SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 26 de outubro de 2020

ESTRADA


*Rangel Alves da Costa


O olhar avança e avista distâncias. Entre os arvoredos e tufos de mato, sempre a passagem para se seguir adiante. Na terra antes tomada de espinhos e tocos de paus, a veia aberta sem destino certo. A estrada.

Há que seguir. Ou mesmo retornar. Não há voo nem rio ou mar por cima da terra firma. O único caminho é a estrada. Tão necessário o seu percurso, que impensável viver sem sair do lugar, sem conhecer outros horizontes.

De terra nua, empoeirada, estrada. Chão batido, espinhento, com ponta de pedra por todo lugar, mas estrada. Reta, de poucas curvas ou curveada, sempre uma estrada. Um ponto de partida, um destino ou não, e o fim na estrada.

Quando a porta se abre o passo quer logo seguir. Tantas vezes, sequer sabe aonde vai, mas sempre quer seguir. Nada melhor na vida que seguir pelos beirais, passar por lugares, ir adiante, até que se chegue a algum lugar. Sempre pela estrada.

Sim, eu sei o que é uma estrada. Eu vejo estradas e caminho por estradas. Mas será somente o traçado do percurso ou diz muito mais?

Apenas uma estrada. Talvez assim se imagine. Uma estrada asfaltada, uma estrada na piçarra, uma estrada de chão espinhento, uma estrada nua, uma estrada torta, uma estrada morta.

A estrada se alonga no olhar, vai se distanciando até se perder entre curvas e horizontes. Quem pisa o pé na estrada sequer imagina sua importância, até onde ela pode levar, o que ela pode modificar em sua vida.

Bastaria saber que tudo é estrada, ainda que não esteja caminhando ou seguindo por uma estrada. Ora, o que é a vida senão uma estrada?

Da porta pra dentro e da porta pra fora tudo é estrada. O rio é estrada, a nuvem é estrada, ao céu se chega por uma estrada. Todo percurso na vida é estrada. O caminho da infância, as veredas da adolescência, as curvas da existência.

Quanto caminho até chegar ao lábio da menina bela e dar o primeiro beijo. E no beijo um voo por uma estrada até a nuvem. Quanto tempo até o amor de infância se tornar companhia de mão e de lar.

Uma estrada que vai desde o primeiro choro do nascimento às lágrimas de adeus de um dia. Uma estrada que distancia os que ficam e os que partem, as chegadas e partidas, os reencontros e as tristezas.

Como é longe a estrada que leva às verdadeiras amizades, aos amados corações, às ternuras e aos afetos. Estradas distantes demais em direção à felicidade, mas que podem levar ao abismo em questão de segundos.

Estrada da memória, da nostalgia, das relembranças. Quando o pensamento aflora em busca do passado e vai abrindo janelas e portas das vidas vividas, então a estrada se enche de flores para perfumar aqueles momentos.

E quanta estrada é avistada e percorrida pelo olhar. Olhar que se encanta ao encontrar a cor da primeira manhã. Olhar que entristece perante o candeeiro do sol que vai se apagando. Um olhar que avista onde não pode chegar e que lacrimeja pelo encontro do que não se faz presença.

Dar as mãos, segurar mão na mão, e seguir pela estrada. Deixar o vento soprar e assanhar os cabelos, espanar os panos da roupa, dar vontade de correr.  Dar vontade de chegar, sobre a relva se lançar e dizer: ainda não chegamos, apenas estamos aqui.

Nunca, nunca será possível chegar ao fim dessa estrada. Nem a morte será fim da estrada. A pessoa se vai, porém outras continuam com sua presença enquanto durar. E assim a vida vai, por estrada, por veredas, caminhos, por espinhos, pontas de pedras e flores.

Tudo se vai pela estrada que leva a um horizonte chamado destino. 


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Lá no meu sertão...


