SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 30 de abril de 2017

A BALEIA AZUL DOS GOVERNANTES


*Rangel Alves da Costa


A greve dessa última sexta-feira, mesmo não tendo sido uma explícita manifestação do descontentamento do povo ante as últimas medidas governamentais, e sim uma tentativa político-partidária, de viés esquerdista, para desqualificar o governante-mor e ao mesmo tempo fazer ressurgir o grito de uma oposição combalida pelos fatos, ao menos serviu para mostrar que parte da população continua acordada acima do berço esplêndido de alguns.
Os que saíram às ruas com seus gritos e bandeiras - e muitos destes como vorazes e fanatizados incendiários -, tomaram as vias públicas como se fugindo estivessem de um terrível monstro marinho. Como que escapando das procelas, dos dragões, das temeridades do mar, buscavam a todo custo alcançar a praia para a salvação. Ou seria com medo da tão propalada baleia azul? Aquela mesma deixando as redes sociais e avançando por terra para devorar todo mundo.
Não. A população que saiu às ruas e toda a população brasileira jamais deveriam temer os perigos trazidos pela baleia azul, pois com ela pactua através do voto. Aliás, a baleia azul do jogo virtual, ainda que provoque vítimas por onde avança, é muito menos perigosa que outro tipo de cetáceo de monstruosidade assustadora: a baleia azul dos governantes. Esta vem, desde muito tempo, avançando do mar planaltino e outros mares para impiedosamente dilacerar a população brasileira.
Sem atentar para o fato de que essa outra espécie de baleia é a que realmente vem destroçando a população brasileira, eis que de repente a sociedade se assusta, entra em polvorosa com o jogo mortal da baleia azul. Com efeito, essa praga tecnológica vem se disseminando pelo mundo inteiro e espalhando pânico entre as famílias, professores, psicólogos e tudo o mais. Tudo por causa dos efeitos nocivos que tal jogo vem provocando entre os jovens, com mutilações e até suicídios.
No entanto, o sinistro jogo já é um velho conhecido das famílias brasileiras. Não como o jogado pelas redes sociais, onde a cada participante são dadas tarefas a serem cumpridas e cada uma mais espantosa que a outra. Numa tarefa, o jogador tem que se autoflagelar para seguir adiante, na outra tem que se automutilar, para, enfim, receber a tarefa final: praticar suicídio. Muito parecido com o jogo que vem sendo desde muito imposto ao brasileiro.
Ora, não seria de se imaginar que a reforma da previdência é uma baleia azul imposta de goela abaixo pelo governo federal, aonde o trabalhador vai se mutilando, se flagelando aos poucos, para depois saber que talvez nunca se aposente? O trabalho de tantos anos e a desesperança de não poder aproveitar algum tempo de vida para descansar, não se tornam em verdadeiro suicídio? Eis o jogo: a pessoa trabalha e contribui, já cansada de tanto trabalhar para contribuir, ainda assim é exigido que envelheça perto da morte para se aposentar. Quanto o jogo termina a pessoa já se foi.
A reforma trabalhista não seria uma feroz e assassina baleia azul? Cogitando-se até mesmo com o fim da Justiça do Trabalho, refúgio último do trabalhador ante as explorações do empregador, é como se jogasse o hipossuficiente ao mar e diretamente na boca do monstro. Fragilizando e retirando direitos do trabalhador, terceirizando os sonhos e as esperanças de tantos, colocando os acordos entre as partes fortes e frágeis acima da lei trabalhista (CLT), enfraquecendo a sindicalização e organização coletiva, nada se faz além de engordar o monstro empresarial e enfraquecer ainda mais a já combalida e sempre desrespeitada classe trabalhadora.
A baleia azul brasileira jamais perdoou a população, principalmente a mais carente. Ao abrir sua boca, ao arreganhar seus dentes afiados, logo surgem aumentos de impostos, de tarifas de água e energia elétrica, de remédios, da cesta básica, de tudo. E de boca aberta está nas portas dos hospitais, nas filas desrespeitosas e no atendimento do serviço público, na crescente falta de segurança pública e no assustador aumento dos índices de criminalidade e violência. Que baleia mais voraz é essa que sequer dá um aumento digno de salário-mínimo, e o que dá logo retira através da diminuição do poder aquisitivo da população.
É esta, pois, a baleia azul dos governantes, a mesma - marcada na pele, mas nem sempre reconhecida por todos - que sempre esteve devastando a sociedade brasileira. Como no jogo mortal das redes sociais, age como num percurso de fragilização até chegar ao depauperamento total. Parece mesmo que a intenção governamental com suas políticas de fragilização social, de retirada de direitos e contumazes aumentos da carga tributária, é mesmo ir retirando o poder de sustentação vital de um povo. E muitas vezes provocando o extremo de pais de famílias e empresários tentarem contra a própria vida pela insustentabilidade da sobrevivência.
A baleia azul virtual pode ser combatida com a negativa do jogo. Mas o que fazer ante a baleia azul governamental? Também não mais jogar o jogo deles. Ou seja, dizer não aos monstros que surgem dos mares como salvadores da pátria.


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Lá no meu sertão...


O sertão é sentimento, é alegria na alma, é do espírito o contentamento...



Você tão besta (Poesia)


Você tão besta


Tudo parece tudo
porém nada é
veja a pedra
que virá pó
o fogo ardente
que vira cinzas
tudo na ilusão
de ser o tudo
em nada
nada

e você dourado
e você tão besta
e você esnobe
o que você
é mesmo?
lembrai então
da pedra
do fogo
das cinzas
do pó.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - a canção da pedra


*Rangel Alves da Costa


Tempo, tempo, que não venha o vento, que não venha a chuva, que não venha o musgo, a me devorar. Tempo, tempo, tão longa no tempo, tão distante na estrada, tão filha do tempo, longa caminhada. E no silêncio a noite, e no silêncio o dia, e no silêncio todo o tempo que o tempo tem. Tempo, tempo, quanto desprezo pela minha existência, como se tudo eu fosse e fosse nada. Tudo eu sou quando em cima de mim querem repousar, quando sobre em mim querem jogar o mundo, quando no meu leito querem chorar suas dores. Tempo, tempo, sei que tenho a palavra, sei que tenho o verbo, mas ninguém quer ouvir. Ouço vozes acima de mim, ao meu lado, mas sou silenciado quando quero falar. Ora, dizem que a pedra é nada, que a pedra é estorvo onde ela esteja. De repente lançam armas pontas nas minhas costas, então lanham, então quebram, então me dividem. E em silêncio continuo com a minha dor. Apenas uma pedra, apenas uma pedra. E um dia o profeta meditou sobre o mundo bem sobre os meus braços. Um dia um viajante parou para descansar e meditou sobre a vida e a morte. Eu quis falar, mas ele não quis ouvir. Ninguém fala com a pedra. Esquecem, contudo, que todos eles são mais pedras que eu, que são muito mais petrificados que eu. Esquecem eles que apenas viram pó, que somem de tudo. E eu, ainda que como pó seja levada ao vento, nas paredes do tempo abrirei meus braços para a eternidade, pois o homem vira pó, mas a pedra renasce pedra do próprio pó. E pó sobre pó, a petrificação, uma nova pedra.


