Rangel Alves da Costa*
Dia 31 de dezembro. À meia-noite os sinos
irromperão nas igrejas, os relógios perfilharão os ponteiros, os fogos bradarão
pelo ar, a data no calendário já poderá ser mudada. O limite entre anos, a
fronteira entre o velho e o novo.
Vivas, abraços, gritos, beijos, sorrisos,
champanhas espumando, cálices jorrando, vinho avermelhando lábios. Ainda as
felicitações, o instante de erguer as mãos para o alto e invocar a proteção
divina.
Nas praias, pelos rios e mares, passos nos beirais
das águas se encaminham para as oferendas. Flores, perfumes, incensos, ervas,
folhas, tudo espalhado pelas areias ou jogado nos leitos molhados. Presentes
para Iemanjá, dádivas para os deuses, bocas que tremulam e olhos que lacrimejam
de tanta fé.
É tudo como se o segundo atrás, do ano que se
findou, fosse algo que realmente devesse ser sepultado, esquecido, relegado ao
esquecimento. Daí em diante um tempo novo e esperanças de dias melhores. E por
isso mesmo tanta alegria, tanta comemoração.
Contudo, nem todas as pessoas possuem motivos
para comemorar, para brindar a contagem regressiva e anunciar festivamente o
novo tempo. Diferentemente das lágrimas derramadas pela ultrapassagem da
fronteira, rios cortantes se derramarão em faces angustiadas, verdadeiramente
desesperançadas.
À meia-noite há tristezas e angústias de
muitos matizes. Há sofrimentos, melancolias, aflições. Há terríveis sensações,
dolorosas certezas que chegam e invadem tudo, deixando à míngua pessoas já
fragilizadas. E quando se fala de dores terríveis diz-se das dores da alma e
dos sofrimentos físicos e mentais.
Que bom que as angústias fossem motivadas
pelas saudades, pelas indisposições de momento, por desacertos passageiros. Que
bom que as aflições levassem à solidão noturna na beira de praias, nos silenciosos
refúgios ou ambientes escolhidos para o momento. Mas não. As angústias são
muito maiores.
Triste dizer, doloroso demais falar sobre
isso, mas pessoas existem que sabem que este será o último final de ano.
Pessoas existem que sabem que não estarão mais aqui à meia-noite no ano
seguinte. Pessoas que não sabem quanto tempo mais viverão, mas que têm a
certeza que seus dias estão contados.
As doenças do corpo e da mente, as
enfermidades que vão se apossando de tudo e ressecando a vida como uma folha de
outono. Tudo foi feito, todos os tratamentos já foram tentados, mas nenhum
causou qualquer efeito. As raízes orgânicas já não vingam a seiva, as forças
vitais já exauriram a essência. Sintomas degenerativos, moléstias progressivas,
prenúncio de fim.
Como não chorar, como não sofrer, como não se
desesperar? Os fogos ribombando e brilhando pelo ar, os sons das comemorações,
as vozes, os gritos, o badalar dos sinos. E nos escuros, nos quartos fechados,
quase nos escondidos da vida, o sofrimento fazendo seu festim maior. Lágrimas
que molham as faces de muitas pessoas que na virada do ano passado também
brincaram e festejaram.
São as angústias da meia-noite, as terríveis
agonias da meia-noite. Não há mais prazer de experimentar nada, um pedaço de
assado ou um cálice de vinho. Apenas doses de remédios, de comprimidos e
injeções, numa embriaguez sem prazer nem riso. Apenas brindar o instante cruel
de tudo que se vai despedindo.
Os olhares sem brilho se perdem nas
distâncias das paredes, nos tetos, nas frestas ao encontro do raio de lua.
Lágrimas afluem sobre as faces e secam no canto da boca. Sem palavras, os
lábios trêmulos dizem a si mesmos: Adeus, adeus!
Poeta e cronista
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