SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 31 de maio de 2015

ESPELHOS DO TEMPO


Rangel Alves da Costa*


Há uma concepção antropológica pregando que para entender o outro o indivíduo tem de sair um pouco de si para se inserir na realidade cultural daquele que deseja entender. Ou seja, impossível vivenciar e compreender determinada realidade a partir de um ponto de vista pessoal e sem a devida valorização do fazer, do pensar e do agir do outro.
O mesmo se aplica à História. Para que seu trabalho seja respeitado e reconhecido, o historiador tem de ser o mais isento possível perante o objeto estudado. Não pode e nem deve agir e compreender os fatos segundo partidarismos, concepções pessoais ou ideologias. Ou assim faz ou sua pesquisa já nascerá vinculada a um objetivo que apenas terá forjada sua demonstração.
Os entendimentos acima serviram tão somente como exemplificação para os fatos muito mais amenos que serão relatados a partir de agora. Contudo, necessário que fosse assim, pois o que pretendo demonstrar é o quanto é difícil compreender o mundo do jovem se o nosso entendimento tiver como pressuposto apenas o nosso mundo ou a realidade que adotamos como correta.
A compreensão da juventude jamais deverá ser feita a partir de determinados aspectos tidos como válidos para pessoas de mais idade ou mais velhas. Que se aceite ou não, mas o mundo do jovem é um e o mundo do mais experiente é outro, e muito mais o mundo do idoso. Que se aceite ou não, mas a concepção de vida do jovem é sempre diferente daquele de mais idade. Então há de se indagar: os jovens estão sempre certos ou sempre errados?
Surge então outro conceito antropológico, o de relativismo. Segundo a concepção relativista, os costumes, as crenças e os valores, devem ser vistos perante o contexto social dos indivíduos, e não em comparação ao que é adotado por outros indivíduos e sociedades. Significa que o erro ou acerto deve ser julgado pela própria cultura e não pelos outros. O que é certo num contexto social pode não o ser para outro. Por consequência, o que possui validade no mundo jovem pode ser totalmente desprezado no mundo de mais idade, mas nem por isso o idoso pode avaliar o erro da juventude por uma ótica pessoal.
Tudo se insere como num espelho do tempo. O jovem reflete o seu instante, a sua idade, a sua disposição, o seu modo de se inserir socialmente. Exemplificações claras deste momento de vida estão nos modismos, nos gostos pessoais, nas curtições. Logicamente que muitos dos gostos e gestos dos jovens confrontam os mais idosos, mas nem por isso podem ser tidos como errôneos. Muitas vezes as críticas são feitas sem ao menos entender que no passado, quando o adulto era jovem, o mesmo era feito como acerto.
No espelho do tempo também está o que já passou dos cinquenta, sessenta anos ou mais idade. No mesmo espelho está o reflexo de seu passado, desde criança à idade que chegou. E basta um olhar para o passado para compreender que o jovem possui um mundo que precisa ser muito mais compreendido do que criticado. Ora, mas se diz que no meu tempo não era assim, não havia tanta droga, tanta safadeza, tanta sem-vergonhice.
Tudo isso não passa de uma confissão saudosista. Nem todo jovem usa droga nem é malandro ou safado, mas todo jovem procura aproveitar ao máximo sua idade. E assim deve ser, pois não há fase na vida onde os portais estejam mais abertos para o encontro consciente com as belezas da existência. Se o velho de hoje não aproveitou o seu tempo como deveria, então é um problema de acusar a si mesmo, mas não colocar na juventude a culpa pelas dores do mundo.
Assim, para entender o jovem, o de mais idade deve compreender a realidade vivenciada por aquele, deve também compreender que viveu uma realidade parecida e que também foi criticado pelos mais velhos. Tudo é uma questão de tempo. Mas tempo mesmo. Chega um tempo que não somos mais e só encontramos erros nos que têm um mundo para viver.


Poeta e cronista
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Solidão em noite de chuva (Poesia)


Solidão em noite de chuva


Na noite um silêncio profundo
além da janela aberta apenas escuridão
o olhar quer avistar qualquer mundo
mas encontra somente a solidão

queria tanto enxergar a lua e sonhar
fazer da nostalgia uma memória feliz
talvez o amor de um dia reencontrar
mas apenas a saudade como cicatriz

lá fora a chuva inunda as flores da noite
as folhas se lançam ao mar da tristeza
tanta dor e aflição chegando em açoite
e quer somente ter da vida a certeza.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 990


Rangel Alves da Costa*


“Na minha caminhada...”.
“Já avistei de tudo...”.
“Doido de mais juízo...”.
“Que muita gente se passando por sã...”.
“Quenga de cabaré...”.
“Muito mais respeitada...”.
“Que donzela cheia de sonsice...”.
“Cafetina jogando as cartas...”.
“E o poder ajoelhado a seus pés...”.
“Padre falando sobre os pecados da vida...”.
“E ele mesmo com safadeza na sacristia...”.
“Mulher fofoqueira fina...”.
“Que vira fera se falassem mal...”.
“De sua filha mal falada...”.
“O médico da cidade...”.
“Entrar escondido no casebre...”.
“Para ir se curar com o chá...”.
“Preparado pela Velha Sinhá...”.
“Moça velha chorar dois meses seguidos...”.
“E definhar de lhe faltar a cor...”.
“Só porque seu cachorrinho de estimação...”.
“Bateu as botas de hora pra outra...”.
“E se danaram a dizer...”.
“Que a honrosa mulher tinha um caso com o de patas...”.
“E que por isso chorava sua viuvez...”.
“O menino perguntar à mãe...”.
“Quem era o seu pai...”.
“E a mulher sempre desdobrar...”.
“Para não revelar que a partir de então...”.
“Podia dar a benção ao padre...”.
“E chamá-lo de pai...”.
“A donzela que em noite de lua cheia...”.
“Subia na pedra grande...”.
“Lá pelos escondidos da mata...”.
“E ficava completamente nua...”.
“Implorando para ser possuída...”.
“Por aquela força misteriosa...”.
“Que não só alucinava como apaixonava...”.
“Até que um dia apareceu grávida...”.
“E nasceu um menino cujos olhos...”.
“De vez em quando brilhava intensamente...”.
“Depois ficava quase sem luz...”.
“Até escurecer completamente...”.
“Parecendo uma noite sem lua...”.
“Ou uma lua distante do filho...”.
“Tudo isso presenciei...”.
“Até quando eles roubaram minha flor...”.
“Mas aí já é outra história...”.


