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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

ESSES LADRÕEZINHOS



*Rangel Alves da Costa


Esses ladrõezinhos de meia pataca, uns zé-mané do mundo do crime. E tão medíocres e tão insignificantes no metiê da delinquência que nem valeriam flagrantes, prisões, inquéritos, instruções processuais, sentenciamento e pena. Toda uma máquina judiciária e judicial, policial e administrativa, voltada para a xepa da malandragem, para a ninharia da ilicitude. Mas tão peixes pequenos são que nem os milagres dos habeas corpus parecem lhes dar qualquer valia. Diferentemente ocorre com o criminoso graúdo. A concessão de sua liberdade já tem dias contados. É sempre uma estranha e misteriosa certeza no meio judicial.
Peixe grande deve ter tratamento diferenciado. Enjaular tubarão é coisa arriscada demais. Apenas de vez em quando um ou outro vai pra trás das grades. Mas quando cai na rede, logo os habeas corpus vão lhe retirar os anzóis, as tarrafas, as redes. O pequeno não. Deixam pra lá. Parece esquecido de vez. Importa mesmo prender. Para o peixe pequeno, a preocupação é manter aprisionado, e não libertado. E para tal há um esmero estatal refinado. E gastos sociais e financeiros de espantar.
A verdade é que o Estado se preocupa demais com o aprisionamento desses ladrõezinhos de meia-tigela, com o encarceramento da chamada escória social. Por outro lado, a sempre incompreendida concessão de liberdades aos poderosos do crime. Toda uma estrutura em vigilância contra os larápios de muquifo, contra os nadica de nada que nem sabem o que é verdadeiramente roubar. Ai se soubessem o que fazem alguns lá de cima e outros aqui de baixo. Certamente se espantariam e indagariam: “E eu é que sou ladrão?”.
Sim, vocês é que são os ladrões, ou melhor, uns ladrõezinhos de ruela e esgoto, de moeda e de vintém, de carteira vazia e de nota rasgada. Vocês são mesmo uns zé-mané, uns zé-ninguém, uns zé-ruela. Tanto tempo na estrada ou na tentativa de aprimoramento da esperteza e nunca passaram de uns malandros desencapados. Será que nunca aprenderam a verdadeiramente surrupiar, a botar a mão grande no que não lhes pertence? Parece que não. E por isso mesmo vivem tanto nas estatísticas policiais e na quantificação do assombroso sistema carcerário.
Além de ladrõezinhos baratos, uns desonestos consigo mesmos. Há desonestidade maior em aceitar ser processado como criminoso enquanto os verdadeiros ladrões ficam rindo não só de suas caras como da cara de todos? Acaso fossem mais honestos, logo diriam na primeira audiência: “Mais doutor, se roubar uma galinha é crime tão grave e até dá prisão, o que dizer então daqueles que roubam a nação?”. Ou assim: “Tá certo doutor, tá certo. Furtei mesmo um pacote de biscoito da mercearia e mereço apodrecer na penitenciária. Mas quantos eu vou encontrar por lá que roubaram muito mais do que eu?”.
Logo ouvirá da gravata falante: “Não importa. Aqui você responde pelo seu crime e não pelo crime dos outros. E você foi acusado de roubar uma saia do quintal alheio. Quem furta uma saia poderá muito bem roubar uma butique. E a saia até poderia ser usada como subterfúgio para uma prática criminosa bem maior. Quem sabe se vestido de mulher você não roubaria velhinhos indefesos, carentes e solitários, hein? Então deve mesmo apodrecer na prisão. Furtar saia ou calcinha de quintal deveria até mesmo dar prisão perpétua. E para um malfeitor tão perigoso quanto você a lei é implacável. Dura lex sed lex”.
Então, seus ladrõezinhos, tá bom assim? Os males do mundo sendo jogados em suas costas pelo fato de serem apenas uns ladrõezinhos baratos, de fim de feira. Acaso fossem dos pedestais sociais, das elites, do poder, da política e das largas e graúdas amizades, certamente poderiam roubar não só a butique como a rede de butiques. Iriam presos sim, vez que sempre há necessidade de dar uma satisfação à sociedade. Mas eis que logo viriam os remédios heroicos, os habeas corpus, as liminares, as fumaças do bom direito, a plausibilidade de danos irreparáveis, e então tudo passaria a ser resolvido em liberdade mesmo. Então, por que não dizem a verdade à gravata falante?
Não dizem por que vocês são a escória do crime, o lixo da ilicitude, o tanto faz da delinquência. Não dizem nada porque também sabem que de nada vai adiantar. Ora, antes mesmo de roubar ou furtar vocês já são criminosos. Vocês são negros, são pobres, são malvestidos, são moradores das periferias esburacadas e dos barracos caindo os pedaços. Sabiam a diferença que faz ser um ladrão da zona sul ou da zona nenhuma? Vocês já estão ferrados. Não precisa flagrância nem suposições, pois vocês estão sempre ferrados. Se honestos, trabalhadores, ainda assim estarão ferrados pela cor e pela classe social. E mais ferrados ainda se cometerem qualquer delito.
E novamente não se esqueçam de que vocês são apenas uns ladrõezinhos chinfrins. Na outra ponta estão os investigados, os acusados, os indiciados. Estão os peixes grandes, os tubarões do crime. Estão aqueles de bancas de advogados, de recursos e mais recursos, de liminares concedidas a qualquer momento. E o que lhes é concedido? A guia de encaminhamento para o sistema prisional.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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