SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

NESTES DIAS DE ALEGRIAS TRISTONHAS



*Rangel Alves da Costa


Concebo os períodos natalinos e de passagem de ano como dias de alegrias tristonhas. Mesmo os abraços, as confraternizações, os desejos de melhores dias, sempre ocultam laivos de nostalgias, de tristezas e angústias.
Nunca o sol está totalmente aberto nestes dias. Tudo parece nublado, esmaecido, com cores outonais e paisagens ocres. Flores tristes, folhas tristes, sopros vagamente aflitivos da ventania. Uma valsa tão bela quanto cheia de tormento e dor. Entardeceres de luzes opacas pelas tormentas.
Ora, o que deveria ser tão belo e sublime, eis que se transforma em instantes de aflição e angústia. Parece até que os abraços são fingidos, os sorrisos são forçados, as palavras dadivosas não passam de teatralizações verbais. O exterior esconde muito do que está interiorizado com outra feição.
Por que assim? Mesmo que os natais simbolizem nascimentos, renascimentos e esperanças, e a passagem de ano se traduza em recomeço, em caminhada e busca de dias melhores, não há como apagar o passado em dias assim. É o não esquecimento do que persistir na recordação que chama a tristeza e a nostalgia.
Muito bom seria se o tempo novo e o recomeço estivessem acompanhados do esquecimento de todas as angústias passadas. Mas assim não ocorre. O pensamento sempre vai atrás daquilo que já faz falta, daquilo que ficou para trás e que talvez não volte mais. As perdas não são esquecidas, os adeuses e as despedidas também não.
O contexto do final do ano deveria ser – como de fato o é – um período de reflexão, de meditação, de reencontro da pessoa consigo mesma. Uma prestação de contas do que foi feito ao longo do ano. Os erros e os acertos, as tentativas não concretizadas, o que foi relegado, o que não existiu pela impossibilidade. Tudo isso na mente, na memória. E tudo isso trazendo alegrias e tristezas.
E de repente, em meio às alegrias das festividades e confraternizações, as lembranças surgidas. Um ano de perdas, de tristezas pelas partidas, de ausências de pessoas que naquele mesmo instante deveriam estar compartilhando das bebidas e comidas. E também de adeuses já distantes, pois um período que sempre reabre velhos livros, baús e álbuns de dolorosos reencontros.
Mas assim o período natalino e de passagem de ano. Certamente que muitos sequer imaginam o que passou, se o ano foi bom ou ruim, se acertou mais que errou. Muitos querem e vivem apenas o instante, como se nada mais tivesse importância. O que passou, passou, e o dali em diante é o que vale a pena. Ainda assim, impossível que os seus íntimos não sofram calados os gritos que desejam aflorar.
Não há, contudo, que fingir. Que a alegria seja plena, que a felicidade seja sentida, mas que a tristeza não permaneça oculta. Há tempo de tudo, como diz o Eclesiastes, e por isso mesmo não se pode fingir que tudo será de uma forma. Que as lágrimas desçam, que o pranto desague, pois o verdadeiro sorriso haverá de logo surgir.
Mas que tenha dias de paz, com mais alegrias que aborrecimentos. E que os sorrisos sejam sempre mais verdadeiros e pujantes que os instantes de tristeza e melancolia. Feliz ano novo!


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Lá no meu sertão...



ESPERANÇA E FÉ - Imensamente grato pelo dom da vida e pela dádiva de viver. Extremamente agradecido pelas grandes e pequenas realizações. Infinitamente feliz pelo conseguido e pelo que ficou pra depois. Enormemente orgulhoso pelo que pude fazer e compartilhar com Poço Redondo e com meus conterrâneos e amigos. Sou de luta, sou um lutador. Igual ao velho sertanejo que nunca desiste de nada, também guardo as sementes para lançar sobre a terra quando as oportunidades chegarem. Sei que nada é fácil, tudo é dificultoso e até desanimador. Mas é a persistência, o amor e a esperança boa, que sempre alimentam a caminhada. E quero fazer muito mais, e conseguirei. Assim o desejo de Deus. E também desejo de Deus que todos tenham um 2019 repleto de alegrias e felicidades. Também o meu desejo a todos: FELIZ ANO NOVO!




Abraço-te agora e sempre



Abraço-te agora e sempre


Abraço-te
e que esteja comigo
agora e depois
no ano novo
e todos os anos

mas se amanhã
estivermos distantes
ainda assim
abraço-te agora
com o mesmo amor

e amor que sentirei
seja na presença
seja na distância
em todos os instantes
da vida!

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – roupa nova de passagem de ano



*Rangel Alves da Costa


Costume de usar roupa nova na passagem do ano. Também costumeiro que se diga que determinadas cores são mais apropriadas para o momento. Não importa, contudo. Importa que seja roupa nova. Mas para que se não vai sair, se está sozinho, se não haverá nenhuma comemoração? Vestir a roupa, ajeitar-se perante o espelho, sentir tudo como desejado, e depois simplesmente andar de lado a outro da casa. Portas e janelas fechadas, silêncio na vitrola e pelos arredores. Não, lá fora há barulho de festa, há gente animada, fogos, mesas fartas, bebidas, beijos e abraços. Pessoas em seu outro mundo, numa felicidade não existente a todos. Mas ali dentro, no silêncio de si mesmo, apenas a roupa nova andando de lado a outro. Roupa bonita, de festa, chique. Até que pouco depois é simplesmente retirada e lançada por cima da cama. E o ano passa entre soluços.


