriedade no povo, o seu poder de indignação, a incessante luta para mudar o caos em esperança.

Realmente, triste é constatar que o Brasil já desfaleceu em muitos aspectos. Um governo democraticamente eleito, mas que elege a tirania para se manter no poder, já diz bem ao ponto de fragilidade que estes tristes trópicos passou a ter, e medonhamente conviver no seu dia a dia de abusos e opressões. Um governante que prefere ferir a todos em nome do mando, que prefere rasgar as leis a respeitar as decisões, que prefere negar a aceitar as verdades, não poderia vingar noutro país senão nestes tristes trópicos.

Não pode ser tida como uma nação civilizada aquela onde parte de sua população tem preferência por manter no poder um ditador, um sanguinário, uma pessoa demoníaca e extremamente perigosa. Que povo é este que perdeu a consciência de realidade, que parece acometido de cegueira das boas virtudes, que aplaude e fanatiza aquele que mais adiante irá lhe apunhalar? Strauss ficaria envergonhado com tal realidade existente nestes tristes trópicos.

O país onde o dinheiro compra tudo, principalmente a honra e o caráter de políticos eleitos pelo povo, e somente para depois se tornarem algozes desse mesmo povo. E todos têm que aceitar calados, sem insurgência ou luta alguma, pois também sabem com quem estão lidando. E lidam com uma população que se preocupa mais com o Big Brother Brasil do mesmo com o seu futuro, que acha mais importante saber que roupa usou a famosa ou da namorada mulher de outra mulher.  

Tristes trópicos. Triste Brasil!

 

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Lá no meu Sertão...


Avistando a vida, o mundo, tudo...



O outro lado do rio (Poesia)


O outro lado do rio

 
Aqui é feio
é triste e angustiante
mas há um rio
e no outro lado rio
eu avisto a paz
eu vejo a esperança
e um porto seguro
 
mas não sei nadar
 
entristeço e choro
preciso partir
sair logo daqui
onde a solidão oprime
os dias são noites
as rosas são espinhos
e o medo a rondar
 
vou aprender a voar...
 

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – famosinhos de nada, “influencers” e “idioters”


*Rangel Alves da Costa

 

A mídia gosta de endeusar o imprestável. Também gosta de dar denominações aos modismos e até ao inexplicável. É por culpa da mídia, por exemplo, que as pessoas deixaram de ser masculinas ou femininas (respeitando-se as opções sexuais) para se transformarem em “pansexuais”, “intersexuais”, “binárias”, “não-binárias”, e por aí vai, e que igualmente refletem orientações sexuais. São tantos termos surgidos que de repente fica difícil saber quais os limites de uma coisa perante outra. Mas é no endeusamento de certas pessoas, até então no reles do comum social, que mais a mídia procura embabacar toda a sociedade. Isso mesmo, pois a mídia imagina um mundo como uma aldeia de babacas e, daí em diante, vai jogando em cada um o que não presta, o que tem de ser engolido forçadamente. Vai transformando babacas desconhecidos em famosos, vai transmudando imbecis em ilustres personalidades. Basta alguém utilizar as redes sociais e atrair seguidores, para de repente já ser tida como verdadeira celebridade. Assim acontece com os ditos “influencers” ou “blogueiros”. Na verdade, quem valoriza ou cegamente segue o influencer não tem capacidade de pensamento, de decisão, não tem conhecimento válido de nada. Ou, com acerto já disseram que o que cria um influencer é a quantidade de idioters. A quantidade de idiotas (e que são milhares) que acompanha essas porcarias. E também a mídia, que celebriza e endeusa o imprestável.

 

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quinta-feira, 21 de abril de 2022

CANGAÇO E CONHECIMENTO (PRA NÃO ACREDITAR NA MENTIRA NEM SER MAIS UM MENTIROSO)


*Rangel Alves da Costa

 

Todo santo dia surge mais uma baboseira sobre o cangaço. Só faltam dizer que encontraram Lampião na porta do INSS para fazer prova de vida. E não sei se não dizem. Um diz que Lampião morreu em Minas, já outro assevera que sua morte ocorreu na alagoana Pão de Açúcar.

Um diz que morreu envenenado, já outro diz que nem morreu. Pelo jeito, Angico vai se tornando última opção como local de morte. Sim: dizem que aquelas cabeças eram de manequins, pois tudo armação para esconder a fuga acertada de Lampião. O sangue era tinta vermelha e os corpos degolados eram de mentirinha.

Todo santo dia surge uma história assim, sem pé nem cabeça, coisa que nem faz boi dormir. O pior é que muitos acreditam. E pior ainda que muitos escrevem sobre tais mentiras como se verdades fossem. E vão espalhando as aleivosias e os embustes de forma vergonhosa, mas sem vergonha alguma.

Por que tudo isso ocorre? Ora, só pode ser por falta de conhecimento histórico, principalmente da história do Cangaço. E conhecimento que implica em leitura, em pesquisa, em estudo de campo, em ter tempo para ouvir os antigos relatos e testemunhos, para ter capacidade suficiente de avaliar criticamente o dito e o escrito, extraindo de tudo as possíveis verdades. Ou as muitas mentiras.

Conhecimento que implica ainda em buscar diversos escritos sobre a mesma situação, de modo a tornar os múltiplos relatos em possível norte de entendimento. Para conhecer o Cangaço não se deve buscar as aparências ou basear-se somente em teorias conspiratórias. O Cangaço é uma colcha de retalhos que deve ser avistada no todo, desde suas raízes à junção de cada pedaço, pois um entremeado de ações e consequências. E num contexto que envolve injustiça, opressão, vingança, coronelismo, política e traição, dentre outros aspectos.

O acontecido permanece na história, os testemunhos ainda são muitos, mas gente ainda há que prefere o achismo ou o duvidoso. Tudo bem, mas será preciso um mínimo de atenção aos fatos, aos contextos e suas relações. Não se pode dizer apenas que não foi assim. Mas por que não foi assim? Então há que se demonstrar, com seriedade e provas, como de modo diferente aconteceu.

