SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 27 de dezembro de 2020

SEM MEDO


*Rangel Alves da Costa 


Perdoa-me, mundo, perdoa-me, mas o que venho aqui confessar será em teu nome, roubando de ti as palavras e os sentimentos, porém de modo a dizer verdades que jamais tiveste coragem de dizer, ainda que tudo isso tivesse vindo, nos passos do tempo, afligindo o teu coração e tuas entranhas. De início, confesso que te compreendo. Sim, eu compreendo o temor em expressar a verdade. Sei muito bem o quanto é perigoso e temerário apontar o dedo e dizer: Você errou, você está errado! Contudo, em teu nome confessarei, e começando por instintos meus - e que são de todos -, que me alegram por dentro e por fora ganham, por conveniência social, uma feição de asco e ojeriza. Sou mentiroso. Somos mentirosos. Desdenhamos de tudo que não nos traga proveito. O preconceito e a discriminação são tão nossos que deitam e acordam no nosso leito. “Você é pobre, é preto, é vagabundo”. “E por ser preto e pobre, você não passa de um marginal!”. Estarei mentindo quando, silenciosamente, dizemos isto por dentro? Estou mentindo sim, pois também digo isso por fora. Quando não falamos, nossos olhares tomam as palavras para negar o outro, para sentir medo e nojo, para se distanciar, para não querer nem chegar perto. Estarei mentindo quando eu vejo em cada olhar uma balança de julgamento, um punhal afiado pronto para sagrar, uma fogueira ardente para sobre ela derramar todo aquele que julgamos a nós inferiores e, portanto, desprezíveis?

Enquanto mundo, o mundo cala, aceita, consente. Contudo, é a omissão na verdade que faz com que o imprestável prospere e o mal tenha garantida semeadura. Mas tomei tuas palavras sem medo, e para expressar realidades que se ocultam nos cortinados sociais e nas máscaras da aceitação por conveniência. Creio que se tivesse coragem diria a verdade sobre a justiça, sobre os juízes, sobre o direito, sobre o aparato judicial. Que vergonha tudo isso! Sentenças compradas, sentenças vendidas, julgamentos infames, decisões baseadas em leis inexistentes, liminares protegendo o crime e os criminosos, togas enlameadas, órgãos julgadores putrefatos e endeusados bandidos. Ora, mas não é a justiça que condena o ladrão de galinha e deixa em liberdade o ladrão de milhões? Ora, não é a justiça que rasga as leis no instinto de proteger os protegidos e endinheirados? É esta mesma justiça que encarecera e depois esquece o pobre, do preto, do mero acusado, mas deixa solto o bandido do alto escalão. A justiça que é uma fábrica de marginais, de reclusos apinhados em lixões, mas que depois supõem uma ressocialização. Ademais, a lei só é rigidamente aplicada quando é para condenar o pobre, o preto, o já condenado pelo próprio mundo. Diferente ocorre no julgamento do poderoso. Então todo um vergonhoso aparato começa a surgir. Surge a hermenêutica, a analogia, a discricionariedade da lei, a jurisprudência forjada, o livre convencimento do julgador, etc., etc. E tudo para encontrar brechas para dizer que o crime não foi crime. E principalmente para dizer que o acusado até santo é.

Então, mundo, são coisas assim que não costumo engolir, ainda que eu saiba que são poucos os que pensam iguais a mim. Mas são poucos os que encaram a realidade com os olhos e a voz da verdade. A muitos, ao invés da verdade, o que lhes alimenta parece ser somente a omissão, a ideologia barata, a mentira, o fanatismo. Um povo que gosta de ser cuspido não é povo, mas uma escória. Uma gente que gosta de apanhar na cara não é gente, mas massa de manobra. Uma sociedade que elege o modismo, a safadeza e o imprestável, como modo de condução de suas vidas, não é sociedade, e sim um deplorável bordel. Diógenes, o filósofo que vivia procurando um honesto com uma lanterna, jamais encontraria seu objetivo. Por outro lado, demasiado fácil encontrar os antros de roubalheira, de corrupção, de desonestidade. Entanto isso, os humilhados continuam aplaudindo seus algozes.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Lindo Sertão...