Poeta e cronista
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sábado, 30 de maio de 2015

VIVER


Rangel Alves da Costa*


A vida se apresenta de modo diferente a todo mundo. O seu sentido, a sua forma, a sua expressão, tudo se diferencia em cada um. Ninguém possui o mesmo pensamento do outro, ninguém age da mesma forma, ninguém espelha a realidade vivenciada por outra pessoa.
Pessoas que moram na mesma casa pensam e agem de modo diverso, irmãos gêmeos não seguem a mesma direção nem praticam os mesmos atos, até a própria pessoa se distancia de si mesma, pois instintivamente age contrariando a normalidade racional.
Gente há que já nasce trazendo consigo sentimentalismos exacerbados. Outros vingam e vão brotando com uma dureza de pedra, com insensibilidade e até mesmo indiferença. Enquanto uns são emotivos e compassivos, outros se comprazem em negar o próximo e até a si mesmos.
Gente há que cresce sem perder o sonho e sonhando vai até que a realidade da vida lhe feche os olhos. Abre a janela e logo se encanta com a paisagem ao redor, avista a nuvem e começa a ler poesias escritas no espaço. Cuida do jardim e faz da flor um diálogo singelo com o coração.
Mas também aqueles que se fecham em seus mundos, se escondem de tudo e quando aparecem é para negar a existência. Nada lhes parece bonito, agradável, prazeroso. Não dá um bom dia a ninguém e sempre acha melhor que não seja cumprimentado. Pisa no jardim com solado para espinhos, jamais enxerga uma flor.
Há a vida humilde, empobrecida, necessitada de quase tudo. E viver nessa situação exige o ajustamento de conduta. Ao menos deveria ser assim. Enquanto alguns se sentem ainda mais motivados às conquistas pela situação em que se encontram, outros se lançam ao desprezo da própria situação. E se empobrecem ainda mais de espírito e de ação.
Uma é pobre e tão feliz. Reconhece o que tem e o que não pode dispor, e vai transformando o que possui na maior riqueza do mundo. Agradece pelo pão e quer conquistar a sobremesa, se contenta com a roupa de feira e diz que vai ter uma de loja. E sorri, e canta, e nada consegue entristecer.
Outro toma seu café ralo, com pouco açúcar, mastiga um naco de pão dormido ou um tantinho de farinha seca com toucinho, depois vai sorrir para o sol antes de trabalhar. Pinica o fumo de rolo, pega a palha de milho, faz o cigarro matuto e vai assuntando como o seu mundo poderia ser melhor. E não deseja casa nova, carro, qualquer luxo, mas tão somente a chegada das primeiras trovoadas. Este o sentido da vida.
O menino corre de canto a outro, voa atrás de passarinho, se mete pelo mato atrás de calango corredor, vai vaqueirar sua fazenda de ponta de vaca, segue até o barreiro para fazer um boi bonito com o barro visguento, e ainda tem tempo de soltar pipa, desandar pelo mundo em cima do cavalo de pau e de sonhar o sonho bom de todo menino.
Um acorda ainda no escurecido da madrugada para fazer o leite chegar à porta ao alvorecer. Uma desce para o riachinho com imensa trouxa de roupa à cabeça e já vai pensando o que cantar enquanto bate a sujeira nas pedras molhadas e passa no sujo o sabão nativo. E o tempo vai passando e ela cantando os cantos das lavadeiras, ecos de voz molhada e cheia de felicidade.
Também canta a outra enquanto estende a roupa no varal. E logo sente a velha senhora chegar com sua cadeira de balanço e escolher um sombreado debaixo do juazeiro para fazer o que todo dia repete enquanto a ventania vai enxugando e balançando os panos: pensar nos vivos, recordar os mortos, viajar pelas estradas passadas, entristecer e chorar. Todo dia assim.
Mas nem todo mundo vive assim, é verdade. Uma não abre a janela senão para cuidar da vida alheia, não sai à porta senão para contar fofoca. Um pensa em vencer na vida passando por cima de tudo que encontrar. E tantos e tantos outros que vivem armados de ódio, de covardia, de violência. Vão espalhando suas arrogâncias até que um misterioso silêncio os faz renegados da própria vida.
Assim o viver entre uns e outros, entre tantos e todos. Desde o amanhecer ao anoitecer, vidas tão diferentes que vão construindo seus mundos e colhendo as dádivas e as dores do que semearam.


Poeta e cronista
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Poema de amor (sem flor) (Poesia)


Poema de amor (sem flor)

Eis enfim
um belo poema de amor
e por que não fala de amor

por que o querer silencia
por que o desejo emudece
por que o coração extasia
por que dentro tudo cala
por que a voz de além
para dizer que tanto ama
procura apenas expressar
um sorriso de felicidade

talvez assim
um belo poema de amor
por que apenas o seu sentido.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 989


Rangel Alves da Costa*


“Não queira ser jardim...”.
“Apenas o que és...”.
“Uma planta crescida sozinha...”.
“Mas tão bela como o arvoredo...”.
“Não queira ser a rosa...”.
“Apenas o que és...”.
“Um belo jasmim...”.
“Rodeada de borboletas e colibris...”.
“Assim encantadora e singela...”.
“Não queira ser a chuva...”.
“Apenas o que és...”.
“Um chuvisco contínuo na noite...”.
“Pois é na sua força...”.
“Que a terra se molha...”.
“E brota sem sumir na enxurrada...”.
“Não queira ser o vento...”.
“Apenas o que és...”.
“Um sopro leve de brisa...”.
“Que chega perfumado...”.
“E silenciosamente encanta...”.
“E apaixona o entardecer...”.
“Não queira ser a essência maior...”.
“Apenas o que és...”.
“Um aroma de flor...”.
“Um perfume suave...”.
“Que inebria a alma...”.
“Sem alarde passageiro...”.
“Não queira ser a paixão...”.
“Apenas o que és...”.
“Um sublime amor...”.
“Tão terno que faz amar...”.
“E tornar a alma contente...”.
“Sem esvoaçar coração e vida...”.
“Não queira ser a primeira...”.
“Apenas o que és...”.
“E calmamente caminhar...”.
“Para que o esforço na vida...”.
“Seja à medida da vitória...”.
“E alcançar o topo...”.
“Passando por cima de tudo...”.
“Não queira ser a melhor...”.
“Apenas o que és...”.
“Apenas você em você...”.
“E conhecendo a si mesma...”.
“Sempre será a melhor...”.
“A você e ao mundo...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 29 de maio de 2015