A maioria dos livros sobre o cangaço peca pelas ideologias e defesas próprias dos autores, sem buscar a devida isenção que todo escrito histórico precisa ter, mas ainda assim muitos escritos existem que são confiáveis e que – senão donos da verdade – ao menos traçam confiáveis percursos.

Os testemunhos gravados e que vão surgindo, igualmente devem ser vistos com ponderação, senso crítico e agudeza de discernimento. Até mesmo aqueles que estavam em Angico contam a mesma história de forma diferente e, na maioria das vezes, trazendo para si um protagonismo que nunca existiu. Volantes, coiteiros, cangaceiros, tudo contando a seu modo o que aconteceu de uma forma única. E assim fica difícil de saber quem está dizendo a verdade.

E eis a chave do problema. Apenas um livro ou dois não vai dar o conhecimento suficiente a ninguém. Apenas um testemunho ou dois não vai trazer a verdade a ninguém. Por isso mesmo será sempre preciso o descontentamento. Não se contentar com a história dada é a raiz da questão.

E assim, mesmo que jamais chegue a verdades absolutas sobre a história do Cangaço, a pessoa ao menos não vai querer nem ler ou ouvir baboseiras, mentiras, coisas de quem parece não ter o que fazer.

 

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Lá no meu Sertão...


Lindo Sertão






Amor sem gramática (Poesia)


Amor sem gramática

Te amo
em errado português
pois amo-te é muito frio
para o amor
escrito de seu jeito
amado de seu jeito
vivido e sentido
assim desse jeito
 
te amo
e rasguem a gramática
para deixar em nudez
o amor.

 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – o perdão do presidente e o tiro no próprio pé


*Rangel Alves da Costa

  

Nesta quinta-feira 21/04, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que, através de decreto presidencial (já publicado), perdoou os crimes praticados pelo seu aliado Daniel Silveira, livrando-o das condenações impostas ontem pelo Supremo Tribunal Federal. Significa dizer que todas as ações criminosas de Silveira foram inocentadas pelo amigo presidente. Indaga-se: num Estado Democrático de Direito pode tal aberração acontecer? Certamente que o instituto da graça (ou do perdão) é de competência da presidência da república, mas cuja prerrogativa não deve nem pode ser utilizada para forçadamente inocentar aqueles que ferem os princípios constitucionais e atentam contra a ordem jurídica nacional. A pensar diferente, não existiria cabimento em ter legisladores nem julgadores, pois a legislação e a aplicação do direito ficariam a bel-prazer de um só homem, que com seu tino ditatorial, antidemocrático e usurpador das leis, poderia mandar soltar, inocentar, rasgar a sentença de quem desejasse. Assim, um filho ou parente do presidente jamais poderia ser preso, pois ato contínuo ele invocaria o perdão. Um criminoso, um terrorista, ou qualquer gente da pior espécie, poderia agir impunemente acaso amigo ou protegido do presidente. Em que mundo e país estamos? Da desordem, da imoralidade, da injustiça, do absurdo? Desta feita, contudo, o presidente foi além de sua sanha ditatorial, de se regozijar de ser dono de tudo a todo custo. Deu um tiro no pé. Sua atitude em proteger e inocentar um condenado de tamanha monta foi tão insensata que doravante toda a população vai saber do real perigo em se manter a tirania no poder. Seus eleitores, a não ser os apaixonados e fanatizados, passarão a ter a devida consciência do quanto essa doentia figura é capaz. Para proteger um criminoso, um condenado, Bolsonaro acabou condenando a si mesmo.

 

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terça-feira, 12 de abril de 2022

OS BICHOS DA SEMANA SANTA


*Rangel Alves da Costa

 

Na cidade inteira e região, todo mundo sabia que o padre Merinaldo virava bicho na Semana Santa. E também o fazendeiro Zezé Valentão e o rezador Totonho das Folhas. Dizem também que o afeminado Cicinho Rosado se transformava num terrível bicho. Mas este sempre negava, e dizia: “Não viro mais, pois já sou virado. E se eu virasse não seria bicho, mas uma bicha. E isso impossível de acontecer novamente!”.

Mas estes e outros nomes eram comentados por todo lugar. Assim que a Semana Santa se aproximava, então logo as conversas surgiam de canto a outro. E gente com medo de não acabar mais. Pessoas que depois da boca da noite se trancavam nos quartos e ainda assim tremelicando de medo.

Zelito Fofoqueiro logo dizia: “Tanto o padre Merinaldo como Zezé Valentão vira bicho, e não é invenção não, pois pura verdade. E assim também com o rezador Totonho das Folhas e Cicinho Rosado. E tem mais gente que se desanda em bicho feio e perigoso. Antes eu suspeitava, mas agora tenho certeza que Quiquinha de Edmundo também vira bicho, e do mesmo modo sua prima Cacilda do Pezão”.

E acrescentava o fofoqueiro: “Tenho como provar o que digo. Vejam se depois das dez da noite vocês encontram mais qualquer um desses em suas casas. Não encontra de jeito nenhum. E por quê? Ora, simplesmente porque tão pelos quintais, pelos tufos de mato, pelos monturos, pelas encruzilhadas, ao redor dos chiqueiros, que são os locais ideais para se transformarem em bicho, em lobisomens da Semana Santa”.

Destas feita, Zelito Fofoqueiro falava a verdade. Todos estes saíam de fininho de suas casas e, sem dizer aonde iam, de repente tomavam os caminhos escuros, no breu dos medos e medonhices, para se entufarem nos escondidos. No dia seguinte era possível avistar o mato aberto, o capim retorcido, a lama revirada, os locais onde eles se transformavam em horrendas e perigosas criaturas.

Como a transformação ocorria? Tudo dependia da sina triste de cada, do fadário penoso que cada um carregava. Dependendo do pecado cometido ou da paga pelo indevido, a pessoa apenas deitava por entre os tufos de mato e deixava que os mistérios da noite fizessem o restante da transformação. Outros sequer precisavam deitar, pois em determinado horário seus corpos eram como dilacerados por forças terríveis, fazendo surgir unhas afiadas e imensas, orelhas disformes, olhos avermelhados, pele peluda, pés retorcidos e garras em punhais.