Curralinho, Poço Redondo, sertão sergipano






O querer (Poesia)


O querer

O desejo nasce
e vai brotando em flor
de amor
 
tanta esperança
que assim aconteça
que se deseja mais
 
se deseja o outro
o outro que queira
ser jardim
 
e do jardim a flor
um perfume suave
de amor.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - morreu em meus braços...


*Rangel Alves da Costa


Triste coração, desolado e solitário coração, eis que, num sobressalto de agonia e aflição, pulou do peito e morreu em meus braços... Noites vagas e luas nostálgicas. Paisagens noturnas a atormentar. Uivos de lobos e urros de bichos atormentados na noite. Na semiescuridão, a chama da vela sequer mostrando a face dolorida do coração. E que, como num gesto de atormentada despida, estancou a vida e a pulsação, para se lançar voraz, desfazendo os laços, eis que pulou do peito e morreu em meus braços... Fazer o que com um coração em pedaços? Sem mais amor a amar, sem mais sorriso a sorrir, nada mais a ressuscitar. Somente a chama da vela testemunhando tamanha aflição, instante que o pulsar da vida vai apagando os passos, quando o meu coração pulou do meu peito e morreu em meus braços...

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domingo, 25 de outubro de 2020

JOÃO DA BICHA, O FEITICEIRO


*Rangel Alves da Costa

Não me recordo bem o período, mas creio que aconteceu pelos idos dos anos 80 em Poço Redondo, no sertão sergipano. De repente, apareceu pelos rincões sertanejos sergipanos um estranho, misterioso e instigante forasteiro, mais conhecido como João da Bicha.

Há algumas versões, contudo, dando conta que desde os anos 60 o misterioso homem já andejava pelos sertões sergipanos. Situei os anos 80 como marco pelo fato de que foi a partir desse período que o mesmo se fixou na cidade de Poço Redondo e na casinha a seguir mencionada.

Como dito, conhecido como João da Bicha. E talvez esse nome por uma ferida que tinha numa das pernas e que nunca sarava, ainda que o mesmo se prontificasse, pelo uso de ervas medicinais e outros meios, a curar feridas nos outros.

Moreno de pele escurecida, de altura mediana, magro, caminhando compassadamente pelo problema na perna, de vez em quando levando um chapéu panamá e vestindo de preferência o branco.

Alagoano ou pernambucano, não lembro bem, mas a verdade é que foi se arranchando na cidade de Poço Redondo. Trazia consigo somente uma velha mala e outros pertences de seus afazeres no dia a dia.

Encontrou uma velha casa desocupada e sem portas na antiga Praça Arnaldo Rollemberg Garcez (Praça Eudócia) e a tornou como moradia. Seu viver na casinha se resumia a uma saleta onde deixava seus apetrechos num canto e dormia geralmente numa esteira de chão.

Não demorou muito e o forasteiro começou a mostrar seus dotes, de mandingueiro e de bebedor de cachaça. Logo se espalhou pela cidade que João da Bicha era rezador de mão cheia, passando o ramo pra qualquer coisa e aporrinhação espiritual, como feiticeiro dos bons.

E foi assim que os interessados na resolução de problemas do corpo, da alma e do coração, começaram a formar grande clientela para o benzedor e mandingueiro. Gente que desejava acorrentar o coração alheio, mulher querendo desfazer o casamento de homem, gente querendo apenas fazer maldade com o próximo, todo tipo de safadeza.

Essas pessoas geralmente entravam pelos fundos da casa para não despertar atenção do que ali iam fazer. O homem fez fama e enlaçou e desenlaçou muito nó, ao menos para aqueles que acreditavam em feitiçarias e coisas tais.

Mas outras pessoas iam ali apenas para serem rezadas e afastar pesos ruins do corpo. Certa feita, de tanto benzer, rezar e fazer secar ramos e mais ramos de uma mulher, João da Bicha chegou à conclusão que o problema dela não era de reza nem benzimento, mas de deixar de safadeza.