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sábado, 29 de abril de 2017

A JUSTA GREVE E O DESPREZÍVEL VANDALISMO


*Rangel Alves da Costa


O direito de greve, dentro de seus limites legais, é previsão estabelecida constitucionalmente, sendo, portanto, imperativo. Como afirmado, em consonância com os ditames legais, a todos é garantido o direito à manifestação, à paralisação, à demonstração de suas indignações.
E nada mais justo que pessoas ou categorias, descontentes com determinadas situações, invoquem para si o direito de rebelar-se, de indignar-se, de gritar sua insatisfação. Soa até como grandeza social o despertar contra as injustiças, as arrogâncias governamentais, as medidas que acabam afetando a vida população em geral e da classe trabalhadora em particular.
Como bem afirmado por alguns, somente na pressão se muda a situação. Ou ainda para outros, mesmo que não surta o efeito desejado, ainda assim toda greve será válida à medida que chega ao destinatário os sinais da insatisfação. Mesmo que os governantes costumem menosprezar os resultados das greves, basta tal manifestação para que se saiba que os cintos apertaram de algum modo.
Noutros idos, principalmente quando as botinas dos generais eram ouvidas ao longe, fazer uma greve era o desejo de multidões. Contudo, havia sentido pátrio, invocação nacionalista, ufanismo de verdade. Por isso mesmo que os novos tempos trouxeram multidões acaloradas e ávidas por soltar a voz. E soltaram tanto que muito foi conseguido através dos gritos, das caras-pintadas e das bandeiras tomando as ruas.
Logicamente que muito contrastante com a maioria das greves de agora. Tanto assim que se utiliza o termo greve geral não para paralisar o país, mas para levar às ruas partidários, fanatizados, pessoas com único intento de fazer política através da bandeira do outro. Os sindicatos, antes tão fortes e unidos nas lutas em defesa das classes trabalhadoras, agora são apenas sucursais políticas de partidos já esgotados pela desonra.
Assim, quando há o chamado para uma greve geral, certamente que as intencionalidades não são apenas de luta contra determinadas situações, mas tão somente para que o partidarismo ganhe as ruas e façam reacender chamas já ofuscadas pelos acontecimentos. Tudo como uma tentativa de ressuscitar cadáveres insepultos ou trazer à boca do povo outros gritos que não aqueles ecoando os verdadeiros motivos da greve.
Mas greve é coisa séria, é oportunidade única para que o povo expresse sua insatisfação. Como acentua a doutrina, greve é a paralisação voluntária e continuada, ou não, do trabalho, sempre realizada em defesa de interesse da classe trabalhadora e geralmente organizada pelos sindicatos das categorias. Por sua vez, greve geral - como a ocorrida nesta sexta-feira 28/04 - é aquela promovida por uma ou todas as classes de trabalhadores do país, ou mesmo parte destas, de modo a somarem forças nos seus intentos de luta.
Como bem assinala a doutrina, a greve é uma forma de protesto do trabalhador e objetiva o atendimento de reivindicações. Perante tais considerações, então se indaga: a greve desta sexta-feira, cujas aglomerações eram mais de partidários políticos e até de pessoas pagas para estarem presentes, foi uma manifestação contra as reformas trabalhista, previdenciária e demais medidas impopulares do governo, ou apenas para desqualificar o governo vigente e fazer reacender a chama morta do petismo?
Sem medo de errar, afirma-se que a greve ocorrida teve a intenção unicamente partidária, não do partido do empregado, mas do partido político mesmo. E isto se comprova por alguns fatos. Impensável que a classe trabalhadora, responsável e coerente, saia às ruas para praticar vandalismos, saques, depredações de prédios públicos, destruição do patrimônio e violências de todos os tipos. Somente os fanatizados cometem tamanhas atrocidades, somente os esquerdopatas praticam tamanha barbárie contra o que encontrar pela frente.
Ou será que os incêndios, os fechamentos de vias públicas e rodovias, os estilhaçamentos vergonhosos, os vilipêndios praticados, foram realizados pela classe trabalhadora? Quem destrói o que encontrar pela frente, quem comete invasões a prédios e órgãos públicos, quem sai às ruas com armas escondidas, com máscaras encobrindo os rostos, com instrumentos de destruição de todos os tipos, certamente não é a classe trabalhadora.
Daí que, uma greve que bem poderia ter alcançado seus objetivos de luta das classes afetadas pelas recentes medidas governamentais, acabou sucumbindo ao vergonhoso e bárbaro partidarismo. Perdeu-se uma ótima oportunidade de mostrar força. Ganhou-se a mácula da serventia aos interesses abominavelmente escusos.


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Lá no meu sertão...


Ao entardecer, na terra sertaneja...




Canção cheia de saudade (Poesia)


Canção cheia de saudade


Ouço nas distâncias da tarde
uma canção cheia de saudade

ao pôr do sol me invade
uma canção cheia de saudade

a luz da lua em luminoso alarde
uma canção cheia de saudade

ai que canto em ferocidade
esta canção cheia de saudade

que me toma assim sem piedade
sentindo toda e tanta saudade

e na distante canção a verdade
saudade, saudade, saudade...


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - a greve de sexo no Cabaré Putiá


*Rangel Alves da Costa


Certa feita, lá pelos idos de antanho, um fato mais que inusitado aconteceu: uma greve de sexo no Cabaré Putiá. Tudo começou quando Zezim Quaresma quase dá cabo à vida da rapariga Norina Boca de Mel, e ali mesmo no cabaré. Apaixonado, mas sempre rejeitado pela famosa quenga, então o homem se embebedou lá fora e já chegou arrastando uma faca. Foi um deus nos acuda, com rapariga ora correndo ora desmaiando por todo lado. Não demorou muitos dias e um marido enganado entrou no antro da carne com revólver apontado na direção da esposa que de vez em quando chegava por ali às escondidas. Só não disparou porque o xibungo Rosa-Flor tomou-lhe a frente. Tomou-lhe a frente e disse: Mate-me e estará matando uma flor! Depois disso a velha cafetina resolveu tomar medidas mais que drásticas. Prontamente deu ordem para que suas meninas iniciassem uma greve de sexo e sem tempo para acabar. A partir daquele instante todas fecharam o tacho e não abriam as pernas pra ninguém. A safadeza só voltaria se os machos se comprometessem a desarmar na força todo aquele que ali chegasse ao menos aparentando estar armado. Compromisso firmado, daí em diante bastava que um chegasse com canivete e era logo retirado à força. Com o retorno da paz, o cheiro de sexo encardido se alastrou novamente e até a visitante noturna do enganado resolveu fixar ponto no cabaré.