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domingo, 30 de dezembro de 2018

A HORA DIFERENCIADA DO SERTANEJO



*Rangel Alves da Costa


O relógio do sertanejo é ele mesmo que faz, sem precisar de máquina ou ponteiro algum. Conhece o tempo pela sua cor, pela réstia do sol, pela fresta da janela, pelo silvar da ventania.
Não precisa dizer que horas são, ou que faltam tantos minutos para isso ou aquilo. Está no olhar o relógio do sertanejo. Mais que biológico, é um relógio nascido na precisão e na pressa de fazer.
Mas também é uma hora diferenciada. Horário de comer é quando a fome bater, horário de voltar da roça somente quando o cansaço chegar, horário de abrir ou fechar a porta somente quando há necessidade de se fazer assim.
No meio da noite, em plena escuridão, e um canto de grilo lhe informa a hora exata. Bem assim com o zunir da ventania, com o rebuliço no quintal, com qualquer som ouvido lá fora. Não olha para o relógio. Não precisa. Apenas sabe a hora da hora.
“Num acustumo douto jeito não sinhô...”. Diz Zezé Nhôzinho, sertanejo de valia sem igual. E prossegue: “Penso inté que o galo se espanta quano abro a porta da cozinha em direção ao quintá. Tudo santo dia faço ansim...”.
E diz mais: “Que teja de chuvarada ou tempo aberto, nem bem a madrugada se vai e já arrasto meu pé em busca do que fazê. E o que num farta é o de fazê. Faço benzenção perto do santo, entonce só daí me vejo preparado pro dia...
E vai: “Joaninha finge que aina drome, mai sei que num drome não. Logo já tá ajoeiada juntim do oratoro. Reza pelos fio, pela famia, pela terra, pelo bicho, pru tudo. Joaninha nada faz sem Padim Ciço na boca, nada ressorve sem Frei Damião Capuchim.
Prosseguindo: “O canto do quarto inté parece um céu. Mai acho bonito que Joaninha seja ansim. Quem vive sem fé, num é mermo? Eu mermo sô devoto de São José, pai de Jesus e do sertanejo, ansim cuma eu. Bem ansim começa o dia, aina no breu do madrugá...
E vai dizendo: “Mai num tem outo jeito não. O seuviço num dá fuga a gente não. O pão da mesa tá na terra, tá no mato, tá no lombo do bicho, tá toca e na vereda. O sertanejo tem de ir atrás do seu pão, pur isso que bem a luz do dia aparece eu já tô trabaiano...”
“Aceno o fogo de lenha, torro um naquinho de toucim, frevo um café, misturo tudo no bucho e pronto. Quano o sol ser alevanta eu já me fiz de fazê. E pa vortá mai cedo e incrontá na mesa aquilo que Deus quiser. O que é riqueza na mesa do sertanejo, meu sinhô?”
“O pão. O pão que é o feijão, o pão que é a tripa, o pão que é o ovo, o pão que é o naco de carne, o que tiver. E adespois agardecê a Deus. Só Deus que num vai deixa fartá o de comer de amanhã. E tomem Padim Ciço, Frei Damião Capuchim e o meu São José. E José tomem sou. Sertanejo tomem sou. Garças a Deus”.
Então abre a porta e vai para a vida dura. Mas tão cheio de contentamento que mais parece um agraciado de tudo.


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Lá no meu sertão...



Poço Redondo, penúltimo entardecer de 2018. Que as luzes, sóis e luas de um novo tempo, brilhem sobre nós!




O grito (Poesia)



O grito


O amor
silenciosamente
grita

grita
aos que amam
e aos desamados

ao amor
seu grito é terno
e de belo ecoar

ao desamor
seu grito é cruel
solitário e triste.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – um silêncio antigo



*Rangel Alves da Costa


Vivo agora um silêncio velho, antigo, de outros tempos. Já passado de nove da noite, sem motivação alguma para a noite lá fora, então permaneço no Memorial que mantenho em Poço Redondo, no sertão sergipano. Dificilmente aparece um visitante neste avançar das horas. E por isso mesmo me recolho no silêncio velho entre velharias, relíquias e raridades. Retratos nas paredes, objetos antigos, mobiliário de outros tempos, peças tão importantes no passado e já sem uso no presente. E eu aqui neste silêncio antigo e de tanta história, de páginas tão importantes para o conhecimento da cultura, da história e das tradições sertanejas. Para onde eu olhar por certo estarei perante uma antiguidade. Tudo de um calendário já levado pelas ventanias, mas ainda presentes pela preservação que promovo. Não há ninguém além de mim por aqui, mas tudo povoado por anos e mais anos de história. O que me faz em companhia de um mundo muito além do que se possa imaginar. E tudo com suas silenciosas vozes e suas imorredouras presenças.


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sábado, 29 de dezembro de 2018

