SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 16 de agosto de 2021

OS MAIS VELHOS ME DIZIAM...


*Rangel Alves da Costa

 

Os mais velhos me diziam... Oh quanta coisa maravilhosa os mais velhos me diziam...

E quanta coisa eu ainda quero ouvir antes que me torne apenas um velho esperando que alguém chegue para ouvir minhas memórias distantes.

Eu sempre gostei das palavras antigas, das vozes envelhecidas, dos dizeres de baús e relembranças carcomidas de tempo.

Memórias cheias de teias de aranha, proseados desgastados de estrada, assuntos empoeirados e ditos enferrujados.

Olhares que me miram como se o cansaço das vistas pouco reconhecessem o que sou e o que faço ali.

E descobri que quase nada sou, mas tudo passo a ser quando uma pergunta desponta: Você é filho de Alcino?

Quando respondo que sou, então tudo muda. Então a colcha de retalhos é aberta e os pedaços costurados surgem em cores maravilhosas.

E então os causos e causos retomam seu lugar no mundo para dizer do passado, de um tempo muito diferente daquele vivenciado.

“Já fui vaqueiro, mas de um tempo de cavalo tangendo boiada, e de passar três dias no meio do mato caçando uma rês teimosa...”.

“Já comi olho de macambira e bebi da água juntada em folha grande no meio do mato...”.

“Já fui perguntado por volante se eu ajudava cangaceiro, e então eu tinha que mentir. Dizia que não ajudava, quando ajudava sim...”.

“Já avistei cobra já de bote pronto na beira da estrada, então me lembrei de uma reza forte que minha avó me ensinou e fiz a bicha ficar parada lá feito pedra...”.

“Cavei cacimba e dividi com o bicho a mesma caneca. Sede não se mata com água de cacimba, mas a gente vai enganando a morte pela precisão de beber...”.

“Dizem que café quente com chuvisco num dá certo não, pois estupora. Mas dá certo sim, bastando se benzer depois de abrir a porta pra sair...”.

“É verdade essa história de que caipora castiga quem entra no mato sem levar pedaço de fumo. Eu nunca fui castigado não, pois com essas coisas eu nunca brinquei e em toda caçada que fazia eu levava o desejo da mata. Mas conheço gente que não só tomou relepada sem saber de quem apanhava como ficou sem saber tomar o caminho de casa...”.

“No meio do mato ninguém nunca tá sozinho não. Sempre tem um olho desconhecido vigiando cada passo que dá...”.

“Certa vez, dei uma relepada num lobisomem e no outro avistei a mesma relepada no ombro de Totoinho Torquato. O lobisomem era ele...”.

E assim vou ouvindo histórias, causos e proseados, e assim vou enchendo meu embornal desses frutos cultivados nos doces campos do tempo.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Em Curralinho, Poço Redondo, belo sertão...







A menina afegã (Poesia)


A menina afegã


Havia um espelho
na casa da menina afegã
havia um sorriso
no rosto da menina afegã
havia ruas e praças
nos passos da menina afegã
e ela sorria e brincava
caminhava e sonhava
como toda menina faz
 
e de repente o medo
o espelho foi quebrado
o véu negro cobriu o seu rosto
as portas foram fechadas
e as ruas ficaram desertas
para os seus passos e sonhos
para suas alegrias e esperanças
e já não era mais menina
era apenas a dor e a aflição.

Rangel Alves da Costa



Palavra Solta – velhos quintais


*Rangel Alves da Costa

 

Dona Senhora abria a porta do fundo da casa e apertava os olhos em direção às nuvens. Precisava saber se vinha tempo chuvoso e logo retirar as roupas do varal. Seu Quinzé se apressava pra ajeitar um canto de cerca aberto pela meninada. Quase toda manhã era assim, pois a gurizada sempre encontrava um jeito de ir afanar as frutas maduras caídas, ou mesmo subir nos mamoeiros e goiabeiras. A mocinha Zuzu já não sabia o que fazer com suas calcinhas lavadas. Acaso estendesse no varal, era absoluta certeza de sumirem de repente, como se algum ladrão de calcinhas vivesse de olho no seu quintal. Passou a estender suas roupas íntimas na portada da janela, mas foi pior. Rosaflor, um desmunhecado do lugar, foi pego com a mão na massa enquanto tentava furtar uma vermelha com renda. O Velho Sirineu tinha no seu quintal um verdadeiro amigo. Era nele, sentado num tamborete debaixo da goiabeira, que acendia seu cigarro de palha e se danava a conversar sozinho com suas saudades.  Um dia, a filha Jurema perguntou-lhe com quem tanto conversava, e logo veio a resposta: “Com sua mãe!”. Era viúvo já desde mais de dez anos. Os quintais eram assim, um outro mundo dentro do mundo-cidade. Hoje não, pois atualmente quase não existem mais quintais, apenas muros altos e muros mais baixos. Ao invés da natureza ou dos tufos de mato adiante, os olhos só avistam cimento e pontas de pregos nas suas alturas. Noutros tempos, contudo, os quintais eram como espaços sagrados, mágicos, aconchegantes. Abrir a porta do fundo e vivenciar o mundo do quintal era como se reencontrar abrindo velhos baús. Era como se deparar com as nostálgicas velharias, com pedaços do passado, com a história familiar ali presente. Nos quintais a síntese de tudo. A pequena horta (tomate miúdo, pimenta, coentro), o cantinho de plantas medicinais (boldo, hortelã, mastruço e muito mais), as árvores frutíferas, o velho banco de assentada nas tardes de sombreado e nas noites de lua grande, o tanque cimentado de lavar roupas, jarros e caqueiros com suas flores bebendo água de cuia. Num cantinho, as pontas de vaca para o menino brincar de fazendeiro. Mas talvez sejam os varais que melhor traduzam a singeleza daqueles quintais. As roupas lavadas e estendidas. As mãos catando pregadores ou amarrando anáguas e ceroulas ao varal com pequenos nós no cordame esticado. Depois de secas, as camisas de manga comprida estendendo os braços, querendo voar. Passarinhos que se espalham em cantoria no varal. A mocinha que vai chegando com cesto à cabeça para recolher a roupa limpa. E mais tarde, noutro varal, o dono da casa que chega com faca amolada. Escolhe um pedaço de toucinho e corta. Corta também a tripa gorda de porco. Não demora muito e o fogo de lenha é aceso adiante. Vai ter cuscuz, vai ter toucinho misturado ao ovo de capoeira, vai ter tripa, vai ter café batido em pilão, vai ter Sertão!