A mulher começou a chorar e acabou confessando que não era flor que se cheirasse, e saiu de lá prometendo nunca mais falar mal dos outros, viver espalhando fofoca e nem dar em cima de homem casado. Mas logo a fama de João da Bicha começou a ser atrapalhada pelo seu vício na cachaça.

De repente, outra coisa não fazia senão beber, passando dias e noites bebendo cachaça no seu canto imundo de chão. Quando a fase passava, então se banhava, vestia roupa branca, colocava chapéu, e saía pela cidade, mas sua direção acabava sempre sendo um bar, onde tudo novamente começava.

E assim viveu em Poço Redondo, entre mandigas e bebedeiras, até a passagem dos anos torná-lo quase esquecido. Mas muita gente ainda o lembra, principalmente aqueles que entraram escondidos pelo quintal e levando na mão um retrato, uma calçola ou cueca e um fio de cabelo, na esperança que a mandinga desse certo. 

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Lá no meu sertão...


Sertões, passados e relembranças...



Canção de um amanhecer (Poesia)


Canção de um amanhecer


Ao amanhecer
já estava refeito
já era outra pessoa
 
pulou a janela
abraçou o sol
e cantou bem alto
 
o jardim verdejava
as flores perfumavam
uma dança de pássaros
                                                                                                           
subiu ao varal
e se estendeu inteiro
e deixou-se ressecar
 
veio a brisa boa
e soprou-lhe o ânimo
quis até voar
 
e voou tão alto
que olhou pra baixo
e deu adeus ao ontem
 
e se abraçou inteiro
e se beijou inteiro
enfim o amor
 
por si mesmo...
 
 
Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - da varanda...


*Rangel Alves da Costa


E da varanda eu via a vida passando. Da soleira, eu ia juntando quereres num alforje de caçador. Um aió desgastado de mato, um cantil cangaceiro antigo. As folhagens secas esvoaçavam as recordações. No quintal, o varal balançava minhas vidas descosidas pelo uso. Meu sonho era ser passarinho, mas nunca consegui. Eu sequer tinha uma copa de árvore para fazer um ninho. Mas achava boa assim mesmo aquela vida. Até que o vento foi soprando e me levou pela estrada...

 
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terça-feira, 20 de outubro de 2020

PIA DAS PANELAS, O COITO DAS MORTES

*Rangel Alves da Costa

Fincado no sertão sergipano de Poço Redondo, na região das Areias, o Coito da Pia das Panelas foi casa de maribondo, covil de crime hediondo, sem haver luta contra volante, era a própria cangaceirama se opondo. Coito formado de pedras, com funduras e alturas, seus arredores se tornaram paisagens de sepulturas, cangaceiros e inocentes sofreram cruéis agruras. Panelas formadas nas pedras por força da natureza, dentro junção de água num cenário de beleza, mas onde o sangue escorreu sem pressa nem estranheza, pois cangaceiro em vingança é estopim de malvadeza. Nada menos que cinco mortes no coito e ao redor, desde Lídia de Zé Baiano a Rosinha já tão só, mulheres tão destemidas, mas que sangraram sem dó. Foi o cangaceiro Coqueiro que contou da traição, então Zé Baiano afoito não deu a Lídia o perdão, com sua sanha feroz tingiu de vermelho o chão. Rosinha a cangaceira, viúva de Mariano, não teve melhor destino, pois descumpriu uma ordem que laçou seu desatino. Relutando em retornar de temporada familiar, foi preciso Lampião dar a ordem pra voltar, mas já com os dias contados pra vida não mais vingar. No Riacho do Quatarvo, bem ao lado dessas Pias, Rosinha marcada de morte sofreu dores e agonias. Ser morta por companheiros em sertões de covardias. Coqueiro o delator, também no coito foi morto, e o mundo desacertado ficou ainda mais torto, pois dois inocentes jazeram pela maldade em aborto. Zé Vaqueiro e Preta de Virgem, sertanejos da região, entre mentiras e aleives, também desceram ao chão, tornando a Pia das Panelas um coito de aberração. Porém um retrato fiel daquele agonizante Sertão.