1. A LUTA PELA TERRA – POUCOS COM TANTO E TANTOS SEM NADA



*Rangel Alves da Costa


Eustáquio preferiu sair da cozinha pela porta dos fundos, indo em direção ao quintal aberto. Não conseguiria passar pela sala e avistar os meninos já famintos àquela hora do dia e sem nada na panela que causasse a ilusão de comida.
Creuzina, sua esposa, havia puxado o pano da cabeça e agora o utilizava como lenço, e já completamente molhado de lágrimas. Nada podia fazer senão despejar o restinho de farinha de mandioca numa panela, jogar um pouco de água por cima e depois mexer até aprontar uma papa d’água.
Tiziu comeu do que lhe foi colocado no prato. Assim também com Pedro e Zefinha, a mais nova da família. Já Eustáquio, o pai, e Creuzina, a mãe, beberam do fel salivento da dor, da agonia e do sofrimento. Continuaram famintos, porém satisfeitos. Os filhos haviam tido a ilusão do alimento. E depois, e mais tarde, quando a fome dos filhos novamente despertasse?
Adiante do barraco o mundo da desolação. A estiagem havia deixado a terra em pó. Não havia verdor nem seiva de vida numa só planta. A ossada do bicho parecia uma assombração esbranquiçada. Mandacarus ressequidos, facheiros murchos, jurubebas mortas pelos beirais pedregosos das estradas. Mas o pior estava por acontecer.
Quando o portentoso alazão riscou defronte a morada, então Eustáquio logo imaginou o chão se abrindo a seus pés. A notícia já era esperada e seria o fim do mundo. E ela havia chegado. Já acreditava nisso, porém não acreditava que tão cedo pudesse acontecer. O recado foi tão breve quanto arrogante: “O patrão avisou que junte as coisas e abandone a casa”.
Já na manhã seguinte e mais parecia um quadro de Portinari. A pequena família em retirada e sem ter aonde ir. Não eram retirantes das secas, e sim retirantes do teto e da guarida de sobrevivência. Retirantes do pedaço de chão aonde se mantinham feito bicho entocados sem ter outra saída. Retirantes da esteira ao chão, do estrado da cama, do pote e do candeeiro.
Mas a família foi seguindo adiante levando toda a riqueza em saco e cuia. Molambos, restos, pedaços. Já ao longe, antes de tomar uma curva para o deus dará, Eustáquio parou um instante, olhou para trás e estremeceu de ódio. Avermelhou ainda mais a pele já tostada de sol, afogueou por dentro feito vulcão irrompendo todas as fúrias da vida. Quanta indignação, quanto rancor, quanto ódio!
E um ódio tão animalesco que só os feridos no espírito, corpo e alma podem sentir. Aquela paisagem sem fim, aquele meio mundo de terra e chão, aquela vastidão sem limites, e tudo de um só dono, tudo de quem sequer sabia a quantidade de terra que possuía nem a serventia de toda aquela riqueza. E ele, caminhante pelo mundo dos outros, não tendo sequer um palmo de chão.
Quis voltar. Fez menção de retornar e ir diretamente até a porta daquele senhor dono do mundo, daquela víbora recoberta de gente, daquele imprestável que se abancava na cadeira da varanda, mirando sem ter o que fazer com as suas léguas e mais léguas de terra, mas sem ceder a ninguém um só quadrado de chão. E sem deixar que o pobre fizesse vingar sobre a terra um pé de milho e de feijão, uma abóbora, uma melancia.
Quis voltar. Fez menção de retornar, mas de repente novamente voltou-se adiante e avistou sua pequena família a lhe esperar. Também sabia que não voltaria com vida acaso fosse pedir satisfação ao ex-patrão. Ele mesmo sabia das cruzes espalhadas por aqueles carrascais, das tocaias feitas e das emboscadas mortais. Um mundo de urubus, de carcarás e gaviões, de vidas definhadas ao sol pela sangria das injustiças.
A família virou a curva da estrada e seguiu adiante. Talvez Tiziu estivesse com sede. Talvez Pedro estivesse com sede. Talvez Zefinha estivesse doente. Mas tinham que seguir adiante. E para trás os imensos descampados, as catingueiras e as umburanas num canto e noutro. Pouco bicho para tanta terra e quase nenhum plantio que alimentasse a vida. Um mundo do tamanho da ganância, da injustiça e da soberba.
Um mundo grande demais para quem não merecia. E nenhum pedaço de chão àqueles que seguiam em frente na incerteza do instante seguinte e do amanhã. Porém, na mente já menos raivosa de Eustáquio um pensamento que mais tarde se tornaria ação: “Nem que sangre de morte, nem que seja ferido pelo açoite da bala, mas ainda lutarei com toda força que tiver para transformar esse chão num chão de todos. Para repartir essa terra com quem dela precisa para trabalhar e sobreviver”.
E foram seguindo adiante. E pela certeza da luta, Eustáquio agora alimentado...
(Continua)


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Lá no meu sertão...


Num instante qualquer...



Inté! (Poesia)



Inté!


Inté mais
procê
ou até mais
para você

sou matuto
nego não
pouca prosa
dizer errado

e vosmicê
queria mais
um doutor
do amor

entonce inté
meu verbo torto
muda nadinha
tudo que sou.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – “É uma ciumeira atrás da outra...”



*Rangel Alves da Costa


Existe exclusividade no amor? Existe a possibilidade de dedicação amorosa única? O mundo moderno cada vez mais responde pelo desacerto. As traições pontuam descarada e deslavadamente. Poucos são aqueles que ainda se imaginam seguros nas suas relações amorosas, convívios e até uniões conjugais. De repente e a notícia surge, e quando já será tarde demais. No amor, a traição nunca encontra desculpa suficiente. Na relação, a traição não se justifica sob hipótese alguma. Tudo não passa de safadeza mesmo, de falta de caráter e de honestidade para com o outro. Em casos tais – mesmo que seja muito difícil domar a propensão libertina e desonesta do outro, o ciúme surge senão como remédio, mas como um antídoto de precaução. Basta o fato do ciúme para que o desonesto não se sinta totalmente livre para trair. O ciúme é desconfiado, é melindroso, sabe muito bem que onde há fumaça pode haver fogo.  Mas deve ser assim mesmo. Ciúme é para ser sentido mesmo, e no sentido de preservação, de apossamento, de ter como seu e para si o objeto desejado, querido ou amado. Verdade que ninguém quer dividir a pessoa amada com ninguém, ainda que já tenha se apossado da pessoa de outro alguém. Uma vez imaginado como parte integrante daquela vida, certamente que tudo fará para atrair somente para si aquela pessoa. E sem o ciúme não existiria sequer o amor. Quem ama cuida, preserva e quer conservar a tudo custo, fica sempre de olhos bem abertos às ameaças e aos perigos, ou mesmo apenas não deixar que o outro caia em tentações. Por isso mesmo que é uma ciumeira atrás da outra. Ciúme da pessoa sem razão alguma para ciumar, ciúme da fiel para com a amante e da amante para com aquela que já era dona. Ou, como diz a canção a todo instante: “É uma ciumeira atrás da outra, ter que dividir seu corpo e a sua boca...”.