Amores (Poesia)


Amores

 
Não
não me diga nada
todas as palavras
eu já ouvi
e senti
e senti
 
traga-me somente
um carinho
um beijo
um abraço
quero sentir
o que já senti.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - amor de mãe


*Rangel Alves da Costa



Em 1884, o pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944), retratou em pintura a óleo uma realidade triste e angustiante, mas também amorosa e de profunda ternura. Na pintura, intitulada “A Menina Doente” (ou “A Mãe à Cabeceira da Criança Doente”), está traduzido o sentimento da dor e da aflição. Sobre uma cadeira e com parte do corpo envolto em lençóis, uma menina doente (cabelos ruivos, de pele clara, ainda na flor da idade), de feições já tomadas pela enfermidade, tendo ao lado sua mãe. A menina, de cabeça levemente voltada para o lado, apenas sente as carícias e o afago das mãos de sua mãe. Esta, de cabeça baixa, certamente chora, mas aquele choro represado, mais por dentro do que pelo lacrimejar, ante a angústia da filha. Na pintura, Munch retratava a doença de sua irmã de apenas quinze anos e o sofrimento de sua mãe perante tão desesperadora situação, eis que a menina realmente não suportou a enfermidade e faleceu de tuberculose. Ademais, uma pintura que fielmente traduz o amor de uma mãe. A pintura comove pela beleza e pela situação de angústia e de dor tão bem expressada. Mas uma realidade constante perante o amor de mãe, perante a devoção de mãe, perante a abnegação de uma mãe e os desalentados instantes que envolvem os seus. Mãe que sofre o mesmo sofrimento do filho, mãe que chora a mesma dor do filho, mãe que seria de se doar à morte para salvar a vida de um filho. Não apenas em leitos de enfermidades, mas em todas as situações e instantes de vida. O amor de mãe é tamanho e seu coração tão protetor, que somente sua alma para traduzir seu real sentimento. Assim perante uma doença ou mesmo outra situação difícil passada pelo filho, mas que se imagine o tamanho do sofrimento perante a morte de sua cria desde o mais profundo do ventre. Um amor tão verdadeiro que se torna impossível ao ser humano discernir sua dimensão. E somente Deus para compreender tal amor e igualmente amá-la em plenitude.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


domingo, 20 de dezembro de 2020

SOBRE A FELICIDADE


*Rangel Alves da Costa



Plena de acerto a frase de Mário Glaab: Para muitas pessoas a felicidade é semelhante a uma bola: querem-na de todo jeito e, quando a possuem, dão-lhe um chute. Não menos verdadeira a sabedoria antiga: Ou se cultiva a felicidade ou ela não passará de sensação de ter alimentado o espírito por algum instante. Ou se preserva a felicidade ou ela faltará ao espírito todas as vezes que a adversidade ameace chegar. Ou se procura ser feliz plenamente ou o ânimo da alma não passará de grão infértil na terra árida.

Mas a felicidade é tão difícil de ser alcançada como de ser conceituada, pois surgida no íntimo e exteriorizada como ânimo de bem-aventurança. De qualquer modo, ela pressupõe o ânimo de feliz.  E tal estado comumente se caracteriza pelo contentamento, pela alegria, pela sensação de bem estar físico e mental. Diz-se, pois, que a pessoa está envolta de felicidade se apresenta tais aspectos. Mas não somente assim.

A verdadeira felicidade não se contenta apenas com um estado de ânimo ou uma sensação, pois exige que a percepção de estar bem, realizado, satisfeito, seja prolongada, de modo a provocar reflexos positivos nas atitudes. Assim, não é qualquer momento de satisfação ou instante de alegria que possa caracterizar como estado de felicidade. Daí que a tão conhecida felicidade passageira muitas vezes apenas ilude os sentimentos. E pode provocar danosas consequências.

Há até uma linha filosófica acerca da felicidade como uma das faces do ser no mundo. A outra face é a infelicidade. Como um raciocínio retirado do Eclesiastes, uma tem de acontecer para se dissipar e a outra surgir. Desse modo, a mera sensação de felicidade já traz consigo a certeza da infelicidade. Depois do sorriso a tristeza, depois do canto o silêncio, e assim num pêndulo que ora se mostra de um lado e no estando seguinte já pende de modo contrário.