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sexta-feira, 28 de abril de 2017

A CANÇÃO DE UM POVO


*Rangel Alves da Costa


Muita gente não consegue disfarçar a dor e o sofrimento. Entrega-se ao padecimento quando está triste, chora rios e mares quando vem a aflição. Contudo, pessoas existem que não deixam transparecer a agonia de jeito nenhum. Mesmo que sofram por dentro, externamente se mostram encorajadas e até festivas. Assim acontece com o povo africano, cujo sofrimento não consegue inibir seu canto e sua dança. E assim também no sertão, só que o canto sertanejo é de feição tristonha e coração apertado.
O sertão é verdadeiramente terra de contrastes, de contradições. E inexplicável, por vezes. Porém tudo compreensível para que assim aconteça. Diante das condições próprias do lugar, num misto de desolação e esperança, de secura e florada brotando nas cactáceas, também o sertanejo se ajusta ao instante, ainda que seja difícil entender porque o canto na boca quanto o olhar avista ao redor e só encontra tristeza.
Tantas vezes, com a panela vazia, com o pote já chegando ao barro do fundo, mesmo assim a guerreira sertaneja, de pano amarrado na cabeça e olhar tristonho, olha para o varal sem roupa e se põe a cantar:
“Quero uma ciranda sertaneja, quero cirandar no meu lugar. Já cirandei menina, já rodei debaixo do luar, e não é porque envelheci que vou deixar de cirandar. Traga uma lua pra mim, traga uma ciranda pra mim, hoje eu quero cirandar até o dia raiar...”.
Noutras vezes, talvez relembrando as histórias cangaceiras tão costumeiras por ali, fazendo moradia no sertão como o calango reinando por cima da terra quente, a velha senhora vai varrendo o chão de barro da casa de taipa e cantarolando:
“Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer o café, que o dia já vem raiando e a polícia já está de pé. Se eu soubesse que chorando empato a sua viagem, meus olhos eram dois rios que não lhe davam passagem. Cabelos pretos anelados, olhos castanhos delicados, quem não ama a cor morena morre cego e não vê nada. Acorda Maria Bonita...”.
Descalça, caçando araçá amarelinho pelos arredores, de modo a se dar o prazer de saborear uma doçura naquela vastidão tão hostil, a menina sertaneja, de vestido de chita e fita no cabelo, se imagina numa roda de brincadeira entre amigas e cantando:
“Atirei o pau no preá, mas o preá não morreu. Todo mundo se admirou do buraco que o preá se meteu... Se essa nuvem se essa nuvem fosse minha, eu mandava, eu mandava ela chover, uma chuva, uma chuva forte assim, pra salvar o sertão e também a mim... Sou sertanejinha, sou sim meu bem, sou de palha de milho, sou sim meu bem, tenho cabelo de trança, tenho sim meu bem, e não sou e não sou mais criança...”.
Mesmo com seca de mais de ano, com tudo acinzentado, devastado, com mandacarus e xiquexiques encurvados e entristecidos, gado caindo de fome e tanque sem uma gota d’água, ainda assim os sertanejos se encontram para aboiar suas desventuras ao pé do balcão. E ecoam um aboio dolente:
“Ê, ê, ê, gado ô, eiá...Vaqueiro que fui pelo mundo atrás da bicharada perdida, galopei a vida num segundo sem pensar em despedida, mas hoje já velho e cansado, sem quem me ouça aboiar, sou cavalo atrofiado sem poder mais galopar. É com o coração despedaçado que me despeço do cantar, só pedindo ao meu Senhor para o sertão nunca calar o verso matuto aboiador. Ê, ê, ê, gado ô, eiá...”.
E pelas estradas espinhentas, sob o sopro calorento das tardes, as velhas beatas seguem em procissão pedindo a intercessão divina diante de tanto padecimento. Carregando a imagem de São José, o protetor dos sertanejos, levantam as vozes melodiosas numa reza esperançosa:
“São José do sertanejo, São José de todo o sertão, olho pra cima e não vejo sinal de chuva e trovão. Salvai esse povo sofrido, fazei chover nesse chão, alegria do povo oprimido e fazendo crescer plantação. São José irmão do nordestino, tão bom pai do meu Senhor, dai graças ao nosso destino, livrai-nos da desgraça e da dor”.
E assim vão levando a vida, passando os dias, entre cantos e lamentos, sempre com os olhos voltados para o horizonte. Mas quando chove, quando a esperança vem dos céus com a molhação, o que se ouve então é uma orquestra subindo da terra, despontando dos escondidos, ganhando voz na mataria, no bicho ainda restante, no barro que se desfaz. Todo o sertão, numa só cantoria de todas as bocas, visíveis e invisíveis, sente tomado pela mais bela canção:
“Quanta beleza vem do céu, se vai nossa vida ao léu. É a nuvem carregada, molhando telhado e estrada, encharcando a terra seca, vida nova de invernada. Chuva que vem de Deus, para os seus e para os meus, para encher panela e pote, de tudo a melhor sorte. Então deixa chover, chuvarar, chuvarecer, então deixa pingar pro sertão todo molhar. Se ontem comi da pedra, amanhã do que plantar...”.
E assim até que o maestro sol novamente levante sua batuta e faça calar tão singela cantiga. E depois somente a cantoria da vida, o canto do dia a dia, diante dos mesmos temores pela seca que logo virá. Mas é preciso cantar, é preciso rezar, pois alguém poderá ouvir essa voz.


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Lá no meu sertão...


Rio São Francisco: Um Velho Chico tão velho e tão novo.