DESTINO


Rangel Alves da Costa*


Dizem que o destino vive à frente do homem costurando o futuro, marcando reencontros e acontecimentos, decidindo como será o amanhã. Junta retratos desde muito separados, marca com fita o que não pode ser esquecido, cuida de assinalar no calendário o inesperado e o desconhecido, coloca um espelho para que as imagens passadas novamente reflitam. Mas principalmente escreve no diário do tempo cada passo do homem.
Ao caminhar, o homem sequer imagina que aquela estrada já lhe havia sido destinada. E também a pessoa que encontra, o velho amigo que reencontra, a sorte e o desprazer. O banco da praça já aguardava o visitante, a recordação surgida já estava programada para afligir, a lágrima que desce do olhar já estava destinada a ser assim. O pássaro que pousa no ombro também, e assim com a bala perdida, a pedra jogada, a dor no peito, a morte.
Tudo obedece ao destino. Ninguém nasce nas distâncias do mundo, crescendo puxando o cabo de enxada para mais tarde fazer fortuna na cidade grande sem que a mão do destino o conduza. Ninguém vai caminhando e adiante encontra mais dois caminhos e tenha de decidir em qual direção seguir se não for transportado pelo destino. Ainda que a estrada escolhida seja cheia de perigosos labirintos, mesmo assim não seria outra sua opção. O destino faz com que experimente o perigo para que sua recompensa seja garantida.
O que alguns conhecem por sorte, deveriam chamar de destino. Se algo não estava predestinado a acontecer, não foi por sorte que não ocorreu. Mas o que está escrito, aquilo marcado nas letras do tempo para um dia existir, pode passar o tempo que for e acontecerá sem precisar dar aviso. Tome-se, por exemplo, o fato de que a pessoa toda semana faz aposta máxima na loteria e nunca ganha. Mas numa feita só tem dinheiro para aposta mínima e mesmo desesperançado joga. E acaba ganhando sozinho. O seu tempo era aquele ou não?
Na lição do velho profeta, o destino é o próprio caminho do homem. Ainda que decida cortar a estrada ou retornar, ainda assim terá sido pelo querer do fadário. E nada, absolutamente nada, pode fugir ao que foi marcado para acontecer. Em tudo pode haver esquecimento, descumprimento e inércia no fazer, mas não ao que está destinado advir. Mais cedo ou mais tarde tudo acaba acontecendo.
O destino é certeza tão importante na vida que vai além de sua mera conceituação. Com efeito, tem-se o destino como uma força misteriosa que determina os acontecimentos na vida das pessoas. Ou ainda a força sobrenatural que atua sobre o ser humano e o coloca refém de uma sucessão inevitável de acontecimentos. Costumeiramente também chamado de sina, fadário, estrela ou fortuna, o destino nada mais é que a escrita do homem desde o seu nascimento. E mesmo antes de nascer já tem sua vida predestinada.
Daí em diante nada acontece ao acaso, nada ocorre sem que haja uma predestinação para tal. Os fatos acontecem não por coincidência ou circunstância, mas simplesmente porque a vida humana é assentada em forças que interferem nas ações. Mas as pessoas também podem ajudar ao destino. As pessoas, numa relação de causa e efeito, são também responsáveis pelo que de bom ou ruim possa lhe acontecer. Ninguém vai reparar fios de alta tensão sem a devida proteção achando que o destino lhe é favorável.
Logicamente que a concepção do destino enquanto força que comanda a vida confronta os princípios do cristianismo, segundo os quais somente Deus possui o comando de tudo, somente os planos divinos para fazer com que as coisas e os fatos aconteçam de determinado modo.  Mas não se afasta o destino como dádiva divina. Na verdade, não há outra força que comanda o destino senão a divina.
Quando alguém diz que algo aconteceu por vontade de Deus, igualmente está se referindo ao destino. Este não força nenhum acontecimento, apenas tem o fato como um marco, como algo que deve acontecer. Como um caderno ou agenda de Deus, o destino apenas faz cumprir o que for determinado a ocorrer. Do contrário, tudo na vida seria ao acaso. E nada acontece por mera casualidade.


Poeta e cronista
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O tempo (Poesia)


O tempo

Olho o relógio
sinto as horas
mas não sei
não se vou
ou se fico
não sei
sei
ou não
sei

um segundo
um minuto
o tempo voa
e não sei
sei se vou
ou se fico
mas sei
que vou
um dia
sei.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 988


Rangel Alves da Costa*


“Chorei...”.
“Por toda a vida...”.
“Chorei...”.
“A lágrima da saudade...”.
“Mas também a lágrima...”.
“Do sentimento e da emoção...”.
“Do prazer e da alegria...”.
“Da tristeza e do sofrimento...”.
“Nunca neguei a mim mesmo...”.
“Nem ao próprio mundo...”.
“A minha lágrima de rio...”.
“O meu choro de mar...”.
“A enxurrada que chega...”.
“Inundando tudo...”.
“Ora, não finjo sentimentos...”.
“Não me recubro com véu...”.
“Nem escondo a tristeza...”.
“Choro se é pra chorar...”.
“Sorrio se á pra sorrir...”.
“Nada finge existir...”.
“Daí o sofrimento maior...”.
“Mas também a sinceridade...”.
“Que nada esconde...”.
“Para ser vivenciado...”.
“Na escuridão do quarto...”.
“Ou nos cantos escondidos...”.
“Ainda sou assim...”.
“Continuo chorando...”.
“Permaneço lacrimejando...”.
“E com mais constância...”.
“E com mais força...”.
“Talvez oceanos...”.
“Com suas margens em mim...”.
“Os tempos são outros...”.
“Surgem outros motivos...”.
“As tristezas e as desilusões...”.
“Surgem a cada instante...”.
“E também os adeuses...”.
“As tantas despedidas...”.
“O coração sempre apertado...”.
“Pelos temores tantos...”.
“E tudo se transformando em pranto...”.
“A ser derramar em cada canto...”.
“Quase a ser um acalanto...”.
“Numa vida que se lava em si mesma...”.
“Pelas águas que escorrem...”.
“Da nuvem carregada da alma...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 28 de maio de 2015