Muita gente teme – e com razão – tal tipo de felicidade. Não são raras as pessoas que preferem permanecer num estado apenas de normalidade, sem se mostrar muito felizes nem muito tristes. É exatamente o medo da consequência do júbilo que as tornam reticentes, temerosas das demasiadas alegrias. Tudo fazem para fugir da confirmação do ditado popular: não há um bem que não traga um mal, não há uma alegria que não traga uma tristeza, não há nada que aconteça de uma forma para que mais tarde não aconteça diferente.

Com efeito, depois do dia vem a noite, depois da chuva vem o sol, e assim em diante, e com tudo na vida. Mas não é porque não se pode fugir do inevitável que a pessoa deve abdicar da busca da felicidade. E da felicidade maior que possa existir. Creio que somente a mais ampla felicidade, mesmo forçada a se tornar duradoura, possui o condão de submeter a infelicidade. Ou seja, somente o esforço pessoal para que a felicidade se mantenha acesa, vívida, radiante, conseguirá domar ou ir ofuscando a chegada de tempos mais entristecidos.

Ora, o ser humano não nasceu para a tristeza, para a lágrima, para a dor, para o sofrimento, ainda que de nada disso possa fugir. Ao inverso, é própria do ser humano a propensão ao prazer, à alegria, à felicidade. Tanto assim que faz de sua vida uma constante luta para sobreviver bem, para alcançar motivos de contentamento, para sentir-se realizado. E agindo assim não estará fazendo outra coisa senão em busca da felicidade, pois esta não é apenas o sorriso ou a alegria, o contentamento ou a alacridade espiritual, mas também a sensação de realização na vida.

Para muitos, a busca pela felicidade é tamanha, tão intensa e constante, que nem tem tempo de absorver as pequenas infelicidades que possam surgir. Até se espelha nos momentos difíceis para usufruir ao máximo seus instantes felizes. Quanto mais pensa e age assim vai transformando seu espírito em algo tão elevado que não será pouca precaução que o afastará do sorriso, da paz, da felicidade. Não se entrega, não se deixa abalar, faz do infortúnio apenas um ponto de partida, uma forma de recomeçar.

E seguindo vai. E certamente que o mundo, a vida e as pessoas sabem reconhecer quem vive desapartado do negativismo. Não há nada que lhe tire o ânimo, não há situação que não seja enfrentada com destemor, não há dificuldade que não seja enfrentada para logo ser vencida. Mas nada disso acontece porque o ser seja forte ou destemido, mas simplesmente porque não permite que nada de ruim se assente onde semeia seu contínuo grão de felicidade.

Semeia a felicidade grão a grão para que a colheita não seja grandiosa demais. Sabe que o comedimento, a paciência e a oportunidade, são os grandes segredos para o alcance dos grandes objetivos na vida. E por isso mesmo vai colhendo aos poucos suas razões de viver. O cuidado com a colheita e com o uso que dá ao que tem, de modo a não faltar quando mais precisar, permite-lhe viver com o coração sossegado e com a face pronta para sorrir quando bem desejar. Eis que é feliz, sabe cultivar e cativar a felicidade.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Com o povo do rio...



Naquele tempo de amar (Poesia)


Naquele tempo de amar


Já era tempo de amar
imaginava aquele menino
 
encantou-se com o jardim florido
enamorou-se da menina que passou
 
ele sabia que era tempo de amar
sentia no coração esse despertar
 
riscou poemas de amor na areia
desenhou corações nas nuvens
 
queria beijar e queria abraçar
pois já era tempo de amar
 
até que viu um mar nos olhos
daquela menina que passou
 
então se fez feliz navegante
e pelas águas do amor navegou.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - o amor