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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

CAFÉ COM FILOSOFIA



*Rangel Alves da Costa


Sim, tudo pode mudar. Nada é estático, imutável, tanto rocha e tanto pedra, que não possa haver uma forma ou um meio de transformação. Basta reconhecer e agir para modificar.
As nuvens caminham, o sol andeja, a lua vai de canto a outro. Aliás, nada será transformado sem que haja ação no seu estado natural. A mudança é essencial em tudo.
Mas tudo só muda quando há a percepção de que existem outros caminhos. Estradas e curvas de repente surgem como a dizer que o passo poderá seguir por outro lugar.
Nenhuma estrada tem início e fim sem que curvas e veredas se apresentem como opções de seguir. Cabe ao indivíduo buscar a melhor saída, trilhar pelo que desejar.
Há múltiplas possibilidades em tudo. Tem gente que não caminha debaixo do sol nem da chuva. Mas aquele que precisa chegar vai vencendo todos os desafios que se apresentam.
Sim segue pelo sol, mas de repente o sol se põe, a nuvem vem, a chuva chega. O que fazer, então? Seguir em frente sem medo e sem arrependimentos, construindo logo a chegada.
Na dúvida, ainda a possibilidade de ouvir mais a si mesmo, de refletir um pouco, de decidir somente quando já esgotados os espantos, os empecilhos, os medos e os pessimismos.
Perante tal situação, a certeza de que o ser humano não teve temer fazer o mesmo com o pensamento. Pensar e repensar, rever o pensamento, reorientar-se. Mais difícil errar assim.
Tais questões envolvem muito mais. A fruição do pensamento de repente coloca o ser em cima da montanha da filosofia. E então sente que tudo é mais profundo do que imagina.
E vai indagando e procurando respostas para as coisas mais simples e mais complexas, para as realidades e as ilusões, para o que apenas supõe existir. E as respostas vão surgindo.
Quando passou um pedinte e depois mais outro, mais outro e mais outro, sempre cada vez mais famintos e magros, então eu temi pelo destino dos homens.
Quando minha avó deixou de me fazer cafuné e meu avô deixou de contar histórias do outro mundo, e tudo entristeceu pela casa, então eu aprendi que a velhice florescia demais.
Quando a criancice se despediu, a meninice foi embora e a adolescência sumiu, então eu resolvi parar de crescer e voltar a ser o que ainda estava presente dentro de mim.
Quando a nuvem não veio, a chuva não veio, o pingo d’água não veio, e tudo murchou e tudo secou, então cavei mais o barro do chão até surgir um veio de esperança.
Quando eu esperei a primavera e chegou o outono, e no lugar das flores apenas a secura da solidão e a tristeza do silêncio, então molhei mais meu jardim e fiquei esperando.
Quando pedi que ela segurasse minha mão para seguir pela estrada e ela negou minha proteção, então sozinho segui até ouvir o seu grito aflito desejando a mim.
Quando cansei pela estrada e não encontrei nenhum sombreado e nenhuma guarita para descansar, então caminhei mais ainda em busca do meu destino.
Quando procurei a igreja e a encontrei de portas fechadas e procurei um altar e nada encontrei que fosse santificado, então abri as portas do templo do meu coração e orei.
Quando minha vela de oração começou a se apagar antes do tempo e a minha oração era esquecida antes do fim, então me ajoelhei e abaixei a cabeça para reencontrar a minha fé.
Quando fui jogado às feras, fui lançado aos lobos, fui arremessado às peçonhentas serpentes, então esperei sobreviver e espantar as feras, os lobos e as serpentes, de toda estrada.
Quando eu amei e por esse amor me vi na ilusão de uma felicidade inexistente, pois amante e desamado, então preferi sofrer na solidão até que o sorriso chegasse ao meu coração.
Quando abri a panela e nada encontrei de comida, revirei a despensa e nada encontrei para matar a fome, então abri a porta para catar os grãos da sobrevivência.
Quando bati à porta e ela não se abriu e chamei à janela e ela continuou bem fechada, então sentei do lado de fora e esperei as coisas acontecerem.
Quando me tomaram as vestes e lanharam minha pele, depois me jogaram ao relento e ao frio, então simplesmente esperei o sol chegar.
Quando me forçaram a ir até a beira do abismo e lá me empurraram beiral abaixo, então eu abri minhas asas para voar.
Quando levantaram a arma e apontaram o cano sangrento em minha direção, então eu, mesmo de peito aberto, levantei meu escudo de proteção.
Quando soltaram palavras de aleivosia e sobre a minha pessoa lançaram as desonras do mundo, então eu silencie por saber de onde chegariam as respostas.
Quando me dizem que tudo é assim mesmo, que tudo deve assim acontecer, então simplesmente peço que leiam o Eclesiastes: nada é assim mesmo!
Quando aprendi que nada é assim mesmo, então me preparei para buscar o novo toda vez que o velho já não traga nenhuma transformação. E mudar sem medo. E nada temer.