MENTIRAS


Rangel Alves da Costa*


Contrariando o ditado popular, desde muito que a mentira deixou de ter perna curta. Não precisa chegar rapidamente porque já está em todo lugar, acontecendo de forma generalizada. A sua onipresença é deveras alarmante. A propensão de faltar com a verdade, enganar, iludir, mentir descaradamente, se arraigou de tal modo que a maioria das pessoas sequer se dá conta se está mentindo muito ou pouco. O político, por exemplo, tem a mentira como a única forma de expressão. Daí a sua aptidão para ser inimigo da lisura, da transparência, da sinceridade.
Outro dia li que todo político é mentiroso. Mas nem precisava fazer tal constatação. O problema é que nem se preocupam mais em passar uma aparência de sinceridade. São pessoas que vivem da conveniência e por isso mesmo mudam os discursos segundo seus interesses. E sem falar nas promessas eleitoreiras, nos programas de governo rasgados após a eleição, nas afirmações de que nos cofres da pátria-mãe não há mais dinheiro para o financiamento estudantil ou para proporcionar atendimento digno aos que ficam estendidos no piso imundo dos hospitais. Quando o judiciário diz que quer aumento, alguém ousa dizer que não?
Diante de um mundo deslavadamente mentiroso, comprovadamente embusteiro, a verdade não tem melhor sorte que cair em desgraça. Ora, qual a força da verdade quando quase ninguém mais comunga da sinceridade nem na palavra nem na ação? E na leva da descrença no dito e no feito, as consequências negativas acabam recaindo também na honestidade, na honra, na moral e no caráter. Agora é que seria o tempo de avistar Diógenes de Sínope, o velho filósofo, andando de canto a outro com sua lamparina acesa em pleno dia em busca de um homem honesto.
E muito trabalho teria o sábio grego para ter à sua frente alguém que de uma forma ou outra não estivesse envolvido com a mentira. Mentiroso ativo ou passivo, contumaz ou ocasional, desavergonhado ou por força das circunstâncias. Mas seja de que lado esteja ou em quem recaia, a mentira sempre estará envolvida numa só objetivo: tornar a realidade da vida desacreditada. E realidade que envolve as relações sociais, as promessas, os compromissos e tudo que seja palavra. Quanta força e poder já possuiu a palavra humana!
Dizem que a mentira é a oposição à verdade. Será? Nos tempos atuais, tal antônimo passou a ter outra conotação. A mentira parece ser a única verdade, e esta uma grande mentira. O comum é mentir, enganar, falsear, ludibriar. A prática se tornou com tamanha normalidade que não há mais assombro ou indignação diante do embuste espalhado para acolhimento de todos. A descrença no juramento humano é tão grande que ninguém mais se preocupa em buscar quaisquer resquícios de sinceridade no que diz ou faz.
Não faz muito tempo que o apalavrado tinha força de confiança, de indubitável certeza, de contrato firmado, de escrita de honra. Os velhos senhores não precisavam assinar papéis para firmar negócios e compromissos. Bastava falar e já estava assinado para o resto da vida. A desonestidade maculava não só a honra como podia levar qualquer um à ruína. Assim porque socialmente desacreditado e sempre evitado entre os homens de bem, de palavra. Até mesmo em política havia honradez, cumprimento das obrigações assumidas e fidelidade ao prometido.
Contudo, as exceções são óbvias quando se fala em honestidade em política. Certa feita um coronel nordestino, daqueles de curral e cabresto, mandou chamar um prefeito por ele eleito e perguntou se já estava cumprindo as promessas feitas em campanha. O prefeito respondeu que ainda não, pois as verbas chegadas mal davam para pagar a folha. Então o coronel perguntou quanto tinha custado a fazenda recentemente adquirida pelo administrador. Quando ficou sabendo do preço, o poderoso pediu que fizesse as contas e lhe mostrasse se com a o salário recebido a cada mês, desde aquela data, já dava para ter juntado aquele valor. Em seguida disse que era por isso que não havia dinheiro que desse para fazer qualquer obra. Ao invés de trabalhar, pensou em comprar fazenda, depois vai adquirir mais terra, depois vai colocar dinheiro em banco, e assim em diante. Por fim, exigiu que a propriedade fosse loteada entre os mais humildes.
Hoje, as mentiras administrativas são geralmente fundamentadas em lei. Não é concedido aumento ao funcionalismo por causa do limite prudencial, os pleitos das categorias organizadas não são atendidos para não haver desequilíbrio das contas públicas, tudo é acintosamente justificado com base na Lei de Responsabilidade Fiscal. Acintosamente porque os governantes não obedecem a nenhuma lei quando desejam torrar dinheiro público, provocar inchaço com a contratação de comissionados, gastar verbas exorbitantes com publicidade e outros supérfluos. Só não há dinheiro, e sim o tal limite prudencial, quando o funcionalismo exige o que lhe é de direito.
Não há governo ou político que passe pelo detector. Por que se diz que Brasília é a grande farsa da nação?  A resposta está na crença que se tem nos políticos. De onde Pinóquio foi expulso pela inocência, além de ser o reino da mentira, do engodo e da falcatrua, possui a irretocável definição dada por José Simão: “Se gradear vira zoológico, se murar vira presídio, se cobrir com lona vira circo, se botar lanterna vermelha vira puteiro e se der a descarga não sobra ninguém”.