*Rangel Alves da Costa


Lembro bem. Piscava o olho querendo namorar. Beijava na mão e soprava querendo dizer do amor sentido. Escrevia bilhetinho revelando segredos do coração. Deixava um versinho dentro do caderno e depois corria com vergonha da reação da paixão. Abria um coração num troco de árvore e deixava, presos por uma flecha, os dois nomes enamorados. Deixava uma flor no cantinho da janela e depois se escondia atrás de um tufo de mato. Roubava flor no jardim ou fruta madura no quintal e fazia chegar a quem tanto gostava. Num banco de jardim, sentar cada um na pontinha, distante um do outro, e aos poucos ir se achegando na esperança de sentir a pele tocando na pele, na esperança maior de um beijo. Primeiro ir tentando pegar na mão, devagarzinho, como quem não quer nada. Ouvir a voz dizer baixinho, tomada de acanhamento: “tô com vergonha!”. E ter a coragem maior do mundo para colocar olhos nos olhos, estender a mão, segurar na face e querer perguntar: “posso beijar?”. Mas não perguntava. A vergonha estremecia o corpo, fazia sumir a voz, deixava sem saber o que fazer. Mas de repente, o lábio vai procurando o outro lábio. E se o outro lábio aceita a quentura do lábio que se aproxima, e corresponde indo ao encontro, então os olhos se fecham. E não há mais terra, não há mais chão, nem banco de praça. Tudo é somente voo, nuvem, encantamento. Até que, depois de planar pelos incompreensíveis espaços, os olhos reabrem e a boca trêmula diz: Te amo!

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


domingo, 13 de dezembro de 2020

JAGUNÇOS E TOCAIAS


*Rangel Alves da Costa



Tocaia, emboscada, armadilha, cilada, espreita, é tudo a mesma coisa: esconderijo de onde se espera a passagem do escolhido para lhe dar cabo da vida. Por outras palavras, o local onde o jagunço, o assassino ou matador, se mantém escondido, com arma apontada e gatilho pronto para ser apertado, esperando somente o surgimento daquele que será vitimado pelo ódio, pela desforra, pela desfeita, pela vindita de sangue.

Ainda acontece, mas o ofício da tocaiagem era grandemente característico no passado coronelista, num tempo de senhores de instintos abomináveis, de crueldade desenfreada, onde qualquer ameaça ao seu poder era resolvida na bala. Mas também nas relações odiosas entre pessoas comuns, quando as rixas e as discórdias provocavam somatórios de mortes por emboscada. Noutras situações de vinditas também o recurso da espera assassina, assim nas lides cangaceiras e nas revoltas sangrentas sertões adentro.

Morte de tocaia é morte à traição, perpetrada sem que a vítima sequer imagine que o inimigo o espera numa curva de estrada, por detrás de um pé de pau, dentro de um tufo de mato, em qualquer lugar onde possa se manter escondido e a arma mirada em linha certeira. Impossível de se defender quando apenas a boca faminta da arma vai no encalço esperando o instante certo para cuspir fogo.

Como aconteceu tantas vezes, o sujeito vai caminhando armado até os dentes ou mesmo galopando em cavalo ligeiro com verdadeiro arsenal, mas não sabe que mais adiante alguém aguarda sua passagem de arma já preparada. Não consegue avistar nada porque o jagunço está encoberto pelas folhagens, pelas árvores ou outra mureta nativa. Mesmo a dois metros não consegue avistar nada. Mas a arma já mirando sua chegada e ávida para ser disparada. E num instante basta apertar o gatilho, e pronto. O sujeito cai estrebuchando no chão.

Tal o modus operandi no ofício da jagunçagem e da tocaiagem, mas que não se imagine ser tarefa fácil de matador. A tocaia exige profissionalismo, preparo, segurança, firmeza e frieza. E assim porque exige não só a pontaria certeira, mas também preparação e conhecimento de campo. O jagunço matador precisa escolher o local da ação, necessita conhecer a vegetação da região, bem como saber a hora aproximada que o futuro defunto passará diante de sua mira.

Escolhido o local, resta a parte mais difícil e demorada: a espera. O jagunço nunca chega pela estrada comum ou pela vereda aberta, mas por dentro da mataria, de modo silencioso e lento. Ao chegar, o passo seguinte é procurar um lugar onde fique escondido e ao mesmo tempo possa avistar tudo o que acontece mais adiante. E também a colocação do cano da arma de tal modo que, estando com a boca livre, ainda assim não possa ser avistada.