Outras observações pertinentes sobre o Coito:

Localizado na região da Comunidade Areias, zona rural do município de Poço Redondo, no sertão sergipano, este era um dois coitos preferidos pelos cangaceiros em suas passagens sertões adentro.

O nome Pia das Panelas, contudo, tende a enganar o visitante, vez que o mais acertado seria que o local fosse denominado Alto das Pias das Panelas ou Coito das Pedras. E por uma razão simples. O que se tem na realidade são formações rochosas, algumas mais elevadas, e algumas pias (cavidades surgidas nas próprias pedras) e panelas (o formato das pias, de forma ovalado, de modo a receber e armazenar água de chuva) abertas, por força da natureza, adentrando as formações rochosas. Tudo como se tivessem sido cavadas por potentes ferramentas, vez que alguns destes fossos se mostrando bastantes profundos.

Tem-se, assim, a localização perfeita para um coito cangaceiro: a existência de pedras grandes para a proteção e defesa, a elevação do local permitindo ampla visão de tudo que se aproximasse ou se passasse ao redor, além da existência de água nas pias e de mata fechada, entremeada de catingueiras, mandacarus e facheiros, tufos de mato e labirintos. Não obstante tal configuração propícia ao cangaço, o coito da Pia das Panelas também era estratégico aos cangaceiros, pois em meio a um grande número de propriedades que os cabras de Lampião podiam ter rápido acesso.


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Lá no meu sertão...


Craibeira em flor em Poço Redondo, sertão sergipano




Canção da terra (Poesia)


Canção da terra

Cidade não
o chão
o grão
o pão
do sertão
 
asfalto não
a cancela
a donzela
flor mais bela
do sertão
 
retrato não
o amanhecer
o madrigal
por do sol
e lua em clarão
do sertão.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - os bichos e suas vozes

*Rangel Alves da Costa

O gato mia. O boi muge. O lobo uiva. A galinha cacareja... E o homem? O bicho homem grita, urra, brame, atordoa. A cabra berra. O leão ruge. A hiena ulula. A cobra sibila. E o bicho homem? O homem chama de filho da puta, grita dizendo que vai matar, solta palavrão e esculhamba com o mundo e com todos. O porco grunhe. O grilo trina. O pombo arrulha. O pássaro gorjeia. O pato grasna. E o bicho homem? Buzina, buzina, buzina. Faz ronco com a moto, troveja em cada palavra dita, sente prazer em gritar impropérios. Contudo, o pior é a ação. Ao ouvir o cantar do pássaro ou o mugido da vaca, o instinto humano se sente tão ameaçado pela pureza e pela beleza e logo silencia a voz da natureza. Uma natureza que não é a humana, que não é a dele.


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terça-feira, 13 de outubro de 2020

OU A LEI É A LEI OU FAÇAM FOGUEIRA COM OS CÓDIGOS


*Rangel Alves da Costa


Parece-nos verdadeiro absurdo pretender transformar as leis, os códigos e a própria justiça, em jeitinho brasileiro.

Ora, se a letra da lei é induvidosa, não há como querer inventar interpretação diferente. No Brasil, contudo, é o próprio aplicador do direito que faz tudo revirado pelo avesso.

Ora, dar interpretação diferente a uma lei ou mesmo restringir seu âmbito de aplicabilidade, é o mesmo que dizer que a lei pode ser moldada segundo a conveniência do julgador.

Então não se precisaria sequer de lei. Pra que uma lei se o juiz, desembargador ou ministro julga como quer?