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Lá no meu sertão...



GEANGELLA MARAVILHOSA! - Que bela fotografia como registro eterno de um instante maravilhoso. Das mãos de Geangella, eu recebo o CD contendo louvores e uma canção especial (letra de minha autoria e melodia dela) em homenagem ao nosso querido Padre Mário. Meu sorriso grande, largo, não nega o prazer por compartilhar este momento ao lado de uma pessoa terna, meiga, digna de todos os aplausos. Assim é você Geangella!




Amor romântico (Poesia)



Amor romântico


Quero te namorar
com amor romântico
como um recordar
cadeira na varanda
com pouco beijar
palavra tão pouca
sem nada confessar
mas dentro de nós
toda paixão que há
segredos guardados
para nos revelar
pois quem ama tanto
bem sabe esperar

mas é melhor assim
o começo não é pelo fim
o amor é paciente
e não vai se cansar
e depois da aliança
e do beijo no altar
todo tempo do mundo
para o amor amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - as vãs esperanças



*Rangel Alves da Costa


Lamentável dizer, mas as vãs esperanças pontuam os finais de ano. Todo final de ano, principalmente no período natalino e na proximidade da passagem de ano, as esperanças renascem como possibilidades reais. Todo mundo deseja o melhor a todo mundo, todo mundo se promete dias melhores, todo mundo parece pronto a viver noutro tempo de bonança. Contudo, basta dezembro chegar e todo mundo já está logo pedindo para o ano acabar, ir embora, desaparecer de vez, e que um novo ano surja bem melhor. E todo ano assim, ano após ano. Quer dizer, aquelas venturas, esperanças e promessas, parecem nunca vingar. Se realmente acontecessem, certamente ninguém pediria tanto que o ano logo terminasse. Mas o ano termina e chega um tempo novo. O nada acontecido de mês a mês, de passo a passo, é o que vai fazendo que novamente comecem a clamar pelo seu fim. Daí que já não peço mais nada, já não abraço ninguém desejando as maiores conquistas do mundo, vez que sei como tudo acontecesse. E o que sempre acontece é apenas o passo cansado pela estrada e a sorte de continuar existindo em meio a um mundo feroz e voraz.


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quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

A VAQUEIRAMA DA CASCA DE PAU



*Rangel Alves da Costa


A casca de pau é a bebida autenticamente sertaneja, também conhecida como raiz de pau ou cachaça da terra. É preparada a partir da cachaça limpa, de engenho, misturada com raízes, folhas ou cascas de árvores matutas, colhidas nos carrascais catingueiros.
A cachaça é despejada em litro e depois recebe a mistura escolhida: angico, cidreira, quebra-pedra, quixabeira, pimenta, ameixa, pitó, coentro, além de muitas outras misturas. A casca, folhas ou raízes, são tampadas com a cachaça e não dura muito para começar a receber uma coloração diferenciada, segundo a infusão feita.
É um verdadeiro sucesso no mundo-sertão. Sempre foi assim, desde os primeiros desbravamentos. Tida também como remédio (se tomada na medida), é bebida do homem da terra, do matuto, do caboclo, do sertanejo depois da lide de todo dia ou entremeando um afazer e outro.
Bebida de pé de balcão, de bar nas distâncias e botequim de ponta de rua, também de relevância garantida nas melhores e sortidas prateleiras. Quem vai beber uma cerveja, a entrada é logo uma casca de pau. E tem gente que prossegue na pinga mesmo, principalmente se for acompanhada de umbu, de pedaço de caju, uma fruta qualquer para tirar ou dar gosto.
É demasiadamente apreciada por vaqueiros, lavradores, agricultores, por pessoas de todos os níveis e quilates sociais. Mas sempre melhor servida e bebida se ao pé do balcão e derramando um tiquinho ao santo beberrão que vive oculto nos bares.
O sucesso é tão grande, que toda sexta-feira uma turma de jovens vaqueiros se dirigem ao Memorial Alcino Alves Costa, em Poço Redondo, no sertão sergipano, para apreciar sem pressa a quixabeira, a umburana, a cidreira, a cachaça da terra. E bebem muito, de secar litro e enveredar noutro sabor.
Como dito, toda sexta-feira (também dia de feira na cidade), já perto do meio-dia, e eles adentram o portão e seguem na direção de onde as garrafas estão colocadas. Na verdade, as bebidas do Memorial, e somente casca de pau, estão ali colocadas com objetivos outros que não apenas a de bebericar até dizer chega.
A cachaça ali existente, além de servir como aperitivo ao visitante, certamente que possui a intenção de mostrar o costume e o gosto sertanejo pela casca de pau. Como num autêntico botequim, as bebidas estão em prateleiras, com os nomes da casca, raiz ou folha, e ao dispor do visitante.
Contudo, os jovens vaqueiros de Poço Redondo vão até o local e até se esquecem de que o mundo existe. Chegam, andejam um pouco pelos espaços, depois passam os olhos pelo sortimento de bebida, pedem um prato para colocar a fruta da vez, em seguida lançam mão de um litro da cachaça escolhida e sentam à mesa.
Fazem assim pela acolhida que sempre têm e pela paz e tranquilidade que há no local, bem como gostam de estar ao lado da própria história sertaneja. Sentem-se em casa, como se diz. Sentem-se num ambiente onde podem conversar sem rodeios e dialogar sobre o mundo sertanejo onde labutam na vida de gado.
Conversam principalmente sobre vacas, bois, novilhas, vaqueiros e vaquejadas. Todos do metiê da vaquejada, da cavalgada, da cavalhada e da pega-de-boi brabo no mato, muitas vezes ali jogam suas alegrias e seus infortúnios. Também cuidam das secas, das chuvas, das lavouras, de assuntos cheirando a terra e curral.
E eu - que já não bebo nem cerveja sem álcool - ponho-me apenas a ouvir, fazendo uma pergunta de vez em quando, mas deixando fruir aquela sabedoria. E sempre aprendendo, sempre colhendo naquelas lições matutas, as motivações para muitos dos meus escritos.
E enquanto isso, mais uma dose de cidreira, de pimenta, de quixabeira, de capim santo. E assim a vida vai. E assim a vaqueirama entorna sua pinga com sabor do mais autêntico sertão.