Contudo, a espera em si é o mais angustiante, fazendo mesmo que muitos jagunços tenham desistido antes do evento fatal. Em primeiro lugar, porque só suporta esperar sem refletir sobre as consequências de sua ação aquele matador que já é movido pela cegueira da ação, pela cruel insanidade ou pela contumaz covardia. Em segundo lugar, porque qualquer sentimento surgido na espera pode provocar desistência. Daí que o jagunço não pensa em outra coisa senão preparar comida de urubu e retornar para dar notícia ao mandante, seu patrão.

Foi porque o marcado para morrer demorou a passar e o matador começou a pensar num monte de coisas, principalmente na sua sina de viver para a morte do outro, que se deu a última tocaia, ao menos para este mando. Enquanto esperava, sempre em posição de disparo, o jagunço olhou por cima do cano e apo final era como se avistasse um espelho adiante: ali um defunto sendo velado, uma família chorando, pessoas entristecidas, crianças sem pai e vidas ao desalento.

Logo cuidou de mudar de pensamento, mas ainda no espelho logo lhe surgiu sua própria face, suas mãos sujas de sangue, sua cama de capim, seu rosto entristecido, sua mão recebendo vintém, o dente de ouro do coronel brilhando na boca maldita, uma cova rasa e sem cruz no meio do mato. Aquela era sua vida, aquele seria o seu destino. Em seguida avistou, ao longe, cavalo e cavaleiro se aproximando.

De arma apontada, na mira certa, mas não teve coragem de apertar o gatilho. Desistiu. Ali a última tocaia, sem tiro, sem sangue, sem morte. E um jagunço seguindo por uma estrada distante do casarão do coronel.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Mundo de cipó e barro, Mundo meu...




Tempo (Poesia)


Tempo


Não choro as lágrimas
de não ter feito
o que poderia fazer
 
não tomei mais sorvetes
nem corri nu pelas ruas
em dias de chuvaradas
não respondi o bilhetinho
deixado dentro do caderno
 
não sinto remorsos
pelos erros cometidos
como pedisse perdão ao tempo
 
beijei calcinha em varal
roubei fruta doce em quintal
dormi sem lavar os pés
menti por ciúme e amor
e tudo novamente faria
 
só não suporto avistar
o calendário na parede
e as folhas que passam e passam.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - quando o fanatismo aplaude a morte e a tirania cospe nos túmulos


*Rangel Alves da Costa


Leio hoje nos sites informativos: “Avaliação de Bolsonaro se mantém no melhor nível, mostra o Datafolha”. E diz mais: “Mesmo com agravamento da pandemia, aprovação do presidente fica no patamar registrado em agosto, com 37% de ótimo ou bom”. É duro de acreditar, mas é preciso repetir: 37% de ótimo ou bom. Quer dizer, 37% dos brasileiros pesquisados dizendo que o genocida é ótimo ou bom. 37% dizendo que está certo matar, tripudiar, brincar com vidas, tornar mortes em piadas, fazer de um estado imensamente grave de pandemia uma mera brincadeira. 37% que aplaude e se ajoelha perante a vergonhosa tirania da “gripezinha”. 37% que vai delírio quando o restante da população que se preocupa com suas vidas e a dos demais, é chamada de “maricas”. Difícil de acreditar que pudéssemos chegar a tamanha cegueira moral, a tamanha incompreensão da realidade. 37% que se mantém aplaudindo um criminoso enquanto as vítimas continuamente são sepultadas. Causa asco, nojo, vergonha, repulsa, ter de compartilhar a existência num país onde 37% de entrevistados dizem os excrementos do poder são perfumados.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

CANGAÇO


*Rangel Alves da Costa


A longevidade e a permanência do Cangaço enquanto fenômeno histórico, de interesse e de pesquisa, são fatos incontestáveis. E assim permanecerá, pois jamais se chegará a consenso sobre sua gestação e derrocada.

As novas discussões, suposições e invencionices, que surgem a cada dia, servem apenas para demonstrar o quanto impossível é contextualizá-lo de forma progressiva, através das ocorrências. Surgem tantos absurdos, mentiras e conversas sem pé nem cabeça, que o despreparado no tema logo entrará num turbilhão de descrenças.