Que cena mais terrível e assustadora. A pessoa jogada ao chão, estrebuchando, rodopiando, com tenebrosos grunhidos, com urros medonhos, para de repente levantar já com olhos de fogo, com boca gosmenta e dentes afiados, em busca de presa. Levantar a cabeça monstruosa em direção à lua, bater no peito com os braços disformes e uivar os mais terríveis dos uivos. E em seguida correr em direção aos quintais, às encruzilhadas, aos becos escuros, aos meios dos cemitérios, pelas ruas tomadas de escuridão.

Por que tão triste sina entre pessoas? A resposta certamente seria mais conveniente se chegasse da boca de Zelito Fofoqueiro, mas todos sabiam os motivos. Bater na mãe, praticar atos libidinosos com beatas desprotegidas, negar a existência dos anjos e santos, desvirginar a inocência, pular janela de mulher casada e se esconder debaixo da cama ante a chegada do marido, roubar calcinha de menina nova do varal.

E dizem que a sina triste de Cicinho Rosado, ou seu desatino em virar bicho em toda Semana Santa, foi ocasionada pelo seu costume de levar calcinhas dos varais para vestir, tendo as vermelhas e rendadas como preferidas. Mas o que até hoje ninguém conseguiu explicar era como uma calcinha vermelha cabia num lobisomem imenso, num ser monstruoso e horrendo, e que saía se rebolando e cantarolando: “Vou te pagar, vou te pagar!”.

  

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Sertanejo mundo...






A moça nua (Poesia)


A moça nua

 

A moça linda estava vestida
mas a moça tão bela estava nua
a mesma linda e bela moça
mas uma vestida e outra nua
perante o meu olhar
 
qualquer pessoa poderia dizer
que roupa bonita nesta bela moça
mas o apaixonado certamente diria
que corpo lindo é desta mulher
assim tão belo e todo em nudez
 
e eu era o apaixonado
por isso despi a mulher de toda roupa
e deixei o meu olhar avistar somente
o jardim de flores perfumadas
e borboletas enlaçadas em valsa de paixão.
 

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – silêncios e saudades


*Rangel Alves da Costa

  

Instantes no campo, nos afastados da cidade. Aí e ao redor, apenas um silêncio envelhecido. Não tanta mudez assim. A ventania sopra, a folhagem farfalha, um bicho de mato faz barulho entre os tufos catingueiros. Já não há mais cheiro de café torrado, batido em pilão e coado na velha arupemba. Não há cheiro do caldo grosso do café se derramando sobre o braseiro no fogo de chão. Também não há cheiro de cuscuz no fogo nem de tripa de porco chiando na estaladeira. Mas tudo bem. É um silêncio de paz, de sabedoria, de memória e reencontro. Não há carro parado com mala aberta e barulho insuportável de tudo o que não presta. Não há garrafa sendo quebrada nem ameaças de um ao outro. Não há olhares despertando estranhezas nem os inimigos invisíveis de cada esquina. Não passa o vergonhoso modismo nem as perdições da cidade. O carro da polícia não precisa ser chamado nem se ouve a arrogância do motor da moto. Ao contrário, pois por ali corre um preá, mais adiante o cachorro faz carreira atrás de qualquer coisa. E, por todo lado, uma natureza solene e majestosa. Um silêncio cuja voz interior é ouvida em palavras de agradecimentos.

 

Escritor


segunda-feira, 11 de abril de 2022

TEXTO IMPRÓPRIO PARA MENORES DE DEZOITO ANOS


*Rangel Alves da Costa

 

Noutros idos – ou mesmo num passado recente -, os pais e familiares definiam, pela linha de idade dos filhos, o que lhes era permitido ou não fazer. Pelo respeito e autoridade familiar, as observações eram geralmente acatadas.

Assim, a criança não podia exceder em atitudes que fossem inapropriadas à sua fase de vida. O adolescente deveria possuir limitações em suas condutas familiares e no convívio com os demais, principalmente perante outros adolescentes. O jovem igualmente tinha seus laços estreitados perante diversas práticas.

Mesmo já caminhando para a idade adulta – que geralmente era tida apenas dos dezoito anos acima -, aquele jovem era aconselhado a não pular demais a cerca, a ter cuidado com as relações, a ter máxima atenção com as amizades. Qualquer avanço ou falta de freio nas condutas e atitudes, tudo já motivava extrema preocupação.

Quando homem, ainda assim os pais tentavam a todo custo manter uma certa castidade, de modo a não implicar em engravidamento cedo demais de qualquer donzela, e assim prejudicar todo o seu futuro. Quando mulher, então as rédeas eram ainda mais encurtadas, vez que a juventude deveria ser mantida em véu de pureza e de virgindade.

Ademais, a prole, que fosse homem ou mulher, sempre estava à vista dos pais mais responsáveis e preocupados com o futuro dos seus. Sair com determinados amigos nem pensar. Estar com namoricos às escondidas, de jeito nenhum. Usar bebida e droga seria o fim do mundo. Saber a hora de sair e principalmente de voltar. Dar a benção aos pais e aos mais velhos e prestar contas de todos os feitos do dia.

Então o pai dizia: Quem anda com gente ruim só procura o que não presta. Certas amizades são como esgotos abertos esperando o primeiro passo. Uma amizade ruim é o caminho para o mal, para a violência, para tudo o que não presta. Não há pessoa de má fama que queira levar alguém para o bem. Sabe que vai afundar, mas sempre quer afundar o outro primeiro.

E o filho acatava, ou geralmente acatava. Sabia que sua família prestava atenção a tudo e jamais admitiria que transgredisse os seus pedidos e suas lições. Igualmente sabia que qualquer transgressão seria motivo de cobranças e de castigos. Até queria ter mais liberdade para liberar seus anseios e conhecer novas realidades, mas sabia que bastaria um passo em falso para perder o afeto familiar.

Então a mãe dizia: Sua idade ainda não é de namoro nem de paqueras às escondidas. Sua idade é de estudar e de buscar, desde agora, um caminho seguro na vida. Não há homem que não queira se aproveitar de sua idade, de sua inocência e de sua fragilidade. Querem usar e abusar e depois fazer de conta que foi apenas mais uma. Sua idade é de viver, de ser feliz, de ir criando consciência do que deseja de bom e do melhor para o seu mundo.