O tempo e o verbo (Poesia)


O tempo e o verbo


Que verbo conjugar
se o amor já foi embora
se o que foi tão presente
tem outro tempo agora

ser ou não ser
questão que me devora
um presente que passou
e foi conjugar lá fora

passado e presente
em tudo verbo de dor
não sei o que é gramática
se nada mais sei de amor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - as comadres


*Rangel Alves da Costa


Comadres até certo. Vizinhas até certo ponto. Amigas até certo ponto. Confidentes até certo. Fofoqueiras, sim. Mentirosas, sim. Mexeriqueiras, sim. Intriguentas, sim. Descaradas, sim. Desocupadas, sim. Assim são as comadres. Comadres sem batismo de ninguém, apenas pela força da expressão e na tentativa de fortalecer o vínculo da fofoquice, da aleivosia, do não ter o que fazer. Comadres que são vizinhas mesmo, que são conhecidas, que estão sempre presentes por todo lugar. Ora, uma boa fofoqueira não pode deixar passar nada em branco. Ademais, o que não encontra como verdade, inventa como mentira. Comadres derreadas nas janelas, paradas nas calçadas com vassouras à mão, destrinchando a vida dos outros por cima dos muros. Comadres que se esquecem dos afazeres do lar para esmiuçarem a vida do próximo. “Veja comadre, como aquela ali tá barrigudinha. Será?”. “Comadre, a amiga já soube da maior, pois saiba agora: Fulaninha deixou o marido. Não sei se é verdade, mas dizem que foi por causa de Zé Oião”. “Comadre, fia de Deus, estou sem acreditar. Me contaram em jura que a fia de Zé Lió embuchou e desembuchou adespois que o pai dixe que ou perdia o fio ou a porta de casa era a seuventia”. E assim vão as comadres nos seus ofícios injuriosos de todo dia e de toda hora do dia. Até o dia de uma já estar falando mal da outra e vice-versa. E de repente é uma chamando a outra de puta, de safada, de gaiteira. E a outra respondendo que não passa de uma zinha, de uma quenga xibiuzenta. E as vias de fato, as calçolas furadas à mostra, os cabelos puxados, duas balofas rolando pelo chão, em atracamento que nem trator desaparta.

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quinta-feira, 27 de abril de 2017

A IDADE DAS COISAS VELHAS


*Rangel Alves da Costa


Tudo é feito resto, escombro, algo imprestável. Mas quando não se pode jogar fora, então há que ser preservado no valor que possui. O problema é que a volatilidade da vida ou a dispersão que a tudo se dá, nem sempre permite, sob pena de ser chamado de ultrapassado, que haja valorização do antigo, das coisas velhas.
Coisas velhas que envelhecem apenas pela não preservação na memória ou no desejo de resguardar, pois tudo não possui apenas a idade do tempo que viveu no passado. Ou, de outro modo, o tempo que permaneceu com validade na existência. Ao menos assim deveria ser. E assim deveria ser por que nada morre se na memória permanece.
Contudo, não falo da velhice da idade, daquela imposta pelo calendário, pelos idos e acontecidos. Do mesmo modo, não falo da velhice do que era jovem ou do que simplesmente alcançou a última curva da estrada da vida.
A velhice, pois, abordada aqui, diz respeito a tudo aquilo que deixamos de lado simplesmente porque imaginamos que não tem mais valia, a tudo aquilo que preferimos não mais considerar com serventia alguma.
Para muitos, não tem mais valia alguma no mundo moderno acorrer ao quintal em busca de plantas medicinais, colocar um velho vinil numa vitrola mais velha ainda, ter em casa oratório ou mesmo acender uma vela para o diálogo espiritual.
Quanta velhice em ler a Bíblia, dialogar sobre os salmos e os caminhos dos evangelistas. O catecismo perdeu-se no tempo, a tabuada parece coisa do outro mundo. Aqueles cadernos grandes de caligrafia tornaram-se desconhecidos para a grande maioria dos jovens estudantes.
E por que acontece assim? Ora, a velhice, simplesmente a velhice. Basta a ideia de algo de uso comum em tempos passados para que os mais novos automaticamente façam a devida rejeição. E assim as coisas velhas, tão úteis e essenciais no saber e na praticidade da vida, acabam se tornando com as mesmas feições da velhice humana: incompreendida e esquecida.
Tal velhice é imposta pelo homem em atendimento aos apelos e exigências dos modismos da vida moderna. Expurga de si, faz vencer antecipadamente o prazo de validade e torna imprestável tudo aquilo que não corresponda ao novo. E muitas vezes sem proveito algum, pois apenas para corresponder ao que se sobressai no momento.
Lamentável que ocorra assim. O bom, o útil, o proveitoso, a lição, a sabedoria, mas de nenhum proveito porque o orgulho e a vaidade lhe impingiram o caráter negativo do envelhecimento. Assim, vão criando velhices até mesmo naquilo que continua usando ou fazendo - às escondidas -, e tão-somente para dar vazão aos prazeres e realidades que, na maioria das vezes, não são suas.
Uma velhice assim, considerada não pela idade e sim pelo esquecimento ou desvalorização, pode ser estendida a inúmeras situações pessoais e da vida. Pessoalmente porque de repente nos abandonamos um pouco, nos tornamos negligentes, deixamos de lado os cuidados tão considerados noutros momentos.
E nas situações de vida a velhice nos é mostrada a cada passo, em cada situação vivenciada. Para citar um exemplo, toda vez que alguém deixa de fazer alguma coisa correta porque se sente envergonhada, vez que teme ser chamada de cafona ou ultrapassada, aí estará uma terrível velhice.
Citando outro exemplo. Os simples cumprimentos, coisa como um bom dia ou boa tarde, ou mesmo aquela tradição de chamar os idosos por minha avó ou meu avô, quase não existem mais, foram expurgados das virtudes respeitosas simplesmente porque os jovens de hoje se sentem desobrigados aos bons costumes.
São fatos assim que remetem à velhice aqui abordada. Pelo mencionado acima, podemos conceituar esse tipo de velhice como o confronto não assumido do passado, de repente ignorado pelos mais jovens - e também pelos mais velhos - pelo fato de não pretenderem ser vistos como conservadores, retrógrados, com costumes desprezados pelos que estão ao redor.
Não sabem, contudo - ou sabem e se negam a admitir -, que as coisas velhas jamais deixarão de estar presentes no cotidiano de cada um. Ora, as lições são eternas, as sabedorias são calcadas nas pedras do tempo, todos os fundamentos do que se tem hoje por conhecimento possuem um longo caminho. Tudo velho, tudo antigo. E sempre atual.
Os modismos chegam arrogantemente, ameaçam, querem destruir conceitos a qualquer custo. Mas duvido que consigam afastar algumas coisas simples que se eternizam, assim como o livro “O Pequeno Príncipe”, um álbum de família, um brinquedo da infância.
Respeitando os costumes modernos e as propensões de vida abraçadas, ainda assim prego que não haverá demérito valorizar o antigo naquilo que a simplicidade e o romantismo do ser desejam ardorosamente. Chegar ao encontro levando à mão uma flor não é coisa do outro mundo; surpreender o outro com um versinho em bilhete também não.
E saber amar, um amor verdadeiro como antigamente, ao invés de ser um retorno ao passado é um renascimento daquilo que parece sepultado pelos apelos carnais dessa desrespeitosa e descomedida vida nova.