Poeta e cronista
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Da paz e da guerra (Poesia)


Da paz e da guerra

Sou da paz
e também da guerra
tanto beijo estrelas
como acaricio canhões
a única diferença
é que sou a verdade
não finjo estar em jardins
não finjo estar em trincheiras
não finjo ser seresteiro
não finjo ser general
e por isso mesmo
sei quando vivo
e quando estou morrendo
sei quando sou eu
e quando sou o homem.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 987


Rangel Alves da Costa*


“Vida, vida...”.
“Um casebre sem porta...”.
“Um casebre sem janela...”.
“Entra bicho e ventania...”.
“Sem pedir licença a ninguém...”.
“Mas é a vida, a vida...”.
“Um pote com água barrenta...”.
“Uma moringa sem água...”.
“Uma esteira pelo chão...”.
“Um cachorro magro ao redor...”.
“Uma parede de barro...”.
“Um chão de barro...”.
“Pessoas de barro...”.
“E barro tão quebradiço...”.
“Eita vida, a vida...”.
“Um fogão de lenha...”.
“Quase sempre apagado...”.
“Uma panela vazia...”.
“Um pouco de farinha seca...”.
“Sem açúcar nem sal...”.
“Um prato revirado...”.
“Uma barriga vazia...”.
“Muitas barrigas vazias...”.
“Um mundo vazio...”.
“Desde a porta da frente...”.
“Ao quintal sem nada...”.
“Mas assim mesmo a vida, a vida...”.
“Um calango passeia...”.
“O gato mia de fome...”.
“O bicho geme de sede...”.
“A poeira entra porta adentro...”.
“E o desalento também...”.
“Há um santo na parede...”.
“Um velho oratório...”.
“Uma prece pelos cantos...”.
“Uma esperança eterna...”.
“Eita vida, que vida...”.
“A lua bonita na noite...”.
“O sol imenso no dia...”.
“O calor de toda hora...”.
“A secura por todo lugar...”.
“Não chove desde dois anos...”.
“Apenas mandacaru e xiquexique...”.
“E o homem...”.
“A mulher...”.
“E a filharada...”.
“Todos chorando por dentro...”.
“Sem água para chorar pelos olhos...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 27 de maio de 2015

A RAIZ


Rangel Alves da Costa*


Não há outro livro que ensine mais que a vida. Não há aprendizagem maior que a capacidade de reconhecer-se nos erros e acertos e procurar mudar ou melhorar. E aprender significa não só compreender como praticar a humildade, a simplicidade, a generosidade, o amor ao próximo.
E na vida, o tempo, o percurso, a aprendizagem também em cada passo. Quanto mais se alonga a caminhada mais o ser humano vai aprendendo a conhecer aquilo que por muito tempo tratou com menosprezo ou futilidade. E igualmente a valorizar pequenas coisas que jamais imaginou tão significativas na existência.
Confesso que quando jovem eu quis ser além de minhas possibilidades. Mas tudo era possível. Parafraseando Fernando Pessoa, porque eu era do tamanho do que desejava avistar e não do tamanho da minha altura... E assim porque sempre fui sonhador e achava que poderia transformar todos os planos em realidade.
Sorte minha que não sonhei demais. Minha vida no sertão me fez pisar no seu chão e sentir no calor de sua terra a importância de primeiro ser o lugar e somente depois o mundo. E foi a vivência do lugar, em meio ao meu povo, que muito modificou meu olhar sobre o mundo.
Relembrando Drummond, fui menino rico. Tive ouro, tive prata, tive diamante. Ter o que eu tive num sertão empobrecido é possuir uma riqueza descomunal. Nunca me faltou brinquedo, comida, roupa, sapato, brilhantina, perfume, tudo tive ao meu alcance. E poucos dos meus amigos tinham sequer a metade do que eu possuía.
E quantos daqueles jovens sertanejos, amigos de todo instante, tiveram a oportunidade de estudar na capital àquela época? Só Deus sabe a dor sentida quando, aos onze anos, lá pelos idos de 74, tive de deixar Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo em direção a Aracaju, cortando a distância na velha marinete de Seu Vavá.
Mas depois percebi o quanto isso foi valioso em minha vida. Não pela formação acadêmica que consegui, pois estudei História, Jornalismo e Direito, e hoje advogo em escritório próprio, mas pelos sentimentos despertados de forma jamais imaginada. E desde o dia que deixei meu sertão.
A distância, a saudade, o amor pela terra, e mais o orgulho imenso de ser sertanejo, começaram a moldar minha feição de tal modo que jamais o mundo conseguiria me configurar de outro jeito. A ausência da minha lua e do meu sol, ao invés de me fazer acostumado com uma paisagem qualquer na cidade grande, acabou me tornando ainda mais sertanejo.
Nos fins de semana e principalmente nos períodos de férias escolares, chegar a Poço Redondo significava o convívio com aquilo que verdadeiramente importava em minha vida: reencontrar os amigos, abraçar os velhos sertanejos, prosear nas calçadas, caminhar pelo seu chão cativante e suas veredas abrasadoras. Como era bom estar ali bebendo na mesma cuia de tanta riqueza.
Meu humanismo e minha humildade – sem o mínimo de demagogia, acreditem – nasceram do amor ao sertanejo, do prazer de ser amigo de cada um, do tratamento indistinto ao do casebre distante e ao da cidade, do alimento saciado em cada causo, cada prosa, cada gole de casca de pau. E além de ser sertanejo, ter também o sertanejo como um igual, falando a sua palavra e acatando sua lição.
Tais aspectos foram – e continuam sendo - de fundamental importância na minha vida. E nada no mundo me transformaria. Sou simples, sou humilde, sou amigo, sou apenas um sertanejo, na cidade grande ou em qualquer lugar. Sou aquele que preserva a memória sertaneja e a cada passo a descreve nos jornais, não porque sejam assuntos conhecidos, mas pela simples razão do amor sentido.
Mesmo estando noutro lugar, e mais ausente da terra do que deveria, continuo tão sertanejo como o calango do mato, o preá, o xiquexique, o mandacaru. E com o coração sempre orgulhoso de minha raiz.