E a filha acatava, pois sabia que a mãe jamais lhe ensinaria o caminho errado. Contudo, aos poucos, com os progressos e a dita modernidade, as autoridades familiares foram se afrouxando, as relações entre pais e filhos foram se deteriorando, até chegar ao ponto de viverem como estranhos dentro do mesmo lar. O filho sai a hora que quer e volta a hora que quer, faz a amizade que quiser, e tudo como se estivesse perfeitamente bem, na maior normalidade do mundo.

Mas até o instante em que a corda arrebenta. E as consequências são terríveis e desastrosas. A perda da autoridade, do senso de proteção e do afeto familiar, acaba tornando os lares em verdadeiros redemoinhos de convívio. Por deixarem afrontar demais suas autoridades, muitos pais sequer possuem poder de exigir nada dos seus.

Hoje em dia, qualquer conselho, qualquer lição ou qualquer realidade demonstrada pelos fatos, já não cabe na maioria das relações familiares. Por mais que os pais digam, repitam e insistam onde está o bem e onde está o mal, os filhos simplesmente ignoram e fazem o que bem entenderem.

Quer dizer, o livro das boas condutas simplesmente se tornou impróprio para menores de dezoito anos.

  

Escritor


Lá no meu Sertão...


Pelos Sertões...



Retratos na parede (Poesia)


Retratos na parede


Pela janela aberta
as folhas secas deitam sobre a sala
enquanto os meus passos lentos
caminham pelos corredores
e os meus olhos vão avistando
os retratos nas molduras da parede
feições que parecem sorrir
olhares que parecem avistar
meu semblante cheio de saudades
 
entre silêncios e vozes mudas
entre canções e rezas antigas
entre mãos que se buscam
e afetos presentes e tão distantes
então diante um olhar no retrato
sinto minha voz em plena confissão:
“Um dia, minha mãe, tocarei
novamente em tua bela face”.
 

Rangel Alves da Costa



Palavra Solta – em preto e branco


*Rangel Alves da Costa


Enquanto o vento soprava e as folhagens secas iam esvoaçando, eu olhava o mundo, e todo o seu colorido se tornava em preto e branco. Eu não tinha ilusões. Os anos foram passando, a ventania foi aumentando, e o colorido das ilusões em outono se tornou. Não, não bastam as ilusões da grandeza, da imortal beleza, dos egoísmos e das vaidades. Tudo passa. Por mais que os olhos do mundo queiram sempre avistar as cores de sua conveniência, basta o silêncio e a reflexão para que as reais cores, os verdadeiros matizes, surjam no olhar interior. É dentro da gente que está a compreensão de tudo. E não adianta fingir. E sábio será aquele que souber avistar as reais cores da vida perante as ilusões dos brilhos e das fantasias. Eu tive sorte sim. Desde o passado que não me deixei levar por tais ilusões. Enquanto tudo brilhava, eu avistava os ocres outonais. Eu avistava por dentro o acinzentado do mundo. Eu via em preto e branco o que fingem ter outras cores. E hoje, quando olho ao redor e vejo o vento soprando, as folhagens esvoaçando, então digo a mim mesmo: Tudo passa... 

 
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domingo, 10 de abril de 2022

QUANDO O JARDIM FLORESCEU E EU NÃO VI


*Rangel Alves da Costa

 

Agora espantando, apenas ter a certeza que o jardim floresceu e eu não vi...

Meses e meses, dias e dias, horas e mais horas, um período inteiro esperando o jardim florescer, mas quando ele brotou suas flores, seus aromas, suas pétalas, seus perfumes e suas brilhosas cores, infelizmente eu não.

Uma terrível ânsia em ter diante do olhar as cores de uma estação de paz, de alegria, de felicidades. Toda manhã abrir a janela, colocar cadeira rente aos canteiros, fixar o olhar perante as plantas gestando, mas de repente não poder fruir das belezas tão esperadas.

Vou confessar uma coisa: a ânsia pela espera das flores no jardim, aos poucos foi sendo tomada por outros tipos de ânsias. A ânsia de me dissipar da mesmice dos dias e das horas, do tempo passando e nada acontecendo.

Fui entristecendo. A espera do florescimento do jardim foi se transformando apenas numa ilusão. Meu interior já havia absorvido os medos comuns dos humanos, as solidões dos exílios, as tristezas e angústias tão presentes nos solitários.

Certa manhã eu saí e não percebi a chuva que caía em profusão. Caminhando, gotejando de pingos d’água, mas era como se nada estivesse acontecendo ao redor. Talvez trovões e relâmpagos estivessem sobre minha cabeça, mas era como nada existir.

Outro dia, sentando num velho banco de madeira, pássaros pousaram em meu umbro, brincaram, cantarolaram, voejaram e retornaram, e eu me comportando apenas como uma estátua, como que petrificado, na mais pura insensibilidade. Eu não sou assim. Eu não era assim. Nunca fui assim. E por que de repente essa fuga perante as belezas da vida?

Certamente as folhas de relva de Walt Whitman não me despertariam sensibilidade alguma. A Menina Doente, de Edvard Munch, talvez fosse avistada como uma pintura qualquer. Talvez a música de Tchaikovsky, as valsas de Strauss, os sonetos e os noturnos de Chopin, nada disso me tiraria da apatia perante a beleza, o sensível e o singelo.

Mas eu nunca fui assim. E por que de repente essa fuga perante as belezas da vida? Verdade que no passado eu tive medo de não compreender a diferença de uma flor de plástica de uma flor colhida em jardim. Eu tive medo de sentir a ventania e imaginar sendo tocada por suave brisa. E por isso mesmo jamais que a sensibilidade se afastasse de mim.

Somente através da sensibilidade, da certeza que espírito e alma fazem suas escolhas certas, e da necessidade de ter e fruir a emoção, é que a pessoa pode dialogar com as belezas da vida como em passo de valsa. Eu jamais poderia perder o poder do encantamento, da surpresa boa, do sentimento mágico aflorado, da afetividade.