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Lá no meu sertão...


Por que penso tanto? Já falei demais... Hoje silencio em busca de paz.



Dos amorosos cadernos antigos (Poesia)


Dos amorosos cadernos antigos


Viver a vida com a felicidade
de amar e ser sempre amado
é fugir da noite para a claridade
é abraçar o amor e ser abraçado

mas ser feliz tem os seus segredos
mistérios tantos a serem revelados
na alma exílios de longos degredos
de amor e medo assim exasperados

resta viver então a paz encontrada
amor na medida que caiba no peito
buscar ser feliz e sorrir pela estrada
acrescendo o amor na força do leito.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - entre saudades e ventanias


*Rangel Alves da Costa


Existem instantes do dia que são moldados ao sofrimento, à tristeza, às saudades e recordações. Igualmente a feições do dia que são tomados de angústias, melancolias, dolorosos silêncios. Depois do entardecer, a chuva caindo sempre faz despertar sentimentos aflitivos e angustiantes. O próprio pôr do sol sempre se ilumina carregado de pincéis tormentosos. É que o espírito e alma de repente renascem passados, retratos, memórias, recordações. Do mesmo modo quando o sol já vai mudando de cor e seu vermelho-alaranjado vai formando retratos nos céus. São como velas acesas por um Deus que reabre os baús da memória. Perante as paisagens belas, apenas olhares entristecidos, corações pulsantes, folhagens que se desprendem dos galhos em leve adeus. E nas ventanias do entardecer, debaixo ou redor dos pés de paus de copas largas, em meio a zunidos da natureza, as lembranças presentes numa cadeira de balanço que apenas dança. Noutros tempos, nos idos da vida, ali repousava a velha senhora com suas lembranças. De seus olhos caíam lágrimas e de sua boca um silêncio trêmulo, muito mais forte que o grito. Mas nada mais resta senão a cadeira de balanço que se embala sozinha, entre saudades e ventanias. Nada mais resta senão as tardes com suas canções antigas, que chegam com as ventanias e vão sumindo com as últimas cinzas do sol.

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quarta-feira, 26 de abril de 2017

NOSSAS PERFEITAS IMPERFEIÇÕES


*Rangel Alves da Costa


Parece que nossos espelhos pouco ou quase enxergam ou fingem enxergar. Nossos sentimentos ainda vivem nas ilusões de quem somos muito além do que realmente somos. A verdade é que vivemos de fingimentos, de hipocrisias, de irrealidades. Somos os disfarces ocultando as verdades, somos apenas as aparências daquilo que verdadeiramente não somos.
Somos tão imperfeitos que não reconhecemos nossas imperfeições. Insistimos em aceitar o que não somos simplesmente para satisfazer os egoísmos, as vaidades, as soberbas, as pessoais arrogâncias. Não queremos o que realmente somos por medo de que a humildade passe a ideia de humildade e o humanismo passe a aparentar fragilidade. E então, longe as sensibilidades, os humanismos, os afetos e as simplicidades.
Em nós, assim tão humanos, o corpo sendo renegado pelo brilho da roupa que o reveste. Em nós, assim tão racionais, a irracionalidade de agir perante as conveniências e a impetuosidade de ser aquilo que não nos cabe ser. Em nós, assim tão presumidamente inteligentes, as reincidências em erros, os fazeres contraditórios ao próprio desejo da alma, os impulsos perante tudo aquilo que exige comedimento. O que somos, então, senão as mais perfeitas imperfeições?
Somente o próprio reconhecimento das imperfeições é que nos tornam aproximados da perfeição. Apenas aproximados. O restante é tudo imperfeito em nós. Queremos sonhar com o impossível e sempre desejamos tudo o que seja impossibilidade. E o possível é relegado pela facilidade. Assim em tudo e em todos. Erram os sábios e erram os filósofos, erram o rei e a plebe. Não há ninguém na face da terra que sequer se aproxime da perfeição. Todos nós erramos, todos nós agimos erroneamente, todos nós apenas buscamos errar menos.
Diante disso algumas lições. Não posso criticar um erro no próximo em nome de uma perfeição que sequer possuo. Não posso dizer que o outro fez assim quando deveria agir de outro modo, se eu mesmo duvido do acerto naquilo que faço. Imaginam que escrevo bem, corretamente, mas ledo engano de quem pensar assim. Gramaticalmente, minha grafia é cheia de imperfeições. E por que eu posso criticar o modo como algumas pessoas escrevem aqui nas redes sociais ou nos seus cadernos?
Criticar gratuitamente jamais. Nem posso nem devo. Ora, se eu tenho formação de nível superior e ainda assim escrevo errado, então por que cobrar correção linguística e gramatical em muitos que sequer concluíram outros níveis de ensino? Ademais, língua é liberdade, é pássaro, é voo. Escrevam certo ou errado, mas escrevam aquilo que lhes vem como certo. Assim por que muito comum que determinadas pessoas façam da fala ou da escrita uma manifestação de superioridade, como se os iletrados ou analfabetos forem pessoas menores ou devessem ser desrespeitadas pelo seu nível cultural ou educacional.
Não posso nem devo caçoar nem da fala nem do jeito de falar de ninguém. Há que se respeitar também a cultura e o linguajar de cada um. Basta que passe a ideia e ela seja entendida de algum modo, então a mensagem já terá alcançado seu objetivo. Igualmente serve para o seu time de futebol, sua roupa, a canção que gosta de ouvir e o tipo de vida que gosta de levar. Há, repito, que respeitar as liberdades. E pelo simples fato de que absolutamente ninguém é perfeito. Do contrário também a vida não teria valia alguma, pois a cada passo ela está nos ensinando a ser menos imperfeitos. Daí o valor da humildade.
Ser humilde ajuda em muito moldar as imperfeições. Quem preza pela humildade não se fere tanto ao ter que meditar e reconhecer seus erros. Ser humilde é dialogar com a realidade de modo a não se afastar do mundo real. E neste mundo reconhecer aquela antiga verdade dizendo que nada mais somos que a arrogante pedra que vai se tornar pó. E como pó esvoaçar para o sempre até mesmo as perfeições.


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Lá no meu sertão...


QUE MARAVILHA! Nosso amigo e conterrâneo ALAN LEITE, que finca moradia em Sítios Novos, enfim vai publicar seu tão esperado livro. Trata-se do romance “Gonçalo”, onde o autor exara com fertilidade sua robusta criatividade literária. O lançamento será realizado na noite deste sábado 29/04, a partir das 19:30h, no Espaço Drinks, em Sítios Novos. Todo o Poço Redondo está convidado. A população precisa prestigiar aqueles que tanto se esforçam para mostrar ao mundo a arte literária sertaneja.