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Lá no meu sertão...


Graças a Deus!



Imenso mar (Poesia)



Imenso mar


Ah esse mar
que imenso mar
em mim

um mar sem fim
luz de farol
azul jardim

eu navegante
em vela aberta
adiante

querendo cais
e do amor
seus ais

querendo amar
e navegar
no mar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - novo tempo



*Rangel Alves da Costa


Se eu adormecer, peço que me chame antes de a madrugada ir embora. Tenho muito a fazer. Preciso orar, preciso semear o grão, preciso limpar a poeira e jogar fora as coisas inservíveis ao viver. Preciso te amar ainda mais e reaprender a reconhecer erros e a pedir perdão. Preciso costurar a calça e pregar um botão da camisa que caiu. Preciso encher a moringa e aguar a plantinha de esperança. Quero dar vida nova às flores de plástico e beijar as fotografias esquecidas pelos cantos. Não, não quero dormir, mas seu adormecer me chame apara abrir a porta, para falar com o vizinho, para dar bom dia ao mundo. Os dias passaram e 2018 resta apenas num restinho de calendário. E pouco quero adormecer em 2019, por isso me chame antes de a madrugada ir embora. E se quiser levantar e caminhar comigo, então cuide com a chaleira no fogo. O tempo não espera não, a vida não espera não. E precisamos seguir. Sua mão na minha mão, dois num só coração, pois, como diz a canção: Por onde for quero ser seu par...


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quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

RIVALDO DE JANJÃO, O ÚLTIMO ABOIO DO VAQUEIRO



*Rangel Alves da Costa


Hoje, ao por do sol de 2018, numa quarta-feira entristecida, Poço Redondo se despede de um de seus maiores vaqueiros: Rivaldo de Janjão.
Homem da terra, cheirando a mato, de reconhecida dignidade sertaneja, caracterizou-se e sempre foi reconhecido pela sua vida voltada à vaqueirama, à vida de gado, fosse como vaqueiro ou como afoito corredor de boi valente no mato.
Rivaldo foi tido até como invencível na vida vaqueira, pois não havia boi brabo, bicho valente nos carrascais catingueiros, que ele não se desincumbisse da pega.
No seu famoso cavalo “Veadinho” ou mesmo no “Novo Brinco”, Rivaldo ajudou a escrever as mais belas páginas da cultura vaqueira de Poço Redondo.
A geração vaqueira da qual Rivaldo fez parte era espetacular e se equiparava aquela de Tião de Sinhá e Abdias. Assim surgia no cenário das caatingas com todo fulgor os nomes de Rivaldo de Janjão, Elias de Tonho Gervásio e Sebastião de Timbé.
Famoso vaqueiro da Queimada Grande, logo se tornou amigo fiel de outro grande vaqueiro, proprietário de terras e abnegado à vida de gado: José Ferreira Neto, o famoso Zé Ferreira de Major Izidoro, nas Alagoas, mas que abraçou Poço Redondo com seu imenso e generoso coração.
Rivaldo também vaquejou, ao lado de Elias de Tonho Gervásio, na Fazenda Cuiabá, na vizinha Canindé de São Francisco.
Conforme assinalou Alcino em seu livro “Vaqueiro, Cavalo e Boi”: “Rivaldo e Elias eram dois vaqueiros completos. Em cima de uma sela e enfiados nos carrascais mais brutos da mataria, eram verdadeiros campeões. Na ‘unha’ daqueles dois heróis, boi brabo da Cuiabá em vez de esturrar ‘piava fino’ – diziam orgulhosos os seus patrícios do antigo lugarzinho de Luís da Cupira. Os cavalos de campo de Rivaldo eram o Veadinho e o Novo Brinco e o de Elias era o Azulão, ambos vindos com eles de Poço Redondo... Perde-se o número de reses que Rivaldo e Elias pegaram nas carreiras desembestadas daqueles cerrados do bom-nome, do cipó de leite, da macambira e do croatá. A saga campeira desses dois heróis sertanejos está viva na mente de muitos dos que ainda resistem à ação demolidora do tempo”.
Quando ninguém conseguiu pegar o famoso boi Vaga-lume das caatingas da Fazenda Cuiabá, outro vaqueiro não foi pensado senão no filho de Seu Janjão. E Rivaldo desafamou o bicho de vez, pois bastou uma carreira e o bicho já estava enlaçado.
E já afastado da vida vaqueira, já lanhado de tempo e luta, Rivaldo era sempre avistado pelos arredores da Praça Eudócia (Praça do Redondo) ora sentado numa calçada, ora em breve proseado sertanejo.
Conversava pouco, pouco dizia sobre o que podia dizer no seu imenso livro sertanejo. Um livro de vaqueiramas, de aboios, de espinhos e pontas de paus sendo vencidos, de bichos brabos sendo derrubados.
Mas hoje Rivaldo deu seu último aboio e se despediu. Foi vaquejar nas estrelas, foi campear no firmamento, junto ao Pai Celestial.