Escritor


terça-feira, 10 de agosto de 2021

A DOCE VIDA


*Rangel Alves da Costa

 

Enquanto ensaboa, lava e vai quarando roupas no tanque do quintal, Terezinha vai cantando: “Moço bonito que um dia me fez de consolação, me deu perfume cheiroso e um abraço tão apertoso que amoleceu meu coração...”. Já Geromilda começa a cantarolar quando se põe e estender as roupas lavadas no varal: “Minha boca é um sertão, beiço rachado de chão, na secura dessa vida sem amor e sem paixão. Venha me amar, venha me beijar, não quero sofrer mais não, pois nasci pra ser jardim e não a secura do sertão...”.

Já na boca da noite, depois que o vento enxugou as calçolas e camisolas, a mocinha Clarice se dirige ao varal com doce canção na voz: “Lá vem a lua, já escurece a rua, vou lhe contar um segredo que quero ser toda sua. E quando o sol levantar eu chamo de novo a lua, para lhe contar um segredo que quero ser toda sua...”. Bem assim quando Purezinha coloca brasa no ferro, sopra a poeira das cinzas, passa goma na camisa e depois começa a engomar: “Meu Padim Ciço Romão, o santo do meu sertão, chame Frei Damião e venham pra minha casa pra fazer Santa Missão. Quero a paz, quero alegria, a fé por maior devoção, a semente sobre a terra e o fruto sobre o chão...”. E assim pelos sertões, pelos quintais, pelos varais, num tempo de doce tempo que muita saudade traz!

O sol vai esfriando e a brisa da tarde começa a soprar. Ruas interioranas, calçadas alentadas, portas abertas, árvores farfalhando. E chega Joaninha com sua cadeira, e chega Pureza com seu tamborete, e chega Titoca com sua almofada, e todas se assentam para o proseado do entardecer. Nada de fofoca, nada de falação sobre a vida dos outros, mas das realidades e de um cotidiano que é de sol e de lua, que é de poeira e de chão.

Zezim passa correndo, eita menino danado! Vai correndo atrás da bola chutada pela meninada. Um buraco na terra, uma bola de gude, uma brincadeira. E de repente o maior cavaleiro do mundo: Tiziu em seu cavalo de pau. Vai correndo mundo, vai sendo o mais feliz, vai sendo a doce infância. E mais adiante, na sala da frente, Joaninha brinca com sua boneca de pano. Num cantinho da sala o seu mundo e sua vida. Conversa e briga, afaga e de repente diz que vai dar chineladas, penteia os cabelos, diz que vai dar banho pra boneca dormir.

Em tardes fagueiras, nas canções do vento, a vida se faz em sua singeleza. Apenas o tempo, apenas o vento, nas ruas sublimes, nas doces palavras de um povo feliz. Assim ainda a vida em muitos rincões. Nos sertões mais distantes, nos escondidos do mundo. E que bom que seja assim. Que bom se continuasse sempre assim. Que bom!

Mas o mundo apressado vai correndo demais. O bucólico esvoaça, o singelo se esconde para o novo chegar. E de repente a moda, de repente o estranho, de repente o desconhecido tomando o lugar da paz e da felicidade. Sem amigas nas calçadas, sem palavras boas ao entardecer, sem bola chutada pela meninada, sem bola de gude e cavalo de pau, aquele boneca do canto da sala vai sofrer e chorar.

Uma doce vida, que de tão doce vida, o tempo esmaga e no lugar da doçura vai colocando sal. Ou um fel na vida.

 

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu Sertão...


Nos Sertões, compartilhando vidas...




Meu amor (Poesia)


Meu amor

Meu amor
eu digo
meu amor
repito
meu amor
 
já silenciei
já sofri demais
aprisionei a palavra
deixei de confessar
o amor que sinto
por medo de amar
 
não suporto mais
silenciar o amor
tenho que gritar
a paixão com fervor
meu amor
meu amor!
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – pela estrada


*Rangel Alves da Costa

 

Pela estrada eu vou semeando. A cada passo, pelos caminhos vão ficando minhas marcas, o que fiz, o que eu poderia fazer de outra forma. Talvez poucos deem importância ao avistar as sementes que vou deixando sobre a terra. Assim como o grão que é lançado sobre o chão, e somente mais tarde brotará em flores e frutos, igualmente o que faço pela estrada. Apenas faço, apenas lanço o grão, apenas cumpro o meu dever de semear. Enquanto filho da terra, sinto-me com a obrigação de semear o melhor grão que eu possua, assim como a retribuição de quem jamais se esquece de seu berço de nascimento. A estrada vai ficando para trás e eu seguindo, seguindo, seguindo. Os que mais tarde seguirão pela mesma estrada, ao avistar os frutos do que foi semeando, haverão de dizer: alguém passou por aqui! E colherão o que melhor havia de mim para deixar.