*Rangel Alves da Costa
Dona Alice
Feitosa fazia sabão em pedra num fogão de lenha do quintal. Misturava sebo,
cinzas e outras essências da terra, mexia e remexia o tacho grande com um pano
amarrado na cabeça e o suor também virando sabão. E nas beiradas das fontes as
seriemas, as nambus e as codornas, saciavam suas sedes ao entardecer. Um tempo
de sertão ainda sertão...
Zé de Bela
era alfaiate sem igual, com cortes, costuras e recortes, aprimorados no sul e
trazidos para o seu ateliê num canto de casa humilde. Como um Clodovil sertanejo,
a sua moda era refinada e exigente, bem costurada e alinhavada, pronta para ir
aos salões, missas e procissões, da Festa de Agosto. E mais ao longe, pelas
paisagens mistas de verdor e acinzentado, a bela flor do mandacaru deitava ao
chão sertanejo o último respirar de sua beleza durada apenas uma noite, pois
dura apenas uma noite a linda e sublime flor do mandacaru. Um tempo de sertão
ainda sertão...
Maninho,
ora pois pois, era o chef mais famoso e requisitado do lugar. Vindo das
beiradas dor rio e depois alcançando larga experiência na gastronomia carioca,
trouxe na bagagem os melhores cozidos, as melhores massas, as comidas de nome
esquisito, mas de uma gostosura que só. Depois de preparados os pratos, e cheio
de trejeitos e euforias, assenhorava-se de um pé de balcão e mandava botar mais
uma. E de repente já estava dançando, dobrando os quartos, cantarolando um
velho e apaixonado bolero: “Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei
embora...”. E pelos arredores, quando o tempo dava para ser assim, as mulheres
na debulha do feijão de corda, os homens botando feijão pra secar, o milho seco
sendo ensacado. Um tempo de sertão ainda sertão...
Chegava o
tempo de festa e com a festa também o sapato novo pelas mãos do engraxate
Manezinho Tem-tem, o tripé de retrato de Seu João Retratista, o parque ecoando
no alto-falante O Milionário, de Os Incríveis. Tempo de festa também tempo de
pintar a casa, de comprar corte de pano e flores de plástico novas. Panelas e
louças lavadas nas águas do Tanque Velho, e depois os panos estendidos em
cadeiras para tomar sol por cima das calçadas. Mas as más línguas diziam que
era apenas para se amostrar. Eita povinho! Um tempo de sertão ainda sertão...
Delino
tinha banana, Zé de Iaiá tinha farinha, Mané Azedinho e Joãozinho de Neusa o
feijão. A cozinha sertaneja quase num lugar só, pois os vendeirim entrelaçados
na vizinhança. Um jogo de sinuca na mercearia de Ermerindo, e de vez em quando
também um encontro de repentistas. Um jogo de bilhar no salão de Angelino. Uma
cachaça da terra no Bar de Zé de Lola. E de repente o sertão inteiro se enchia
de graça com a forrozança que não faltava: Zé Aleixo, Dudu Ribeiro, Zé Goití,
Dida, Agenor da Barra. E o forró comia no centro e só parava quando João
Valentim virado em rato entrava pelos salões em fuzuê. E bem acima de todos
aquele sol maior do mundo sol e a lua mais bela da vida, os horizontes de seca
e de chuva, retratos tão sertanejos. Um tempo de sertão ainda sertão...
Maria do
Piau Duro aparecia na esquina com rodilha na cabeça e um cesto de peixe miúdo
salgado. Não dava pra quem queria. A bala de mel de Tonho Bioto era boa, mas
era perigoso de um vendedor estar sem juízo na hora da venda e jogar na cabeça
do comprador toda pirulitada. Mariá descambava pra beira do riacho com uma
trouxa de roupas na cabeça. Quem vai querer arroz-doce de Baíta? Eu quero. Eu
quero. Eu quero e não consigo afastar a saudade! Tudo num tempo diferenciado de
sertão. Um tempo de sertão ainda sertão...
Hoje as
memórias estão encharcadas nos lenços das saudades. Alguns ainda lacrimejam as
ausências e as distâncias, mas outros desejam apenas estender os lenços nos
varais e a tudo fazer esquecimento. E restará apenas um retrato na parede de
uma vida e de um tempo, de um povo e de seu fazer, nalgum sertão do passado.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com