Por isso mesmo que me pus a esperar o jardim florescer. Uma expectativa maravilhosa, pois o brotar das pétalas, o brilhar das flores, a visão das abelhas e colibris rodeando os coloridos canteiros, tudo isso me seria essencial como força de vida, como sopro e ânimo para alimentar as forças boas interiores.

A espera foi se alongando demais. A sensação cansativa e entediante do nada acontecido, certamente foi tornando a expectativa em tanto faz. Duro dizer, mas assim insiste em acontecer em tudo e sobre tudo. Mas não por culpa nossa. Apenas pela perda dos bons sentimentos. De repente é como se não tivéssemos mais tempo de buscar a vivência com as coisas sagradas e belas da vida.

Difícil esperar o jardim florescer quando as realidades do mundo estão se tornando uma enxurrada de guerras, de mortes, de dores e sofrimentos. Difícil a sentimentalização do olhar quando as ruas estão cheias de violências, de falsidades, de atrocidades. Ninguém consegue pensar em flores perante o preço do arroz, da carne, do feijão, do gás, da conta da farmácia e da luz.

Mas o jardim floresceu. Triste a certeza que surge, mas quando o jardim floresceu e eu não vi. Hoje abri a janela, depois a porta e caminhei até os canteiros. Tarde demais. Tudo seco, acinzentado, com folhas mortas e galhos pendidos. Apenas um retrato fiel da vida e do mundo e do mundo de agora. 


Escritor

Lá no meu Sertão...


Alimentando a Fé...



O beijo (Poesia)


O beijo

 
O beijo
com asas
com sopro
com voo
com nuvem
e espaço
 
eu era menino
no primeiro beijo
e me fiz passarinho
assim que beijei
 
o lábio toquei
e tão leve fiquei
que subi e subi
e no beijo avoei
com asas na boca
na nuvem fiquei.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – felicidade não se compra


*Rangel Alves da Costa

 

Quem possui sentimento de humildade, dificilmente estará apegado a bens ou coisas materiais. O ter significa apenas uma necessidade, não um luxo ou meio de ostentação. Há pessoas, contudo, que forjam o ter como forma de demonstração de felicidade, de poder, de diferenciamento social. Mas aí as aparências servindo apenas para esconder os reais sentimentos. E assim por que não há sorriso bonito sendo forjado, não há feição tomada de contentamento se o corpo e a alma estão apreensivos e descontentes, não há verdadeiro viver se a vida foi construída ou está sendo mantida sobre castelos de areia. Somente é verdadeira a felicidade espontânea, nascida da conquista ou do reconhecimento de cada um de suas limitações. E para ser ato de normalidade, sem repentinos altos e baixos, o sentido da felicidade deve estar alicerçado na real valorização que cada um faz de si mesmo. Ora, quando mascarada ou mantida em fingimento, a felicidade acaba se tornando um fardo a ser carregado. É possível mascará-la sempre? Nunca. Sorrisos dourados não significam nada. Se o coração não está sorridente e confortado, de nada adianta um rosto aberto e mãos brilhando de diamantes. Carro de luxo não traz felicidade, anéis dourados não trazem felicidade, casarão de moradia não felicidade, ostentar que possui muito dinheiro e outras riquezas não traz felicidade. Será que pode ser feliz aquele pobre casal que vive embrenhado nos cafundós do sertão? Será que traz consigo a felicidade aquela mocinha de chinelo barato no pé e vestido de chita? Será que encontra motivos de felicidades aquele rapazinho que sabe que tem pouco e por isso não vai além do que tem? Sim. Ninguém vai ao supermercado comprar dois pacotes de felicidade, ninguém entra num banco para sacar um milhão de felicidades, ninguém entra numa loja chique para se vestir e revestir de felicidade. A felicidade não se compra. 

 
Escritor
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domingo, 27 de março de 2022

ATAQUE DOS CACHORROS


*Rangel Alves da Costa

 

Poderia ser Ataque dos Cães, mas melhor Ataque dos Cachorros mesmo. E assim por que a selvageria é a mesma, a voracidade é a mesma, a mordida por gestos e atitudes é a mesma.

Que mundo selvagem este. Não mais aquele tempo de conquistas do velho oeste americano, de saloons com seus bêbados violentos, de carruagens sendo atacadas por índios ferozes, de xerifes com estrela no peito, de duelos ao pôr do sol.

Mas um mundo de asfalto, de modernidade e as mesmas violências. Mas com uma violência pior ainda: a perda da paz interior pelos ataques dos cachorros ao redor. Todos humanos, porém.

Quando os cachorros humanos se põem ao ataque - e sempre atacam a todo instante – não há mais liberdade, não há mais integrante física ou mental, não há mais direito de escolha, não há mais cada um sendo dono de sua própria vida. Logo chegam os ataques e as mordidas.

Os carnívoros humanos agem quase sempre iguais aos animais, aos canídeos. Muitas vezes se mostram mansos, mas apenas um disfarce às suas pretensões. Com instinto de traição, e de repente já estão avançando com unhas e dentes sobre sua presa. Sempre rosnam, sempre uivam, mas não pela valentia, e sim para atemorizar.

E assim o homem vai se tornando presa do homem, do cachorro em sua mais deplorável concepção. Ora, quando se diz que determinado sujeito é um cachorro, quis dizer que não vale nada. Quando diz que é pior de cachorro, então coloco o outro na fundura da desonra.

Certamente que os cães não merecem tais comparativos com os humanos. O cachorro de rua, também conhecido como vira-lata, possui personalidade animal muito superior à humana. Mesmo sendo de rua, ataca quando é atacado, andeja para sobreviver, possui sua vida de esquina e esquina sem se importar nem ter inveja do cachorro da madame ou do cão de raça bem protegido atrás do muro.

O cachorro humano – voltando à caracterização desprezível que muitos indivíduos possuem – é certamente o pior animal do mundo. O canídeo não mente pretensiosamente, o carnívoro não trai por exacerbação de maldade, o cachorro não apunhala falsamente o outro da espécie pelas costas.