Mas algumas verdades podem ser ditas sobre o Cangaço. Alguns contextos podem ser visualizados no Cangaço que jamais poderão ser negados, vez que extraídos não dos acontecimentos em si, mas do todo que serviu de base à sua existência. Então vejamos.

O Cangaço não é página histórica bonita nem feia, é testemunho do passado que precisa ser estudado e compreendido. O Cangaço não está numa balança para saber se pende mais para o lado do heroísmo ou do mero banditismo, pois seu peso está no contexto histórico, e não na conveniência da opinião de cada um.

O Cangaço não é filme imaginário, de cenas mirabolantes, encenações grandiosas nem de cenários ilusórios, mas uma realidade tão viva, apavorante e perigosa, que cada personagem de sua história temia o que poderia acontecer no passo seguinte. O Cangaço existiu dentro de uma teia de covardias, de mentiras e traições, mas principalmente num contexto de valentes, destemidos e desassombrados.

O Cangaço não existiu somente no mato, em meio aos catingueirais, coitos e veredas espinhentas, mas também nos palácios, nos centros de poder, nos casarões coronelistas, pois chamou para si a atenção de todos e, de certa forma, alargou o conceito de coiteiros poderosos.

O Cangaço teve em muitos sua força de existência. Não apenas o cangaceiro sustentou no ombro o peso da vida tão dura e de sacrifícios. O sertanejo comum, aquele mateiro ou lavrador, logo denominado coiteiro, também suportou dores e aflições em nome daqueles foragidos das matas. Muitas vezes, o pobre sertanejo era torturado para dizer o que não sabia sobre o paradeiro do bando.

O Cangaço se sustentou no medo, no temor, na violência, no sangue derramado. Mas o rastro de sangue deixado vinha de uma vítima maior: o sertão. Foi o sertão quem mais sofreu com a existência do cangaço e das volantes, com os embates e as perseguições, com as caçadas e as estadias. Não havia nem sossego nem paz. O Cangaço amedrontava, mas a volante aterrorizava.

O Cangaço, e há de se reconhecer, foi forte demais para existir e resistir por tanto tempo. Mas houve um tempo de luta justificada contra a opressão, outro tempo de confrontos e lutas renhidas em nome da sobrevivência, e ainda outro tempo onde nada mais se justificava, a não ser a busca de se defender. Não havia mais bandeira de luta nem nada que justificasse a permanência no sacrifício.

O Cangaço não existiu nem sobreviveu por tanto tempo com suas próprias forças, pois dependeu de gente muito poderosa para alimentar seu império de luta. O Cangaço nasceu como centro de arregimentação de renegados, perseguidos e bandidos comuns, para depois se transformar no Cangaço de Lampião: um escudo contra as injustiças e opressões, mas para depois transmudar em mero confronto às forças estatais de perseguição.

O Cangaço de Lampião representou uma oposição ao status quo da política, dos poderes e dos latifúndios, ainda que para sobreviver dependesse de muito daquilo que dizia combater. O Cangaço pode ser visto como um partido político, cujo comandante buscava atrair opositores pela força, tecia alianças para garantir sobrevida, impunha terror aos desafetos, porém sem perspectiva de vitória alguma.

Qual vitória poderia obter o Cangaço? Continuar apenas existindo, mesmo já reconhecendo suas fragilidades, seus desânimos à luta, sua sangria por dentro. O Cangaço já não estava tão vivo quando morreu. Seus sopros de vida já estavam esvaídos. A continuidade da luta era muito mais por teimosia do que pela valia de alguma coisa.

Os que continuavam na luta já estavam sendo sacrificados demais e talvez esperando somente a tão esperada decisão de Lampião: depor as armas, fugir ou se entregar. Se não fosse o episódio cinematográfico da Chacina de Angico, talvez o Cangaço nem tivesse alcançado tamanha repercussão histórica.

Mas a chacina daqueles onze na trágica manhã de julho de 38, antecipando um fim que já tão próximo, acabou colocando nos epitáfios o que ainda sustenta a história: O Cangaço não morreu!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Sertões...