Menino do mato (Poesia)


Menino do mato


Era uma vez um menino
que sumiu
se perdeu
era eu
era eu

menino danado de mundo
foi pro mato
e adormeceu
era eu
era eu

foi caçar passarinho
mas então
desapareceu
era eu
era eu

mas se perder pelo mato
foi o que o menino
escolheu
e eu
e eu

longe do mundo tão feio
quem a natureza
aqueceu
foi eu
foi eu

viver uma vida assim
aquele menino
escolheu
e eu
e eu.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – manual do beijo na boca


*Rangel Alves da Costa


Não é todo mundo que sabe beijar, eis a verdade. Tem gente que não sabe sequer o que é beijo. Pessoas o confundem ora com mordida ora com sucção, ora com fingimento ora com arrancar pedaço da boca. Muitos ainda pensam que beijar é só tocar o lábio no outro e pronto. Ou ainda molhar o lábio de cuspe e depois secar na outra pele. Ou ainda colocar a língua pra fora, coisa de palmo e meio, e depois fazer como faz o tamanduá catando formigo em buraco fundo. Mas nada disso é beijo. Eu também não sei beijar, diferente do que ocorre com a boca que sempre beijo. E por não saber beijar e tanto querer aprender, é que um dia inventei de escrever um Manuel do Beijo e o mesmo dizia, dentre tantas outras coisas, assim: 1. Beijar é suave poesia, nunca se esqueça disso. 2. Beijar é a confissão silenciosa entre duas bocas, através dos lábios. 3. Beijar é sentir uma flor na outra boca e a pétala no seu lábio. 4. Beijar é tocar a flor e sentir o perfume e a maciez de sua pétala. 5. Beijar é pássaro, é voo, é horizonte distante e tão perto, tudo alcançado pelos sentidos da alma. 6. Beijar é leve voo pela maciez de um algodão doce e viagem que se faz pelo leito de uma mansa nuvem. 7. Beijar é o olho que lentamente se fecha porque já encontrou a luz no caminho. 8. Beijar é apenas tocar e suavemente roçar a pele jasmim em pele carmim. 9. E sentir que da nuvem branda respinga uma gota de orvalho. 10. E na umidez tão serena dois pássaros que alçam voo. E voam. E voam. E voam...

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terça-feira, 25 de abril de 2017

SERTÃO MOLHADO


*Rangel Alves da Costa


Desde cedinho da Sexta-Feira Santa (e mesmo dias antes) que passou a chover no sertão sergipano, principalmente na região onde as estiagens já se demoram pra mais de quatro anos. Não significa dizer que as chuvas caídas coloquem um fim na secura da terra, mas que as plantas logo verdejarão e as paisagens trocarão a roupagem cinzenta por um esverdeado esperançoso.
Ao menos na cidade de Poço Redondo e arredores mais próximos, as chuvas que caem servem apenas para molhar a terra e não para encher tanques, barragens e açudes. As chuvas sequer são constantes, geralmente apenas chuviscos, faltando uma assiduidade que faça lembrar os tempos de invernada. Tempos estes onde o sertanejo se vê diante da iminência da aragem e da plantação.
Mas desde mais de quatro anos que não se fala em invernada pelos sertões sergipanos. A seca prolongada já foi até lembrada como uma das maiores da história. Com efeito, os campos ficaram completamente devastados, os rebanhos sumiram na magreza, os esqueletos de animais se avolumaram pelas malhadas e pastos esturricados. Tanques sem gota d’água, cactos definhados, escassez e absoluta falta de comida tanto para o homem como para o bicho.
Numa situação tal, qualquer nuvem carregada é logo tida como esperançosa. A cada alvorecer o sertanejo se põe a olhar os horizontes e nestes as barras avermelhadas prenunciando um tempo bom. Mas nada de nuvem chegar. E a cada ano de sofrimento maior a desvalia de um povo inteiro. Dificilmente se viu uma situação de penúria tal como esta que vem sendo amargada pelo já empobrecido homem.
Verdade que passou o Dia de São José e não choveu. Costuma-se acreditar que chovendo nesse dia haverá certeza de mais chuvaradas mais adiante. Planta-se para a colheita no São João e para a festança ao redor das fogueiras. E quando não chove também o esmorecimento no homem ávido por sulcar a terra para lançar sua semente boa.
Contudo, após o Dia de São José começou a serenar com mais frequência, a chuviscar bem mais que em meses e até anos seguidos. De vez em quando uma chuva mais forte, porém localizada e sem afastar do sofrimento o bicho sedento. Chuvinha pouca e sem juntar qualquer meio palmo de água no tanque. Já ao entardecer e o barro já se formou novamente.
Nos últimos dias, entretanto, as torneiras de riba se abriram mais. Ao invés do sol escaldante e do calorão de ferver asfalto, as nuvens chegaram e nublaram tudo. O sertanejo que esperava chuva forte, de correr por cima da terra, encher tanque e fazer enxurrada, teve de se contentar com o pingar miúdo, fino, sem força de juntar água. Um alento, apenas.
A serventia da pouca chuva de agora é somente para molhar a terra e diminuir o calor. A água juntada vai logo embora pela secura que forma barro no fundo do poço. No conhecimento matuto, chuva para juntar água e plantar só serve aquela que desce em trovoada e depois permanece caindo com mais vagar. A chuva forte serve ao tanque, ao barreiro, ao açude, enquanto a mais fina serve para molhar a terra até sua fundura.
Mas o sertão vem aos poucos se molhando. E terra molhada é sinal de que não demora muito e a planta retoma seu viço e sua cor, que o pé de pau logo vai se encher de folhagem novamente, que as plantas rasteiras e os capins logo terão vida nova. Mesmo sem água juntada, a fome do gado será logo diminuída pelos brotos que surgirão por cima da terra renascida.
De qualquer modo, a chuva ou chuvisco que de repente cai é sempre uma benção ao sertanejo. Não demora muito e pelas estradas e veredas sertões adentro, onde tudo estava morto ou esturricado de sol, o que se terá adiante será uma colcha de cores muito diferentes daqueles que o sertanejo tem se acostumado a presenciar. Corre-se o risco de as nuvens prenhes sumirem e tudo definhar novamente, mas no presente a esperança maior.
Um novo olhar do sertanejo perante o seu mundo já é reconhecido de passo a passo. Muitos já não suportavam mais a dor pelo sofrimento do seu bicho de cria. Já não havia mais a aquém correr senão às forças do alto. E bastou que serenasse um dia e no outro os pingos já começassem a cair com mais força que toda esperança foi renovada. E não haverá festa maior se de repente os trovões e os relâmpagos anunciarem a chegada das trovoadas.
Ainda não será tempo de juntar farta comida para o bicho, mas não demora muito e o animal vai ser avistado de cabeça baixa catando seu pão. A graça divina chegada ao sertão molhado, com a esperança de que as torneiras de riba se abram de vez para que o homem se ajoelhe somente perante Deus para agradecer, e não perante qualquer político para implorar um pão, uma cuia d’água.