O pior é que ninguém, absolutamente ninguém, está devidamente protegido dos ataques dos cachorros humanos. Parece uma horda faminta por ferir, por denegrir, por macular, por desonrar, por atingir de qualquer modo a paz do outro. Com palavras, gestos e atitudes, que são mais perigosos que o veneno, então vão espalhando os seus ódios e suas desumanidades sobre todos.

Quando atacam, e sempre atacam, os cachorros humanos gostam de escolher aspectos sensíveis ao outro. Ora, o que uma pessoa tem a ver com as escolhas do outro, com a vida sexual do outro, com a opção sexual do outro, com a cor da pele do outro, com a condição socioeconômica do outro?

Mas sempre tem e sempre ataca. Não gosto de preto, não gosto de pobre, não gosto de viado nem de sapatão, não gosto de quem luta honestamente para sobreviver, não gosto que seja um centímetro maior do que eu. O outro tem que ser mais baixo, e em tudo. E tem que se ajoelhar perante às suas maldades. E há muito cachorro pensando e agindo assim.

E uma difícil luta contra os ataques dos cachorros. A vida íntima de cada um parece ser vigiada a todo instante. Quando não há nada a ser dito, então a mentira toma o lugar da verdade. E daí em diante as fofocas cumprem o seu papel de macular as inocências e as boas atitudes daqueles que estão de janelas e portas fechadas exatamente para se proteger do ataque dos cachorros.

Mas, como dito, não há jeito. Os cachorros sempre atacam.

  

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu Sertão...


Sertão...







Poesia (Poesia)


Poesia


Menina bonita
não sou poeta
não sei versejar
nem rimar bonito
verso e palavra
que digam em métricas
sonetos e redondilhas
o que verdadeiro sinto
e imensamente sinto
por você

e por não ser poeta
digo o que sei dizer
digo o que sei sentir
“te amo demais”
só isso.
 

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – cartas do tempo


*Rangel Alves da Costa

  

Numa velha casa, numa velha moradia nas distâncias da cidade, as cartas do tempo. Aí eu sentaria e passaria noites e dias. Buscaria um tamborete, um caderno de escola, uma caneta ou lápis, e então rabiscaria, na calma e paciência do mato, o que a frieza e feiura da cidade não me deixam escrever. Há um silêncio e um ocre de solidão, mas não tem nada disso não. O mundo-mato é assim mesmo, com vento soprando e folha voejando em meio ao pó e ao pingo de chuva tão esperado. Cada letra vai caindo como fruto maduro da velha árvore. “Porta e janelas fechadas, sem ninguém que soltasse uma voz, mas ainda assim havia um cheiro bom de café torrado e de toucinho chiando na frigideira...”. “O retrato na parede parecia me chamar. Um dia eu fui. A velha moldura me abraçou e eu senti um cheiro bom de lavanda. Eu conhecia aquele cheiro. E senti saudade e chorei...”. “A capela estava fechada, mas ouvi e senti o badalar do sino, as beatas em louvação, o xale encobrindo os olhos e rosários correndo sua fé pelas mãos magras. A igreja era um céu, cada ladainha era um jardim florido. Paraíso que não existe mais...”. Por isso que aí eu sentaria para escrever tudo isso. Mas só tenho o retrato diante de mim. E uma vontade danada de entrar na moldura e viver e ser o mundo que eu quero ser e viver. O mundo apenas sertão.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


domingo, 6 de março de 2022

DORES DA GUERRA


*Rangel Alves da Costa

 

As imagens são fortes demais. Mil textos e reportagens não traduzem uma imagem de uma família morta pelos russos em pleno corredor de fuga.

Velhos e velhas saindo dos escombros para depois caminhar levando somente uma trouxa de roupas ou de qualquer coisa. Cabeças abaixadas, talvez tanto faz que mais um ataque lhes tire de vez a vida. Ela já está sendo retirada.

Pais e mães carregando filhos sem qualquer direção. Filas e mais filas de pessoas sem qualquer direção. Ao longe e pelos arredores, somente a fumaça das ferozes investidas e os destroços do que historicamente existiu.

Roupas grossas tentam proteger do frio ou dos infortúnios de mais adiante. Dificilmente se avista alguém levando mala ou uma porção maior de suas posses. As pessoas apenas seguem e tudo vai ficando para trás. E com a terrível incerteza de algum dia voltarão.

Edifícios grandes atingindo por foguetes. Prédios históricos sendo derrubados pela insana artilharia. Escombros e restos por todos os lugares. Incêndios e chamas são avistados pelos horizontes. E os ataques avançado sobre vidas.

Mas quem está fazendo tudo isso? Quem está matando um país inteiro? Os comandantes e os poderosos não estão ali, não estão nas frentes de batalha. São jovens, quase meninos, que são forçados a investir e matar outros jovens e meninos, mas também pessoas de todas as idades.

Putin está em sua fortaleza de proteção nuclear. Seus principais comandantes apenas dão ordens sem sair da proteção. Mas pelas estadas e ruas da Ucrânia milhares de enviados levando a morte em seus tanques e armas. Muitos desses jovens sequer sabem os reais motivos de estarem ali ceifando tantas inocentes vidas.

A salvação é a fronteira. Todos fogem e todos correm para as fronteiras. Casas, bens, roupas, móveis, vidas longamente construídas, tudo vai ficando para trás. Tenta-se salvar apenas a vida, o sopro no espírito que ainda lhes resta.

Um filho vai carregando a mãe nas costas. Um pai vai tentar conter o choro, a fome e a sede do filho. Não há nem tempo de olhar para trás ou de retornar para pegar o pão e a garrafa de leite. Sua casa já está em chamas.

As ruas parecem vazias, com apenas os focos de incêndios e os escombros marcando presença. Mas assim porque as fotografias não falam, não gritam, não agonizam, não choram a dor do espanto e da morte. Por todo lugar, quantos gritos, quantos choros, quantos berros aflitos?

E quantos sons ensurdecedores de tiros e bombardeios, de aviões mortais que passam rasantes, dos mísseis cruzando os ares, do terror avassalador por todo lugar? E pelos canais televisivos o “filho da putin” mandando avançar mais, ordenando mais ataques e mais mortes.

