Rangel Alves da Costa*
O menor aqui abordado não é a pessoa diminuída diante do poderoso nem qualquer coisa que diga respeito à inferioridade econômica e social, mas o menor criança mesmo, o menor adolescente, aquela pessoa que ainda está em formação física e desenvolvimento intelectual e que, diante de tais condições, necessita de um amparo estatal privilegiado.
Sob o aspecto legislativo, teórico e doutrinário, o menor, ao lado do idoso, é possuidor de uma série de privilégios e prerrogativas, bem como de legislações protetivas específicas que deixam induvidosos um manto jurídico de segurança perante os malefícios da sociedade.
Neste sentido duas leis específicas. A primeira é o denominado Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069/90), que cuida dos mecanismos garantidores da proteção integral à criança e ao adolescente. Define a criança como a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
De especial interesse merece citação o disposto nos caputs dos artigos 3º, 4º e 5º, do ECA:
“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
“Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 chama para si uma imensa responsabilidade sobre o menor, apontando políticas e mecanismos de ampla proteção. Adotando a Doutrina da Proteção Integral, não vê o menor apenas como sujeito de direitos, mas sim como ser em especial condição de desenvolvimento, portanto merecedora da proteção integral do Estado, da família e de todo contexto social.
Neste sentido, preceitua o art. 227 que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Por sua vez, o § 3º do mesmo artigo afirma que: “O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no Art. 7º, XXXIII; II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola; IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins.
Pois bem. Sob o aspecto legislativo, toda criança, de qualquer condição, precisa receber proteção integral do Estado. Contudo, o que se observa é que na prática muitos desses preceitos legais tomam caminhos totalmente diferentes, até conflitantes, e que muitas vezes afetam vergonhosamente a vida do menor. E o que é pior: o próprio Estado atropela seus estatutos e age para que leis sejam criadas retirando direitos do menor.
Parece absurdo, mas não é, e sim a mais clara realidade. Por iniciativa da Presidência da República, através da Medida Provisória n.º 1.596-14/97, posteriormente convertida na Lei n.º 9.528/97, o menor sob guarda simplesmente perdeu sua condição de dependente para fins previdenciários. Segundo a lei, com o aval do judiciário, o menor sob guarda não pode ser equiparado a filho. E não sendo filho não é dependente. O fim dos tempos e do respeito à dignidade humana!
Quer dizer, foi o próprio governo que retirou um direito previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no § 3º do art. 33: “A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários”. E tal disposição legal ainda está em vigência, menos com relação ao direito previdenciário do menor sob guarda. Manejaram a lei, recortando-a acintosa e vergonhosamente.
Foi o próprio governo, depois repassando ao judiciário o seu desejo na aplicação da lei, que fez quebrar o tal manto da proteção integral. Eis que com o advento da Lei 9.528/97, o menor sob guarda deixou de constar expressamente no rol do art. 16 da Lei 8.213/91 como dependente do segurado. Quer dizer, cabe agora ao Poder Judiciário dizer que o instituto da guarda não vale nada, não tem proveito algum no mundo jurídico e que o menor nesta condição está totalmente desprotegido.
Nos julgamentos envolvendo inscrição ou reconhecimento do menor sob guarda para fins previdenciários logo se pacificou a jurisprudência no sentido de desqualificar a guarda, desrespeitá-la, afrontá-la diante das situações da vida, gerando um imenso e profundo descontentamento social. Ora, para o Poder Judiciário filho só o natural, reconhecido ou sob tutela. O guardiado é um reles, um ser abjeto que não precisa de proteção previdenciária alguma.
Surge, então, uma indagação: Aquele menor que está sob a guarda de alguém não é seu dependente? Certamente o mundo inteiro diria que sim, menos o Poder Judiciário que não o reconhece mais como nada. E o mesmo judiciário que irá mandar prender o guardião acaso chegue ao seu conhecimento que o menor está sendo maltratado. Quer dizer, serve para castigar e não serve para proteger. Dois pesos e duas medidas desprezíveis em se tratando desse poder que deveria realmente objetivar a Justiça.
O Judiciário vê e não quer enxergar, sente a mazela que faz e não quer reconhecer, conhece as consequências dos seus abomináveis atos e simplesmente relega à sorte dos desafortunados. Será que o julgador conhece a realidade familiar de um menor que está sob guarda, amparo e cuidado de uma família? Não, e mil vezes não.
Ridicularizaram com a conceituação da guarda, menosprezaram o menor e passaram a ver o guardião quase como um infrator. Contudo, não é uma lei – inconstitucional em sua plenitude - que vá “desconceituar” o menor guardiado na mesma condição de filho. Com a guarda, cabe ao guardião ter o menor na mesma condição de filho. E assim deve ser considerado.
Ao não equipará-lo a filho, mesmo que em outra condição, pretende-se ver o guardiado sem qualquer conceituação ou natureza jurídica perante o direito familiar. Não sendo filho nem equiparado, então seria o mísero abandonado que recebeu acolhimento, o objeto de carne e osso que está sob amparo e proteção. Verdade é que em nome de uma economia previdenciária estatal, desconstitui-se completamente a importância do menor sob guarda para colocá-lo no lugar dos malditos, dos renegados, dos entraves sociais.
As altas cortes, as jurisprudências e as decisões judiciais, atendendo às exigências do lado economicamente muito mais forte, que é o Estado, acabam ferindo de vez a dignidade humana do menor sob guarda. Criaram uma nova situação jurídica para o mesmo: um ser sem direito! É elementar: Se com a guarda, transfere-se também ao guardião a responsabilidade pela criação, educação e assistência ao menor, tais aspectos não seriam possíveis se o guardiado não fosse caracterizado como filho e tido como tal.
Os doutos julgadores dos tribunais, subordinados que são ao poder maior – vez que suas verbas e vultosos salários são provenientes desta fonte profunda -, sabem perfeitamente que a exclusão do menor sob guarda na qualidade de dependente é inconstitucional, fere o princípio da isonomia, causa extrema insegurança nas relações familiares, mas ainda assim julgam contrário ao direito e à justiça para satisfazer as economias estatais. Ou seja, não reconhecendo o menor como dependente estarão economizando em nome do Estado.
Que coisa mais insidiosa, mais nojenta, mais deplorável em se tratando do Poder Judiciário. E não menos miserável esse Estado fajuto que rasga seus estatutos para retirar direitos do menor garantidos por lei. Verdade é que muito mais economia faria se não fosse corrompido e não corrompesse, se não sustentasse com salários aberrantes verdadeiros vermes da máquina pública, se não gastasse tanto para transformar o poder num partido político.
Poeta e cronista
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