Vamos ao exemplo. O excesso de processo nos procedimentos judiciais é motivo suficiente para a concessão de Habeas Corpus ao preso, pois assim diz a lei, considerando que no processo criminal há prazos que devem ser necessariamente observados.

Mas vai um cidadão preso, esquecido pela justiça, jogado às baratas da injustiça, e pede a liberdade exatamente por excesso de prazo.

Então vai o julgador e nega, sempre afirmando que o prazo na condução do prazo está razoável. Então, por que a lei existe? Existe para não ser cumprida?

Por - e por exceção - ter cumprido a lei é que o ministro Marco Aurélio vem sendo tão duramente criticado, e por aqueles que fazem da lei barganha política, ativismo judicial ou julgam por mera conveniência ou interesse.

Corretíssima a atitude de Marco Aurélio ao julgar segundo o comando da lei, na sua literal interpretação, como sempre deve ser.

Se a legislação penal diz que a cada noventa dias a prisão preventiva deve ser revisada pela instância condenatória, e assim não foi feito, logicamente que houve transgressão ao preceito legal.

E o remédio para sanar tal erro do próprio judiciário é a concessão de Habeas Corpus ao réu preso. Se houve erro, este foi do judiciário e não do julgador que concedeu o remédio libertatis.

Neste ponto, também não vale dizer que o réu não poderia ser solto pela sua periculosidade ou pelo clamor social, por se tratar de um poderoso traficante.

O próprio judiciário deveria estar atento ao preso, à sua periculosidade, ao seu interim criminoso, e assim tomar todas as medidas legais previstas em lei para mantê-lo encarcerado.

Mas assim não fez, cochilou, dormiu, passou do ponto. Como consequência, a sua liberdade. Mesmo que a muitos fosse um ato absurdo, mas apenas um ato legal.

Legalista como é, sempre julgando segundo a letra da lei, o ministro parece não ter tempo de divagar por possibilidades outras senão a ser fiel intérprete das leis e dos códigos.

Uma atitude correta do ministro. Se todos os julgadores fossem mais fiéis aos ditames da lei, certamente não haveria tantas liminares, tantos julgamentos divergentes, tantos recursos e tantas justiças praticadas pela justiça.

Um perigoso traficante, mas que saiu da prisão de mãos dadas com a lei, pois esta previu que assim poderia acontecer. E aconteceu.


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Curralinho, povoação ribeirinha de Poço Redondo, sertão sergipano








No balanço da rede (Poesia)


No balanço da rede
 

Não quero da noite
a rua
quero o noturno
da lua
 
quero o luar
sertanejo
e tanto amar
tanto beijo
 
rede a balançar
e o calor de um abraço
morena flor a beijar
dois corpos em só laço
 
a lua alumiando
o dengo e o cafuné
tão doce e tão quentinho
como gole de café.

 
Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - depois de nós dois


*Rangel Alves da Costa

Não. Não guardo mágoas nem remorsos. Não existe eternidade no amor se o querer entre os dois deixou de existir. Como pássaros que precisam de gaiolas abertas para voar, igualmente precisamos alçar outros voos quando já não nos sentimos felizes um perto do outro. Ou, noutras palavras, o que passou. Como dizia Chaplin, para que chorar o que passou, lamentar perdidas ilusões... Agora, tomando de uma recente música, só tenho a dizer que quero que você seja feliz, com ou sem mim. Sim, depois de nós dois, depois de tudo vivido e acontecido, só quero que você seja feliz... Ademais, a real valorização do amor sentido está no depois. Somente depois do adeus é que se tem a certeza se vale a pena olhar pra trás ou simplesmente seguir em frente. Mas não queira olhar pra atrás nem deseje voltar. Seguindo adiante é que encontrará o destino. O mesmo destino que um dia nos uniu.


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terça-feira, 6 de outubro de 2020

FLOR DA VIDA


*Rangel Alves da Costa

 

O ano inteiro de muita chuva. E esse ano foi de muita chuva mesmo. Dificilmente não amanhecia chovendo ou os pingos d’água se derramando do entardecer em diante. Muita gente dizia que desde muito que não se via um sertão com tanta fartura de água.