Poeta e cronista
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A paz (Poesia)


A paz


Por que o outono partiu
e eu não fui levado no vento
resta agora vencer o desafio
de dar vida ao renascimento

folha triste e frágil na vida
ameaçado de cair pelo chão
busquei na fé toda sobrevida
e na esperança uma oração

mas não quero ser primavera
quero a face de cada estação
ter a flor da vitória quem dera
ou apenas a paz no meu coração.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 986


Rangel Alves da Costa*


“Chega um tempo...”.
“Um tempo na vida...”.
“Que tudo parece um livro...”.
“Com páginas do passado...”.
“E suas lições...”.
“E sua sabedoria...”.
“E o ser humano...”.
“Um filósofo...”.
“E o idoso...”.
“Um sábio...”.
“E o conhecedor da vida...”.
“Um profeta...”.
“No olhar envelhecido...”.
“O grande espelho do mundo...”.
“Na palavra pouca...”.
“Todo o conhecimento...”.
“No silêncio costumeiro...”.
“A expressão da verdade...”.
“Mas quanto mais...”.
“O livro é aberto...”.
“E suas páginas desfolhadas...”.
“Mais doloroso ao homem...”.
“Ao filósofo...”.
“Ao sábio...”.
“Ao profeta...”.
“Nele as dores do mundo...”.
“Não que sua escrita...”.
“Seja apenas de sofrimento...”.
“Mas pelo confronto...”.
“Entre a escrita e a realidade...”.
“Ou o encontro da verdade...”.
“Entre o novo...”.
“E o antigo...”.
“Pois dói ao velho saber...”.
“Dói ao velho avistar...”.
“Aonde leva os novos caminhos...”.
“Os labirintos em cada passo...”.
“E ainda assim a cegueira humana...”.
“Contradizendo o próprio ser...”.
“E preferir o abismo...”.
“Ao caminho seguro...”.
“Do cuidado e da precaução...”.
“Com tudo que chama à experiência...”.
“E acaba levando à perdição...”.
“Tudo escrito no livro...”.
“Que os mais jovens se negam a ler...”.
“Até que façam parte de suas dores...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 26 de maio de 2015

SOMBRAS NA NOITE


Rangel Alves da Costa*


O sol se esconde, o dia vai embora, mas as sombras ainda persistem como companhia, seguindo, ao lado, por dentro, por todo lugar.
A noite cai, a escuridão povoa o mundo, mas não consegue afastar as sombras do dia, do passado, de todo o percurso de vida.
A noite, quando iluminada, também produz sombras. A luz recai sobre o corpo e provoca um sombreamento no espaço em que a luminosidade não consegue ultrapassar.
Contudo, as sombras que persistem são aquelas que acompanham o ser mesmo na mais completa escuridão. Ainda que seja breu de vaga-lume, e lá estarão as sombras assustadoras.
Mas não se trata de fantasmas, de seres furtivos e aterrorizantes, que se ocultam na escuridão para repentinamente surgir. Não se trata de nada do outro mundo nem da imaginação.
As sombras são reais, verdadeiras, vivas, reconhecíveis. O ser sabe que não está sozinho, sabe que suas sombras não o deixam apenas consigo mesmo.
Persistentes que são as sombras, das quais ninguém pode se afastar. Sente na pele, no olhar, no peito, mas principalmente no sentimento. E que se põem a martirizar lentamente.
E assim por que provocadas e conduzidas pelo ser humano desde suas angústias, dores, aflições, medos. E impossível negar sua existência como companhia.
Não surgem ao acaso, não entram pela porta nem se derramam da lâmpada acesa acima do corpo. Todo o seu reflexo vem do pensamento, da mente humana e seus fantasmas angustiantes.
As sombras se instalam na mente e começam a se cultivar a si mesmas para sombrear com maior força após a chegada da noite, quando a escuridão fragiliza a alma.
Após o entardecer, mas principalmente quando a noite chega e a escuridão debaixo da lua se espalha pelos quadrantes, então o ser se torna presa de si mesmo, de tão fragilizado que fica.
A noite talvez abra os portais dos escondidos da alma e traga ao instante tudo aquilo que tanto se deseja evitar. Mas o pensamento vai buscar e o sentimento a tudo recepciona dolorosamente.
Surgem as sombras da saudade. A mente vai abrindo os velhos álbuns, diários, livros antigos. E passando página a página, provoca reencontros que causam além da saudade: aflição e tormento.
Surgem as sombras das relembranças. Os retratos, as feições, as vozes, os adeuses, as despedidas, as promessas, tudo vai surgindo mais fortemente em meio ao negrume. E não há como fugir do desejo inato de voltar ao passado através da recordação.
Surgem as sombras dos erros. Na noite as culpas chegam com voracidade de ventania. Como uma prestação de contas, a pessoa vai somando os desacertos e se diminuindo cada vez mais. E só resta lamentar e se prometer que nunca mais aquilo se repetirá.
Surgem as sombras da nostalgia, da melancolia, da depressão e da tristeza profunda. Sai para se confortar debaixo da lua, caminhar pela solitária rua, se põe à janela em busca de um pensamento bom, mas tudo se mostra inverso: a mente não atende ao desejo de contentamento.
Surgem as sombras da solidão. E nas sombras da solidão não há luz que faça avistar qualquer coisa além do vazio, do nada desesperador. É a escuridão dentro da escuridão, uma sombra maior que a tudo envolve e deixa o próprio ser como inexistente.
E tantas e mais tantas sombras vão surgindo na noite. Não adianta acender mais uma vela nem colocar outra lâmpada no quarto ou na sala. Ninguém ilumina por dentro quando chega a hora de sua noite.


Poeta e cronista
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Quero (Poesia)


Quero

Chegou o sol e já quero a chuva
chegou o calor e já quero o frio
chegou o dia e já quero a noite
chegou a noite e já quero a lua
chegou o sono e já quero o sonho

quero a chuva e sua nostalgia
quero o frio e também o abraço
quero a noite e uma vela acesa
quero a lua e sua réstia em mim
quero o sonho amando sem fim.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 985