Primeiro amor (Poesia)


Primeiro amor

Meu primeiro amor
e o melhor que semeou
sementes de gratidão
que no peito preservou
como fé de veneração
como jardim sua flor
como seiva no coração
 
primeiro amor
que me ensinou a sonhar
me deu asas e fez voar
como criança que aprende
a escolher e a falar
como adulto que quer
continuar a tanto amar.


Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - famosinhos de merda


*Rangel Alves da Costa


A cada dia surge um famosinho de merda. Sim, disso mesmo, pois de nada vale. Famosinhos que são forjados, que são alçados à fama através das redes sociais, dos sites pagos de fuxicos, de sensacionalistas que parecem não ter nada sério para escrever a título de informação. Já perceberam quantos DJ’s surgem de hora pra outra? Desconhecidos que logo se tornam famosos, porém sem merecimento algum. Já perceberam quantos Youtuber’s surgem de hora pra outra? Igualmente desconhecidos que buscam ganhar dinheiro à custa da idiotice de tantos e tantos. O pior que o surgimento de tais porcarias é ter de suportar suas repentinas famas nos noticiários, nos sites informativos, nas redes sociais. Ainda bem que são estercos passageiros, são lixos sem duração, são idiotices que logo somem do mapa da insuportabilidades, e retornam ao ostracismo de onde jamais deveriam ter saído. Muito disso acontece também na música. Qualquer imprestabilidade logo ganha status de sucesso, de fama, de um monte de nada junto. Música que fala em cachaça, em cabaré, em traição, em cornice, é garantia de sucesso. E o cantor é elevado às alturas, mas para logo ser derrubado por merecimento de queda. Tudo isso acontece pelo desconhecimento do que verdadeiramente seja fama, do que seja a demorada construção de um mito que vai se perpetuando pela grandeza do que é e do que faz. Quando algo se torna inesquecível, pela beleza ou pela qualidade, certamente haverá algum resquício de fama.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O RIO DE MINHA ALDEIA


*Rangel Alves da Costa 


Nasci no semiárido nordestino, numa região sertaneja conhecida como Alto Sertão do São Francisco, precisamente por ser cortada pelas águas do Velho Chico. Da sede do município, Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, até a beira do rio são cerca de quatorze quilômetros, seguindo em direção a Curralinho..

Fiz tal relato preliminar porque se iniciasse o texto dizendo ter nascido na mais autêntica aridez nordestina, com estiagens que se prolongam por anos a fio, com vegetação cuja predominância maior é do mandacaru, do xiquexique e da desnuda catingueira, logo imaginariam que nenhum rio estivesse tão permanentemente presente naquele lugar.

E o São Francisco, mesmo ameaçado na sua existência pelas ações degradantes do homem, pelo uso indiscriminado como fonte energética e pelos canais e irrigações que vão surgindo para minar suas forças, continua fazendo o seu caminho molhado, fazendo as curvas e recurvas leitosas, levando no seu leito embarcações de médio e pequeno porte e no seu corpo a sobrevivência daqueles que se esforçam para pescar o alimento da sobrevivência.

Certamente não é mais o Velho Chico grandioso e caudaloso que os livros de geografia ensinavam. Longe o tempo onde as estradas sertanejas seguiam as curvas do rio, onde o comércio e a pujança fortaleciam as ribeiras e faziam surgir portentosas cidades. Penedo, Propriá, Neópolis, tudo da semente leitosa que de muito longe chegava trazendo riqueza e bonança.

Também quase não é mais caminho para os ribeirinhos, não é mais garantia de sobrevivência dos habitantes de suas margens e arredores e nem mesmo a razão de viver daquelas povoações que desde o amanhecer ao anoitecer avistavam o rio correndo como se ali estivesse o próprio sangue percorrendo na veia. As senhoras não sentam mais ao entardecer nas calçadas altas para avistarem as chegadas e partidas. Pouco surge na curva do rio que mereça ser avistado com grandioso espanto.

É até triste dizer, mas a verdade que a contínua magrez do rio desde muito que vem deixando a população ribeirinha em situação de abandono e desamparo. Se de um lado, e ao longo da história, a gente barranqueira se fez dependente demais do rio, de outro, a nova situação de escassez do que as águas ofereciam não veio acompanhada de políticas públicas que permitissem ao homem sobreviver perante a nova e desafiadora realidade.