Tanques cheios, terra encharcada, água muita escorrendo nas ribanceiras. Os respingos entrando pelas janelas e as goteiras lavando velhos sofrimentos. Os olhares molhados das águas das alegrias, as mãos desejosas de trabalhar a terra para semear. Não havia medo ou temor, pois o tempo respingando vida fortalecia cada vez mais a esperança sertaneja.

Lá fora, pelo mundaréu sertanejo, além dos cercados e mais além, tudo exalando alegria. A catingueira florida, os arvoredos pujantes, a mataria tomada de viço e frescor. Pastagens verdejantes, um tapete de natureza em flor perante o olhar. Coisa mais linda o jardim sertanejo molhado de chuvarada.

As mãos de esmolas d’água negavam as submissões para se elevarem ao alto em preces de agradecimento. Os carros-pipas já não chegavam como milagres eleitoreiros. Do alto, caindo do alto, o sertanejo era reconhecido por uma força maior, por um poder bem maior.

O sopro divino era de nuvens cheias, prenhes, gordas, de muita água. O ano inteiro quase assim, quase uma eternidade sem os velhos e conhecidos sofrimentos. Mas as chuvas começaram a escassear. As manhãs não nasciam molhadas nem as noites chegavam espargindo vida em cada gota caída.

Estava bom demais para continuar assim. As colheitas fartas, as barragens fartas, as pastagens fartas, as alegrias fartas. Nem tudo tem a continuidade tão desejada. Por mais que chova e continuamente chova, o sertão sempre será sertão. E por ser assim, um sertão tão sertão, é que de repente o verde vai dando lugar ao cinza, a florida paisagem vai dando lugar ao definhamento.

Quando nenhuma flor restar mais na paisagem, somente a catingueira a preservar nos seus galhos e na nossa memória o mundo em que vivemos. Uma flor em meio à sequidão. Quando a terra esturricar de vez e o passarinho bater suas asas com destino incerto, então o sertão terá reencontrado sua face mais triste: a seca.


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Lá no meu sertão...


Caçando palavras...



A vida da gente (Poesia)


A vida da gente


Não renegue
nem despreze
a sua própria vida
nem a vida da gente
de toda gente
 
uma vida que se tem
a única de se viver
clamando oração e amém
barro moldado ao nascer
areia movediça além
mas firme de não mover
 
outra vida não há
não adianta querer
uma estrada a caminhar
na cruz e no seu padecer
mas também o festejar
de brilho e resplandecer
 
assim a vida
o viver ofertado
em taça de vidro
e asa de borboleta
leve e frágil
mas que pode voar
 
 
Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - o sertão no sertão


*Rangel Alves da Costa

 

Por mais que a cidade tente negar sua origem, ainda existe sertão no sertão. Basta se afastar um pouco do asfalto ou do paralelepípedo, virar uma curva aberta de estrada de chão, então logo reencontrará o sertão no sertão. Mandacarus e xiquexiques, o sol aberto em clarão. Sertanejo de enxada e foice, o seu ofício na mão. Vai um vaqueiro apressado, sopra o vento em lentidão. Casebres nos escondidos, a lenha queima no fogão. Cabeça de vaca na estaca, a catingueira em floração. Tudo parece distante num mundo de solidão, e quanto mais se andeja mais tem curva no estradão. A cor da paisagem muda na mudança da estação, o que era verde desanda e vem o cinzento da sequidão. O menino vai na estrada em galope de mansidão, então aceno ao menino e me vem sorriso de saudação. Que coisa mais linda na estrada, o sertanejo em seu sertão. Por mais que a cidade não queira, ainda pulsa esse coração. Por mais que os modismos reneguem, ainda existe sertão no sertão.


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