Rangel Alves da Costa*


“Sou velho demais...”.
“Mas gosto de ser assim...”.
“Sou antigo porque gosto...”.
“E gosto de ser passado...”.
“Goiabada cascão...”.
“Vitrola ao luar...”.
“Bolacha Maria em lata...”.
“Cachaça Serra Grande...”.
“Ferro de passar com brasa...”.
“Oratório envernizado de tempo...”.
“Picolé caseiro...”.
“Ki-suco com bolo...”.
“Carteiro entregando a carta...”.
“A carta escrita à mão...”.
“Retrato em preto e branco...”.
“Livro de Ouro de formatura...”.
“Leite deixado à porta...”.
“O trem apitando na distância...”.
“A solitária estação...”.
“As árvores frutíferas no quintal...”.
“E flamboyants na calçada...”.
“Janelas abertas...”.
“Amigos sentados em bancos...”.
“Pirulito de mel...”.
“Arroz doce pelas ruas...”.
“Tudo isso como saudade...”.
“E saudade de muito mais...”.
“Do radinho de pilha...”.
“Da lua dona da noite...”.
“Dos cabarés perfumados...”.
“Das prostitutas francesas...”.
“De um tango de Gardel...”.
“De perfume Toque de Amor...”.
“De Charisma e pó compacto...”.
“De brilhantina para o cabelo...”.
“Espelhinho ovalado de bolso...”.
“Pente também de bolso...”.
“E a música O Milionário...”.
“No parque do fim da rua...”.
“Saudade do circo...”.
“E da mocinha do circo...”.
“Saudade de maçã do amor...”.
“E do beijo arremessado...”.
“Tudo um dia existido...”.
“Mas nunca apagado nem esquecido...”.
“No eterno livro da memória...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 25 de maio de 2015

O RETRATO NOVO DE UMA CIDADE


Rangel Alves da Costa*


Na parede do tempo, muitos retratos de Aracaju, mas o retrato novo, retocado a cada dia, é mais que assustador. A moldura está feia, torta, desconcertada. A imagem está alarmante, repulsiva, mostrando ao fundo marcas de abandono, imundícies e sangue. Quanto mais novo o retrato mais entremeado de personagens assombrados, cenas apavorantes, como disformes pinturas surrealistas, demolidoras do corpo social.
Tais perspectivas realmente assustam em Aracaju. Ninguém esperava que em tão pouco tempo a galeria retratando os fatos e os cotidianos fosse assim transformada e agora revelasse tão friamente o que se imaginava acontecendo somente em outros lugares, nas conturbadas metrópoles ou grandes centros. Daí a não totalmente incorreta afirmação que o sudeste violento é aqui, a favela é aqui, a cracolândia é aqui, a bandidagem é aqui, a chacina é aqui, a miséria humana está aqui.
Tudo espantosamente aqui, de modo a amedrontar o aracajuano, o visitante, o turista. Não há mais sossego, não há segurança em qualquer lugar, seja pelas ruas, na calçada de casa ou mesmo porta adentro. Não se rouba mais carteira, não mais se lança mão dentro das bolsas alheias. Tais ilicitudes são coisas do passado. Agora a criminalidade aperfeiçoou-se de tal modo que os assaltos são praticados com motos, carros e armas potentes. Num instante, o veículo passa e deixa atrás mais uma vítima, quando não um rastro de sangue.
Os velhos retratos nem parecem com as fotografias instantâneas de agora, que já chegam tristes e dolorosas. Nos velhos retratos uma cidade que cresceu preservando seu lado interiorano, seu jeito pacífico de ser, sua reconhecida cordialidade, a justa fama de bem viver. Era a cidade dos sonhos de tantos e tantos que procuravam fugir das violências e absurdos urbanos. E por isso mesmo se mostrava agradável e segura aos seus habitantes e perante todos que chegavam para conhecê-la ou fixar moradia.
Ainda hoje ecoa, aqui e além-fronteiras, a simbologia de uma Aracaju como a capital da qualidade de vida, a cidade jardim, o recanto nordestino da paz e do sossego, o lugar ideal para ser viver. Milhares de famílias deixaram as alucinações urbanas e para cá se mudaram em busca da tão propagada tranquilidade cotidiana. E até usufruíram o que desejavam encontrar. Mas hoje a situação é bem diferente. Ninguém em sã consciência poderá deixar de reconhecer que Aracaju tomou a mesma feição de uma capital aterrorizante qualquer.
A verdade é que Aracaju se transformou na cidade dos problemas, da violência, do medo, do espanto. Mudanças na sua feição já eram esperadas, vez que acompanhando o percurso do crescimento urbano e das transformações sociais, mas a sua lógica de desenvolvimento desafiou à normalidade. Parece que de uma hora para outra tudo passou a desandar de vez. Tudo de ruim emergiu abruptamente, tudo o que atormenta passou a estar presente em todo lugar.
As ruas não deixam mentir, o temor nas pessoas não deixam mentir, a crescente violência não deixa mentir. Nada deixa mentir. Basta lançar um olhar para o caos no trânsito, para os trechos de ruas tomados de pequenos traficantes, vendedores e usuários de drogas. O centro da capital se transformou numa feira aberta para a comercialização de crack e outros entorpecentes. As pessoas que transitam pelos arredores dos mercados centrais têm de conviver com o medo dos assaltantes e o espanto com o comércio indiscriminado de drogas.
Menos os que fazem a segurança pública, mas todo mundo sabe da cracolândia nas calçadas da Rua Florentino, entre a João Ribeiro e Apulcro Mota. Todo mundo sabe – menos a polícia, logicamente – da droga correndo solta, a toda hora do dia, nos bares ao lado da feirinha das frutas da Praça da Rodoviária Velha. E assim por todo lugar. Todo mundo sabe, menos os poderes públicos, pois nada é feito para coibir o uso e a comercialização de drogas nestas localidades nem prender os marginais. E não será nada alvissareiro o futuro de uma cidade que se permite viver assim, com os absurdos acontecendo e as autoridades omissas ao caos.
A violência ganhou tamanha proporção que alguns setores da imprensa já falam em descontrole total da situação. A cada dia e a cada instante são registrados assaltos, mortes violentas, latrocínios, chacinas. Nos últimos tempos, não há uma segunda-feira que o balanço da criminalidade do final de semana não chegue a números alarmantes. Mesmo que não seja somente em Aracaju, mas o número de homicídios passar de vinte em setenta e duas horas é algo estarrecedor.
Costumava-se dizer que a violência aracajuana era gerada nos conjuntos empobrecidos da região metropolitana. Mas agora não há mais como disfarçar. Não faz muito tempo que chacinaram três jovens na zona norte, e nesta semana mais dois foram assassinados. Três baleados de uma só vez e dois mortos, mais tantos e tantos outros que respingam vermelho sangue nas estatísticas. E não importam as motivações, pois o fato da violência não se explica apenas pela sua causa.
Assim o retrato feio de Aracaju. Este está visível e sentido por todos. Ou quase todos. Alguns até dizem que a violência está diminuindo. Os fatos podem ser deturpados, mas as dores não.