Assim, num processo de lenta destruição e de nenhuma renovação, o que absurdamente se vê é a água ao lado da sede, ou a sede sem que o povo tenha sido ensinado a beber a água. Neste caso, tem-se que o leito do rio, porém com menos força e profundidade, com quase nenhum alimento nas suas águas, continua passando diante dos ribeirinhos, de suas casas, de suas famílias, mas quase sem nenhuma valia para os objetivos de sobrevivência.

Daí, com o rio continuando a passar, porém sem que o deitar de uma canoa no seu leito seja garantia de pesca nem de peixe pequeno, outra coisa não se tem que não a angustiante metáfora da água que não mata a sede. E porque sede é aqui noutro sentido que não a falta de água, mas indicando a fome e todas as formas de desamparo do ser humano ribeirinho.

E também a sede da fartura de um dia, da saudade das águas piscosas nos tempos idos, das embarcações que aportavam fazendo o comércio e interligando a vida, da rede jogada com a certeza que o alimento do dia chegaria enroscado, do olhar que se derramava cheio de admiração por cima do leito largo, distante. E agora ter apenas o rio passando, fazendo sua trajetória como obrigação, como pessoa que caminha sem contentamento, sem felicidade, num tanto faz de viver.

Por que o Velho Chico nem se compara ao grande pai de um dia, aos seus órfãos pouco resta a fazer senão lamentar às suas margens. Quando a fome chega, somente se voltando para a cidade para mendigar o pão. Não se estabeleceu, com suficiência e provimento de recursos, uma cultura de plantios às suas margens; não procuraram ensinar ao barranqueiro nada que o libertasse da eterna dependência de suas águas.

Parodiando o poeta lusitano, o São Francisco continua o mais belo, o mais vigoroso, o mais pujante e encantador rio que passa por aquela aldeia, por aquelas margens de um povo sofrido, mas não porque seja o único rio que passa por aquela aldeia, e sim porque veia, porque raiz ribeirinha, leito onde o sertanejo lança o olhar, num misto de ternura e tristeza, imaginando que amanhã será bem melhor.

E será. Basta que matem a sede do rio, que diminuam a fome do rio, que alimentem a sua necessidade de preservação. Somente assim a magia da carranca protetora voltará a existir. E o nego d’água pulando da ribanceira, e a lua vaga contando seus contos de bom viver...

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com     


Lá no meu sertão...


Pelo mundo sertão...



Coração (Poesia)


Coração

 
Sei não
já não sei o que faço
com o meu coração
se pulsa o amor
se pulsa a paixão
sinto por dentro
logo a traição
 
se digo sim
ele diz não
se não tô a fim
ele inventa paixão
se me entrego por fim
ele me deixa ao desvão
 
coração pura traição
quando pulsa em mim
e quero dizer sim
ele vem com não
se deixo assim
sofro a paixão.
 

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - entre verdades e aparências


*Rangel Alves da Costa

 
Não é nada fácil viver, mas é sempre difícil conviver. Um coração bondoso não quer ferir nem magoar, mas é difícil conviver. A pessoa se esforça para ser amigo, para ser sincero, para compartilhar coisas boas, mas sempre a incompreensão, a ingratidão, e, o que é pior, a falsidade. Há uma luta terrível entre a aparência e a verdade. Não é fácil ser cordial, tratar bem, respeitar, e saber que muitas vezes é um esforço vão. Há um espelho que brilha e que ofusca ao mesmo tempo. A pessoa cumprimenta sorrindo, diz palavras de carinho e afeto, mas adiante o lobo toma a pele de cordeiro, e então o outro já não presta, já é motivo de aleivosias, mentiras e falsidades. O que mais dói é ter de conviver com tudo isso sem mostrar voraz reação, ainda que surja a vontade de dar o troco merecido. O coração sofre, lacrimeja, sente terríveis dores, porém vai curando as feridas pela necessidade de resistir e de persistir. E até de conviver, mesmo com o que não presta. Daí que, muitas vezes, somos forçados a ser avistados de uma forma, quando estamos totalmente diferentes por dentro.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com