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Lá no meu sertão...


E pelo sertão, mão na mão, ao lado de minha Myllinha eu vou...




Lenços estendidos em varais (Poesia)


Lenços estendidos em varais


Lenços estendidos nos varais
gotas caídas em tantos ais
um tempo de tristezas sem iguais
amar assim é sofrer demais

quero amar e não sofrer assim
de reinícios já pertos do fim
flores mortas num triste jardim
anjo sem asas aqui dentro de mim

estendo os lenços nos varais
chorar assim já não suporto mais
que o vento torne o negro em lilás
em flores novas que a brisa traz.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – o amor além do amor


*Rangel Alves da Costa


Existe sim o amor além do amor. E além do amor o amor sempre será um amor com muito mais amor. O amor mais forte que o próprio amor, muito mais amor que todo amor que existe, pois um amor ilimitado pelo próprio amor. Um amor que não se contenta em ser apenas amor. Um amor que sempre quer mais do que o amor já deu, pois em horizontes outros onde possa ser encontrado. Um amor assim é um amor imenso, um amor intenso que vai além da imensidão, vez que é amor mas é também a vida daquele que ama e de quem é amado. Um amor muito mais que namoro, que relação, que qualquer união. Um amor além da mão apertando a mão, além do beijo, além do abraço e do corpo a posse, além da palavra que diz o que quer, muito além do amor reconhecido em todos. Um amor que é tão amor e muito mais que amor, pois amor de um vivendo para o outro, amor de um cuidando do outro, amor de um sendo o próprio outro. Um amor que sendo namorado é o melhor amigo, que sendo companheiro é o fiel confidente, que sendo esposo é o próprio escudo. Um amor onde a cama é para repousar e o sexo é para namorar, como dois corpos que apenas se comungam num amor maior que vai além do quarto. Um amor que enxuga a lágrima nos olhos do outro, que sente a mesma tristeza no outro sentida, que semeia flores no mesmo jardim e colhe seus buquês para o amor sem fim. E juntinho em abraço apertado nada precisa dizer, pois o outro sente o que o olho diz, o que o corpo expressa e o que é a paz.


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segunda-feira, 24 de abril de 2017

COMO ACENDER A LUA


*Rangel Alves da Costa


Sem o sol ainda é possível viver, mas sem a lua não, já disse o velho pensador. Já o sábio explanou em poucas palavras: sem a lua não haveria inspiração, e sem a inspiração apenas o homem na sua insensibilidade. O poeta faz da lua seu caderno e sua escrita.
Mas de repente a lua some. A lua daqui ou do Japão simplesmente desaparece, de Poço Redondo ou do Tibete. Não houve eclipse, não houve nenhum fenômeno que servisse de explicação. Os olhos ávidos se lançam aos céus, as pessoas catam suas fagulhas como se necessitassem de qualquer luz.
O menino chorou por que não pôde sair pra brincar. Estava tudo escuro demais. O noctívago entristeceu por que não sabe vagar sem ser debaixo da luz do luar. As janelas e as portas ficaram fechadas. Não havia cadeiras nas calçadas nem enamorados passeando de braços dados. A lua é tudo.
A lua é tudo mesmo. Lua dos amantes, lua dos solitários, lua dos loucos, lua dos lobos, lua dos apaixonados, lua dos poetas. Quando desce depois que o sol se foi, sua luz parece transmudar toda a feição do mundo. Não mais o calor do dia, mas a serenidade pulsante da noite.
Ora, se o mar fica tão entristecido quando numa noite apenas o farol não é aceso para iluminar suas vagas, que se imagine o mundo inteiro sem lua. Se os habitantes das matas ficam tão lamentosos quando os vaga-lumes deixam de piscar em determinados instantes, que se imagine a total ausência da luz do luar.
Os lobos só comprazem uivar nas montanhas se acima de sua solidão houver testemunho da lua. Os labirintos perdem a graça do medo na completa escuridão. Os humanos não podem se transformar em lobisomens sem a energia mutante daquela única claridade. Não tem qualquer sentido os espaços tomados apenas pelo negrume, pelo breu, pela escuridão.
Não tem graça a noite de lua nova. Nesta fase da lua, quase nada dela se avista, apenas com uma mínima porção visível. Entristecimento também quando ela se faz minguante e vai perdendo sua cor, sendo tomada de escuridão. Um céu sem a chama que tanto atrai e absorve.
Igualmente entristecedor quando a noite é de apenas de nuvens escurecidas no céu e a lua não encontra qualquer espaço para brilhar. Nos escondidos, apenas o desejo de sua luz. Nas noites chuvas então surge uma melancolia terrível. Além das saudades e nostalgias, a pergunta que sempre surge: cadê a lua?
Cadê a lua? Que situação mais terrível uma noite sem luar, um noturno sem a poesia daquele brilho, janelas sem mocinhas sonhadoras mirando o alto, frestas sem clarões, loucos sem ter por quem se apaixonar, horizontes sem aquela luminosidade de espírito e alma.
Cadê a lua? Eu quero a lua, diz o louco em cima da pedra, querendo voar, querendo ir buscar o seu brilho. Cadê a lua? Preciso do semblante iluminado do meu príncipe encantado, diz a mocinha entristecida pelo negrume. Nada o olhar avista além do que está adiante. Falta-lhe o norte enluarado.
Mas se a lua sumiu, então como acender a lua? Não será necessário fazer escada bem alta, de uma altura tão grande que alcance os espaços mais distantes. Não será necessário pedir auxílio ao faroleiro nem ao vivente do alto da montanha. Não será necessário enviar um foguete com palito de fósforo aceso na ponta. Não será preciso nada disso.
Basta perguntar ao cego como acender a lua. O cego sabe. E talvez somente o cego saiba como trazer luz, ânimo e vida, ao que de repente se apagou. E o cego sabe como acender a lua por que ele, vivendo na escuridão, acende a sua luz a todo distante que desejar.
A noite do cego é terrível, pois duradoura demais para um ser vivente. Não há luz elétrica, lanterna, lua, vaga-lume, candeeiro, nada que esteja ao seu alcance quando deseje sair dessa terrível noite. Mas encontra luz de maior claridade que muitas pessoas de olhos bem vivos.
Acende sua lua toda vez que faz de sua cegueira a luz que deseja ter. Ao imaginar que há outra cor além daquela escuridão no olhar, então avista luas, arco-íris, sóis, estrelas, belíssimas paisagens. Por isso que será preciso perguntar ao cego como acender a luz.
E o cego dirá: Estou vendo a lua. Encontre você mesmo a claridade que tanto deseja.