Poeta e cronista
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Nativo (Poesia)


Nativo


Sou de mato
e sou de terra
de chão e de grão
sangue de seiva
veia de cipó
de araçá na boca
sol na feição
lua no olhar
tronco e raiz
flor numa mão
urtiga na outra
e uma vida
de sequidão
e de colheita
filho do tempo
também sou

sou de mato
e sou de terra
sou do sertão
tenho a dádiva
no coração.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 984


Rangel Alves da Costa*


“Faço o mesmo...”.
“O que fazia minha mãe...”.
“Minha avó...”.
“Também minha bisavó...”.
“E toda uma geração...”.
“Colocar a cadeira de balanço...”.
“Rente à janela...”.
“Pelo lado de dentro...”.
“Ou na calçada...”.
“E me vejo balançando...”.
“Sentindo o sopro do vento...”.
“E o cheiro de distância...”.
“Que chega na boca do vento...”.
“Gosto de ficar assim...”.
“Sempre perto do entardecer...”.
“Quando o sol avermelha...”.
“E o horizonte se torna um fogaréu...”.
“É quando tudo fica mais bonito...”.
“Mais singelo e meditativo...”.
“Mais pensamento e lembrança...”.
“E quanta saudade sinto...”.
“E quanta memória desperta...”.
“Trazendo retratos antigos...”.
“Feições conhecidas...”.
“Fatos e situações...”.
“De uma vida e seu tempo...”.
“Minha mãe passa adiante...”.
“Fala em doce de leite...”.
“Depois da um adeus e some...”.
“Minha avó aparece...”.
“E logo faz um cafuné...”.
“E me chama de neto...”.
“Meu netinho...”.
“E depois vai embora...”.
“O cavalo passa correndo...”.
“Ouço a porta se abrindo...”.
“Sinto o cheiro de sertão...”.
“É o meu pai...”.
“Não posso duvidar...”.
“Ouço uma voz quase silêncio...”.
“Já fez a lição?”.
“Tenho vontade de responder...”.
“E até respondo...”.
“Mas apenas no olhar...”.
“Nos olhos que choram...”.
“De tanta saudade...”.


Poeta e cronista
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domingo, 24 de maio de 2015

UM ITINERÁRIO NO MEU SERTÃO


Rangel Alves da Costa*


Acordo na madrugada à espera do impossível. Espero sempre que mais adiante o galo cante despertando a vida, mas inútil esperar a voz da natureza ou de bicho de quintal na cidade grande.
Diferentemente do poema de João Cabral de Melo Neto acerca do galo tecendo a manhã e suas implicações filosóficas, o galo que espero ouvir cantar é aquele mesmo sertanejo, de quintal de ripa ou quem vai dar na mataria adiante. O canto humilde, singelo, igualmente ao homem que logo abre a porta de trás para o primeiro olhar ao seu mundo.
Não há galo nem outro canto qualquer. Quase não há madrugada nem manhã, apenas um passar corriqueiro das horas. Não há aquela magia do alvorecer sertanejo com o gorjeio passarinheiro, as portas se abrindo, o cheiro bom do café. Daria meu reinado por uma xícara de café torrado, daquele que Dona Lídia preparava nas tardes de outros idos.
Também já levanto com uma vontade danada de abrir a porta e sair caminhando pelas ruas sertanejas, saindo do centro e indo em direção aos núcleos mais humildes que se espalham ao redor. Nas vezes que amanheço no meu sertão, logo cedinho já estou caminhando pelas ruas do São José, do Lídia, do Fernando Collor, da Praça Frei Damião e muito mais.
Mas também caminhando pelas margens do devastado Riacho Jacaré, meu querido riachinho, e em cada passo sentindo angústia pela degradação encontrada. Esgotos que descem dos conjuntos e formam poças fétidas e cheias de doenças. As pedras grandes não existem mais, as matas ciliares foram destruídas ou deram lugar a chiqueiros imundos.
Tudo isso guardo na memória. E logo me vem a lembrança de quando o riachinho ainda era bonito de se avistar e conviver e depois das trovoadas nas cabeceiras aquele mundão de água escorrendo. A meninada tomando banho, se jogando das pedras, o canto da passarada ao redor. As cheias ainda existem, o rio ainda faz seu percurso, mas certamente não há mais aquela magia de outros tempos.
Ainda nas manhãs, com o sol ainda escondido, eu atravessava ao outro lado da ponte e colocava os pés num lugar que um dia foi reinado absoluto de Dona Tindinha e família. Ali no alto, por isso mesmo chamado Alto de Tindinha, com vista privilegiada sobre a cidade, se assentava um núcleo familiar que jamais pode ser esquecido na história de Poço Redondo.
Hoje, tanto de um lado da ponte como do outro, as antigas propriedades deram lugar a loteamentos e novas moradias surgiram, umas suntuosas e outras mais humildes. Por ali também se seguia para o Alto de João Paulo por uma estrada completamente nua. Atualmente não há mais deserto, pois são muitas as construções que surgem a cada dia.
Nas minhas caminhadas matinais não atravessei o riacho em direção ao Alto de João Paulo, e por isso mesmo não sei das grandes transformações ali surgidas. Mas da cidade é possível avistar uma realidade completamente nova pelos arredores. Prefiro ficar guardando na memória e na saudade a feição de antigamente.
O Alto de João Paulo é de história viva. Relembro João Paulo sempre alegre, alto e sempre com chapéu de couro à cabeça, apreciador de uma casca de pau. Proseador e amigo. Contudo, sua importância no Alto se igualava a tantos outros que moravam naquele lugar bonito. Local de moradia de Adília, a ex-cangaceira, dos Maximino e tantas outras famílias de renome histórico na região. E nas suas proximidades a moradia de Luiz Doce e de Galego, o ferreiro sem igual no ofício e na amizade.
Desse modo, sinto muita falta de um acordar com motivações para a vida. E não há viver melhor que cortando as veredas do meu sertão, caminhando pelas estradas nuas, dando bom dia a um e outro, reencontrando a verdadeira seiva da existência. E disso concluo que a cidade, seja grande ou pequena, foi feita apenas para o indivíduo se esconder. Eis que a liberdade somente é encontrada nos afastados e esquecidos, perto do espinho e da flor.


Poeta e cronista
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