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Lá no meu sertão...


Poço Redondo também é cinema!



Olhos de lua (Poesia)



Olhos de lua


A lua bonita
nem vi

estava pensando
em ti

o clarão da lua
eu vi

estava diante
de ti

teu olhos são de luar
eu vi

fulgurei de amor
eu senti.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - ao por do sol de 2018



*Rangel Alves da Costa


Tudo passa, tudo se vai, então que se vá 2018. Deixa saudades sim, pois muito consegui. Talvez também precise ser esquecido, pois muito sofri. Mas agora pouco ou quase a nada a fazer. Sentir o seu por do sol, o seu entardecer, as suas últimas chamas que já se escondem ao horizonte. Nem sorrir nem chorar, nem adeus de despedida nem lágrimas pela face. Os anos passam e são como o Eclesiastes. Novas páginas serão escritas, novas feições surgirão, em novos dias e novos tempos. Os planos são muitos, os desejos também, mas a certeza de que tudo acontece segundo a escrita da vida. Apenas esperar o melhor, mas também estar preparado para o que surgir. Enquanto isso, eu me ponho à janela dos dias que restam e fico apreciando os seus últimos clarões. Passa uma revoada, passa um passarinho, passa um avião, tudo passa. Passa o velho para o novo chegar. Então que venha com paz. Muita paz!


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terça-feira, 25 de dezembro de 2018

MUTUCA



*Rangel Alves da Costa


A mutuca, eita bicha maluca, com punhal futuca e até faz sangrar. Assim corria o dizer pelos sertões adentro, buscando contextualizar o poderio nefasto dessa mosca grande chamada mutuca.
Como dito, as mutucas são moscas grandes, próprias das matas, mas aparecendo também de vez em quando nas povoações interioranas. De olhos grandes, boca afiada, sua mordida causa uma dor terrível.
Ao entrar na mata e sentir uma picada medonha e dolorosa, Picada não, verdadeira punhalada, de dor queimosa e logo a marca na pele. O mais costumeiro mesmo é que depois surja logo o inchaço e o sangramento.
Dizem que fazem assim por que necessitam das proteínas do sangue para a produção de ovos. Somente as fêmeas tão esfomeadas pelo sangue humano. Muitas vezes, mesmo a roupa grossa não impede que a bicha morda sem dó.
A picada da mutuca pode causar um problema muito mais grave que o inchaço e o sangramento. Como ela também morde outros animais, possíveis doenças podem ser transmitidas acaso estes estejam infectados.
Como visto, a mutuca é bicho desarvorado demais, por isso mesmo evitado a todo custo. Do perigo que representa, logo se transformou em motejo por todo lugar do sertão. Os dizeres são muitos, e tudo nascido da sabedoria da terra para fazer analogia de sua picada perante muitas outras situações.
“Mutuca chupa sangue de bicho magro no sertão, mas nunca chegou nem perto do valente Lampião, que dava o troco numa mutucada de mosquetão que a mutuca sem vida logo caía ao chão”.
“A língua de Zeferina é mutuca da pior, pois fere e faz sangrar sem ter piedade e sem dó, ainda pro riba envenena de o cabra virar só pó”.
“Existe a mosca pequena e a mutuca de canhão, a mosca que até da pena e a mosca de supetão, uma pra gente acena e a outra chega em furacão”.
“Não tenho medo de cobra nem de feroz cascavel, não sinto gosto de sal nem o amargo do fel, mas Deus me livre encontrar uma mutuca ao léu. A dor é tão grande e tão feia e o sofrimento farnel”.
Além disso, em dizeres que vão da feira aos bancos de praças, logo a mutuca passa denominar um monte de coisas e situações. Sofre mais que dor de mutuca. Tem língua mais ferina que a da mutuca. O falso amigo é uma mutuca venenosa. Mulher safada é picada de mutuca.
O simples nome mutuca causa indescritível espanto. Quando o molecote gritou olha a mutuca, teve gente correndo, pulando, procurando por todo lugar a presença da desarvorada. Mas nem sempre assim.
Nem sempre assim por que tem gente que parece gostar. Passou uma mocinha e o mesmo molecote gritou “olhe a picada da mutuca”. Então ela, na maior cara de pau do mundo, simples disse: “Aonde? Eu quero, eu quero...”.


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Lá no meu sertão...


A bela Curralinho, povoação ribeirinha em Poço Redondo, no sertão sergipano





Amemos como devoção (Poesia)



Amemos como devoção


Amemos
amemos como uma oração
querer com fé e devoção
palavras ditas como sermão
rosário de amor pelas mãos
igreja fiel dentro do coração
e a sinceridade como religião

e teremos um céu em nós
e um paraíso tão sublime
que nada nos afastará
da salvação pelo amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – a arte e a vida



*Rangel Alves da Costa


Após os anos 40, Cândido Portinari, um dos maiores mestres da pintura brasileira, deu início a uma série de expressivas aquarelas que espelhavam a realidade social brasileira e, mais de perto, a nordestina. Exemplo disso, em 1944 surgiram as famosas e demasiadamente realistas telas denominadas “Os Retirantes”. Nestas, tão conhecidas, uma família pelas estradas áridas, secas e espinhentas, fugindo das aflições de um mundo de dor e sofrimento. Ante a fidelidade dos retratos pintados, sequer precisaria dizer mais alguma coisa. Ali a família fugindo da seca, tão esquelética e triste quanto o seu próprio mundo desfolhado e seco. Ali a família tendo que arribar de seu mundo e seguindo em desvalia pela incerteza das estradas. Ali o fiel retrato da desvalia nordestina ante a estiagem devoradora de tudo, lançando ao desalento vidas de todas as idades. O que se teme, com os avanços sempre inevitáveis das secas, é que tais pinturas sejam novamente retratadas em cenários melancolicamente vivos pelas estradas sertanejas. Famílias que partem, mundo que fica. E sem um olhar para trás. Não há mais lágrima. A estrada, apenas.