Como dito, as imagens que chegam são suficientes para mostrar a dimensão desumana e terrificante dessa guerra forjada objetivando a usurpação de um povo e sua pátria. As imagens, contudo, não mostram os olhos das crianças e dos idosos ucranianos.

Mas vejo e sinto cada face e cada olhar. Não há palavra que expresse o que vejo e sinto, contudo. Não há mais olhar, apenas a reflexão do medo, a profundidade da dor e o negrume da desesperança.

E eu aqui sabendo que logo estarei em minha cama, que tenho comida quente e uma porta e janela para fechar. E eu aqui pensando que tenho pouco e que me falta muito. E eu aqui pensando que sou infeliz.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu Sertão...


Moldura de Tempo e de Vento



A ti (Poesia)


A ti


A ti a noite
e esta lua linda
o céu de estrelas
de graça infinda
 
a ti o sonho
que será sonhado
como deusa que vem
deitar a meu lado 

a ti o amanhecer
e as flores do jardim
perfume de amor
tua vida em mim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – “é preciso amar as pessoas...”


*Rangel Alves da Costa

 

Muitas vezes, apenas um cumprimento. Outras vezes, apenas uma palavra. E ainda outras vezes, apenas um olhar e um sorriso. Mas também, e principalmente, a aproximação e o diálogo. E sempre a retribuição naquela pessoa que sequer imaginaria ser recordada com qualquer gesto de atenção. Assim acontece. E se a gente imaginasse quanto bem nos faz o reconhecimento, o respeito, a amizade, a cordialidade e a valorização do próximo, certamente não caminharíamos tão sozinhos pelos passos da vaidade e do egoísmo. É preciso amar e valorizar as pessoas, é preciso reconhecer no outro as suas lições e os seus passos pela estrada. De vez em quando eu passo e avisto Dona Maria Dias em sua janela, ou mais lá dentro sentadinha no sofá. De vez em quando eu andejo por outros locais e avisto pessoas de mais idade ou já envelhecidas em suas portas, calçadas ou janelas. Será que perco tempo ou pedaço de mim é retirado se cumprimento, se sorrio e brinco, se mais me aproximo para um proseado? Pelo contrário. Se passo sozinho e divido minha palavra com o conterrâneo, com aquela pessoa em sua calçada ou janela, certamente que sozinho não mais seguirei. Comigo levarei a lição do que imaginava saber, mas ainda não sei.




sábado, 5 de março de 2022

FRASES BOBAS EM PENSAMENTOS LOUCOS


*Rangel Alves da Costa

 

Criaram o amor. Não ensinaram a amar. Quanto mais se deseja aprender a amar, mais se erra por avistar somente o espelho do prazer, e não a profundidade do verdadeiro querer.

A solidão é melhor, muito melhor que a multidão. O silêncio é melhor que o grito, a janela fechada é melhor que a ventania entrando. Perante o outro a paz não existe, pois o encontro interior e a autoestima sempre pedem o exílio interior.

O sexo, ou ato sexual em si, é impuro e asqueroso. Na vida social ou em seu cotidiano, a maioria das pessoas também é impura e asquerosa, mas sempre fingindo seriedade, caráter e até inocência. Como os seus pensamentos sempre agem de modo contrário, de forma pervertida e lasciva, o sexo se torna apenas na confirmação daquilo que verdadeiramente é.

Pobreza, carência, miséria, tudo com um nome só: a desvalia na vida. Mas não há desvalia maior que fazer de sua condição econômica uma chama à submissão, à humilhação, à escravização. Onde há retidão e caráter não há lugar para que o cabresto do voto lhe tire o desejo de mudança e da escolha do que achar melhor.

A puta de hoje é a mesma rampeira de ontem. Uma no shopping e outra no cabaré. A puta de luxo de hoje é a mesma prostituta do bordel da luz vermelha de ontem. A garota de programa de hoje é a mesma piranha de esquina escura de ontem. Michê, garoto de programa, ontem era o mesmo rapaz que fazia o mesmo negócio. Nada mudou, apenas progrediu e se desenvolveu em número assustador.

Não há como atender aos apelos do mundo moderno. O ser humano não possui a mesma propulsão que a máquina, não possui a força do motor, não se torna novamente novo com um simples reparo. Desse modo, não adianta ser moderno e avançado dentro de um corpo que não é tecnológico nem agindo por comandos informatizados. Ademais, até o ferro enferruja.

Não há decisão maior do que deixar de votar. Não votar em mais ninguém, e pronto. Liberta-se de uma vez do remorso de um voto errado, de uma escolha que mais adiante traga entristecimento. Lavar as mãos. Mesmo que os frutos das más escolhas não recaiam apenas nos que escolheram, ao menos haverá o conforto de dizer que sofre sem ter ajudado a causar tanto sofrimento.

A nudez é uma coisa engraçada. A vestimenta também. Inegavelmente que é muito mais bonito e atraente uma pessoa com roupa que lhe caia bem, que seja até vista como sensual. Na sensualidade do corpo vestido há todo um jogo de encanto, de fascinação e de imaginação. Logo se imagina a beleza daquele corpo em plena nudez. Mas na nudez avista-se apenas um corpo nu, e já sem aquele despertar da imaginação.

Poesia melosa, floreada demais, não é poesia. Poesia tecida na rima forçada não é poesia. Poesia cuidando dos mesmos elementos do coração, do mesmo amor impossível e da mesma paixão desenfreada não é poesia. Poesia é o belo com simplicidade. É o dizer de outra forma aquilo que o leitor se sensibiliza ao folhear.

Tem muita gente sofrendo neste momento. Na Ucrânia, na Síria, na África, bem ali. Tem gente sofrendo tanto neste momento que é até impossível imaginar o tamanho do sofrimento. A dor corporal, a dor da fome, a dor da indignação, a dor do abandono, a dor da desumanidade, a dor da perda da pátria e do lar, a dor de não ter pra onde ir e de sequer saber se terá um amanhã. Uma dor tamanha, uma dor tão forte, que é impossível imaginar a capacidade de o ser humano suportar.

Ontem choveu e hoje mais cedo também. Sem ter muito que fazer, então eu peguei um lenço e saí enxugando tudo, as ruas, os horizontes, até as nuvens. Quando mais eu enxugava mais eu me sentia encharcado. Eu quis enxugar o mundo e não percebi que estava chorando. Esqueci-me de enxugar as lágrimas de meus próprios temporais.

  
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu Sertão...


No Sertão, encontros e despedidas...



Ciranda de amor pra cantar (Poesia)


Ciranda de amor pra cantar

 
A noite é de lua
a leveza da brisa no ar
a ciranda no meio da rua
mão na mão na roda a girar
 
menina bela
é sua essa flor na minha mão
depois da ciranda
ela vai perfumar o seu coração
 
vai rodando a ciranda
e minha mão segurando a flor
sua mão na minha mão
e eu cirandando de amor
 
menina linda
é sua essa flor que carrego
depois da ciranda
a flor entre os lábios entrego.
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – saudade de minha terra


Rangel Alves da Costa*

 

Basta um fim de semana sem Poço Redondo, sem o meu sertão sergipano, e é como a velha canção sertaneja ficasse o tempo inteiro ecoando dentro de mim: “De que me adiante viver na cidade se a felicidade não me acompanhar... Lá pro meu sertão eu quero voltar...”. Quanta falta me faz os caminhos de chão, as estradas ladeadas por xiquexiques e mandacarus, as porteiras rangendo para as visitas e os proseados. Casas, casinhas, casebres, tudo diante do meu passo e do meu olhar. Moradias de varanda boa e também moradas de barro e cipó. Curral antigo cheirando a estrume, velho umbuzeiro na malhada adiante. A sonolência de um carro-de-bois já sem uso e um menino brincando com ponta de vaca. Sua fazenda, a riqueza de sua infância sertaneja! Uma porta se abre, da janela entreaberta vai surgindo um olhar. E então estendo a mão para o conterrâneo de sol e de lua. Andejar sem pressa, sentar em tamborete, guardar na memória as histórias contadas. Guardar no embornal um sertão inteiro e depois escrever sobre o mundo que há. E agora mesmo, distante de minha terra e neste amanhecer chuvoso de sábado na capital, a velha canção novamente chega para inundar os olhos e o coração: “De que me adiante viver na cidade se a felicidade não me acompanhar... Lá pro meu sertão eu quero voltar...”.



quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

PELA ESTRADA, O CEGO E O SURDO...


*Rangel Alves da Costa

 

Pela estrada, seguem o cego e o surdo...

O cego: Nada consigo enxergar e espero que me ajude nessa caminhada...

O surdo: Não entendi muito bem o que disse, pois sou meio surdo, mas o que quiser saber pode me perguntar em voz alta...

O cego: Quem dera ser assim como você, que tudo vê e pode dizer o que é feio e o que bonito...

O surdo: Esquisito? Sim, tá tudo esquisito mesmo, e tá assim porque desmataram tudo. Como você tá vendo, quase não restou um só pé de pau em pé...

O cego: Não vejo. Minha manhã é na cor da noite, meu dia é no negrume da noite, minha noite é a mais noite das noites...

O surdo: Açoites, isso mesmo. O homem merece uns açoites pra aprender a ser mais homem e ser mais responsável. O sol já desce com fornalha vermelha...

O cego: Por falar em cor vermelha, eu queria demais saber como é o vermelho da cor vermelha. Também a cor amarela do amarelo. Só conheço a cor da noite...

O surdo. Pernoite? Nem pensar. Nada de pernoite, amigo. É muito perigoso pernoitar aqui. Os olhos da maldade e da violência estão por todo lugar...

O cego: Por falar em olhos, não conheço nem os meus. Penso que olhos são feitos de cor vermelha, amarela, azul, de muitas cores. É por isso que as pessoas sabem das cores...

O surdo: Disse bem: dores. Dores do mundo, isso mesmo. Vivemos num mundo de dor, amigo. Em cada passo se carrega um laço...

O cego: Por falar em passo, se eu seguir sozinho, caminhando e caminho, aonde vou parar? Será que o mundo tem fim?

O surdo: Jasmim não, que é flor bonita. Carmim também não, mas a flor mais espinhenta que existir. Mas também faz, pois tem gente que não sabe separar o joio do trigo...

O cego: Infelizmente não sei separar nem a flor nem o espinho. Um dia me disseram que um jardim não tem nada de flor nem de borboleta, pois apenas um lugar aonde muitos vão apenas para sentir o que não conseguem em meio a outros homens.

O surdo: Lobisomens, sim. Existe muito lobisomem por aí, e não somente em noite de breu, mas no clarão do dia e pela cidade. A gente pensa que é gente, mas é tudo lobisomem...

O cego: Acaso eu encontre um lobisomem, pra mim não tô vendo nada. Aliás, não vejo nada mesmo, só por ouvir dizer. Dizem que é muito perigoso...

O surdo: Dengoso, dengoso, dengoso nada. Dengoso é político safado, que chega perto de você com a maior santidade, mas para depois lhe dar o bote. Tudo jararaca, tudo cascavel...

O cego: Por falar em cobra, certa feita dizem que eu pisei em uma. Minha sorte foi que não era o meu calcanhar que ela estava esperando. Também ouvi dizer que cobra é bicho tão ruim que chega a morrer seca se o calcanhar que ela estiver esperando não passar. Só se satisfaz com o calcanhar de quem está esperando...

O surdo: Amando? Que amando que nada. Ninguém ama mais ninguém, muito menos namorado, e muito menos casado. Tem cada mulher bonita que parece uma flor, mas sem amor verdadeiro, sem amor no coração, sem amor para oferecer a ninguém...

O cego: Por falar em flor, flor é bonita mesmo? Mas não adianta me dizer. Não sei o que é bonito nem feio...

O surdo: Veio, e veio parecendo forte. A nuvem tá toda carregada. Vem chuva de trovada por aí. Ou a gente apressa o passo ou a estrada vai virar mar...

O cego: Mar, disse mar? Coisa boa, então vou ficar. Sempre quis, mas nunca estive nem sei o que é o mar. Então vou esperar o mar, vou ficar...

  

Escritor