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segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

VI A LUA!



*Rangel Alves da Costa


Coisa mais besta, alguém poderia dizer. E ainda confirmar: Qualquer um pode avistar a lua na hora que desejar, basta que seja noite ou esteja escurecido e as nuvens permitam.
Mas creio que não seja assim não. E por diversos motivos. Os grandes centros urbanos acabaram com os firmamentos, as estrelas e as luas. Olha-se para o alto e quando muito se enxerga um avião com suas luzes.
As pessoas também perderam o romantismo, o olhar poético, as nostalgias e as sensibilidades. Atualmente, a maioria das pessoas sequer olha mais para o alto depois da boca da noite. Tanto faz que exista lua ou não.
No passado era bem diferente. Mocinhas se debruçavam nas janelas e faziam do luar espelho para os sonhos, desejos e fantasias. Tantas vezes choravam entremeadas de devaneios e amores não acontecidos. Era como se a lua fosse um livro aberto aos sentidos.
Lua mágica, fascinante, encantadora, misteriosa, enlouquecedora. Lua que vagueia na mente, que faz transtornar e padecer. Lua que irrompe os mais profundos da alma e torna o humano num frágil ser em busca de qualquer luz.
Ah, o lobo tem razão. Seu uivo ecoa sofrimento profundo. Sua solidão irrompe em grito alucinante no alto da estepe, nas alturas da montanha. Mas nada ao acaso. A lua sempre presente, sempre como moldura de fundo para esse instante de dor.
O louco também tem razão. Quando a lua grande, cheia, imensa, chega-lhe feito punhal de ponta afiada, então a insanidade alcança seu mais alto grau e outra coisa não quer fazer senão subir ao clarão da lua, abraçar a lua, amar a lua, entregar-se de corpo e alma àquele brilho devastador.
As marés, os mares e as águas, também têm razão. As calmarias se transformam em ondas, estas em furiosas procelas, e tudo ao redor vai sendo dizimado. E tudo por causa da força da lua, de sua misteriosa ação. Um manto que se derrama sobre as águas e nada mais será como antes a partir daí.
Contudo, tamanha força da lua parece não ser suficiente para continuar atraindo a atenção das pessoas ditas comuns. Sequer os poetas buscam inspiração na sua grande e na sua luz. Os enamorados já não fazem de sua auréola uma analogia da aliança que desejam ter.
Ou as pessoas dizem a si mesmas que já têm preocupações demais para se preocupar com a lua. E por isso mesmo não dão mais a mínima ao que acontece lá por cima. Não querem saber se a lua está brilhante, está cheia ou apenas entristecida. Apenas seguem seus caminhos noturnos.
E talvez tenha sido por isso mesmo que hoje eu até me espantei quando me vi voltado para a lua, admirando seu esplendor. Sim, eu vi a lua, eu olhei a lua, eu fiquei admirando a lua. E depois desse instante o mais inusitado. Perguntei-me o que poderia estar acontecendo comigo.
E assim o fiz pela indignação surgida. Que ser humano sou eu que já não tem mais tempo de olhar a lua, de se encantar com a beleza do luar? E então me prometi a fazer da lua de toda noite meu renascimento espiritual.
Uma humanização reencontrada através da lua. Tudo por que nesta noite eu vi a lua. E que bela lua eu vi!


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Lá no meu sertão...


Dona Conceição de Laura, a arte da renda de bilros em Poço Redondo, sertão sergipano





Menina, menina (Poesia)



Menina, menina

Entre terra e o ar
uma flor e um luar
e ela na estrada
a caminhar

menina, menina
teus sonhos e planos
teu caderno de lição
para os teus poucos anos
e logo uma imensidão

menina, menina
esta sede e esta fé
um querer como devoção
tornam a menina em mulher
com o mundo no seu coração

por isso ela caminha
como a flor e o luar
está aqui e além
o sonho a lhe guiar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – solidões



*Rangel Alves da Costa


Ouço ecoar a canção de Alceu Valença: “A solidão é fera, a solidão devora. É amiga das horas prima irmã do tempo. E faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração. A solidão dos astros. A solidão da lua. A solidão da noite. A solidão da rua...”. Solidões de sóis sertanejos por detrás das portas e janelas dos casebres tristes. Naquilo onde havia vidas e afazeres, nas malhadas onde havia bichos e correrias, nos quintais onde havia varais e canções, agora somente o silêncio desolador e as ausências sem despedidas. Solidões que avançam pelos caminhos empoeirados, que correm apressadas pelas veredas de espinhos ressequidos, que abrem cancelas e tomam como suas as vidas e os sonhos. E tudo fazem para que o homem e o bicho se prostrem por cima da terra seca à espera dos urubus, carcarás e gaviões. Solidão e solidões em tudo e por todo lugar. Na terra nua, na pedra esquecida no meio do tempo, no curral sem bicho e sem vida, na cancela que já não range mais, na porteira que silenciou o seu bater, na porta e na janela fechados, na vassoura esquecida num canto, no cesto de juntar palma cortada. Solidão tão minha, e como estou agora.


Escritor
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