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Lá no meu sertão...


Caminhos sertanejos...





Tanto mel e tanto fel (Poesia)


Tanto mel e tanto fel


Tanto açúcar e tanto mel
ai como é doce amar...

tanto veneno e tanto fel
ai como amarga amar...

quero um pedaço de céu
insisto em querer amar

e deixo o veneno ao léu
para minha vida adoçar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – louco de saudade


*Rangel Alves da Costa


Ainda ontem eu estava na sua presença. Ainda ontem eu a toquei. Ainda ontem eu a acariciei. Ainda ontem a beijei. Ainda ontem a chamei de linda, de minha bela mulher, de meu amor. Ainda ontem tudo isso. Mas hoje já estou com saudade. Não uma saudade vã, qualquer, que chega e que passa. Não uma saudade de instantes, de fotografias de momentos, de memórias boas e cativantes. Mas louco de saudade. Louco de saudade mesmo. Bastou já estar alguns quilômetros distante, e é como se tudo estivesse longe demais e eu tanto precisasse de estar novamente ao seu lado. Preciso mesmo, quero mesmo, estar juntinho a ela, beijando, abraçando, amando, adorando-a como uma deusa maior de um coração imenso de felicidade. Mas estou aqui e ela noutro lugar. Também não importa se ela sinta a mesma saudade ou não, se ela sequer pense em mim. Importa mesmo é que a amo, amo muito, amo demais, e já estou louco de saudade. Talvez hoje à noite eu atire uma pedra na lua e ela caia junto à sua janela com a minha face de tanta saudade.

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domingo, 23 de abril de 2017

A BARRAGEM QUE NUNCA SECA


*Rangel Alves da Costa


Existem barragens, tanques e açudes, que nunca secam. Por estarem localizados em regiões chuvosas ou recebendo água de outros leitos, sempre são avistados cheios. Não há mudança climática ou estação que os faça esvaziar de formar barro no fundo. Situação muito diferente da ocorrida na região nordestina, principalmente no contexto sertanejo do polígono das secas.
Pelos sertões, o sempre costumeiro são as fontes com pouca água ou totalmente vazias, secas, na lama. Como as cheias dependem das chuvas, e estas nem sempre caem em quantidade suficiente para escorrer e juntar líquido nos açudes, tanques e barragens, a visão mais comum é da falta d’água por todo lugar. Falta d’água para o bicho, o homem, o peixe. Quando muito, apenas um restante lamacento que vai se tornando barro a cada dia de sol mais forte.
Sem que haja canalização diretamente dos rios ou dos serviços de abastecimento, é quase impossível que algum reservatório se mantenha cheio por muito tempo na região sertaneja. E causa estranheza – senão suspeita – toda vez que um tanque ou barragem seja sempre encontrado volumoso, com água garantida para os que dela dependam na sobrevivência. Então logo se diz que foi construído por cima de um minadouro ou que algum encanamento faça o trabalho das chuvas.
Contudo, desafiando toda a lógica do meio árido e geralmente seco, há uma barragem no sertão sergipano que sempre é avistada larga, grande, cheia, volumosa de canto a outro. Mesmo estando localizada na região mais seca do estado, onde as estiagens costumam durar três a quatro anos seguidos, e onde os demais reservatórios de água comumente são avistados em barro petrificado, ali a situação é espantosamente diferente. Para muitos leigos, talvez um mistério não revelado da natureza.
Localizada ao lado da povoação de Sítios Novos, no município de Poço Redondo, distante cerca de quinze quilômetros da sede municipal, a barragem é conhecida por jamais secar, mesmo nos períodos mais secos na região. Ano após ano, mesmo que tudo ao redor esteja cinzento e esturricado, que não reste mais nenhum pingo d’água nos reservatórios sertanejos, ali nunca se modifica: água em abundância, profunda, para o banho e para a coleta, para a criação de peixes e até para servir como lar de graças brancas e outros avoantes que por ali costumam ser avistados.
Em meio à sequidão sertaneja, ao barro rachado no fundo dos tanques, encontrar uma barragem que nunca seca é algo realmente espantoso. Ao indagar sobre as possíveis causas dessa permanência de águas, as explicações são as mais diversas e contrastantes possíveis, mas nenhuma que diga que aquelas águas são realmente de chuva, ou das chuvas passadas que ali acumularam em grande quantidade.
Ora, se fosse pelas chuvas passadas, logicamente que os demais reservatórios da região se manteriam do mesmo jeito, mesmo que alguns tanques e barragens possuam menor possibilidade de sustentação das águas acumuladas. Mas enquanto as outras já se tornaram de barro nos fundos, aquela barragem continuam sempre pujante, viva, cheia. Uns dizem que é por causa das águas que escorrem das residências e ali ficam depositadas. Outros dizem que ela surgiu por cima de um minadouro que nunca deixa de verter. Já outros dizem apenas ser um mistério inexplicável.
A verdade é que a barragem continua cheia mesmo no atual período de seca grande e duradoura. Quem passa pela rodovia ao lado, não raro pode avistar atém mesmo carros-pipa fazendo coleta de água. E também as garças brancas por cima das pedras grandes ao meio. E dentre os mistérios há ainda um que de vez em quando é relembrado. E este diz respeito a um monstro que é avistado emergindo das águas no breu da noite ou mesmo debaixo da lua grande. Assim como um monstro no Lago Ness sertanejo.
Como ali é residência desse monstro, então a barragem nunca pode secar. Por isso mesmo que toda noite seres encantados trazem torneiras enormes para despejar mais água. Mais e mais, de modo que nunca seque e deixe o monstro à mostra ou correndo risco de morte. As lendas, contudo, não desmitificam a verdade: a barragem continua cheia perante os olhos de todos. Tudo seco e rachado pelo sertão. Mas ela continua cheia.


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Lá no meu sertão...


Em Poço Redondo, sertão sergipano, no Memorial Alcino Alves Costa.






A lua, as estrelas e o meu amor (Poesia)


A lua, as estrelas e o meu amor


Não quero a lua
não quero estrelas
queria apenas
o meu amor

o meu amor
ilumina a noite
faz brilhar o céu
é lua e estrelas

e se não vem
o meu amor
toda lua é noite
toda estrela apaga.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – ama-me


*Rangel Alves da Costa


Ama-me... e abro a janela e sou feliz logo ao amanhecer. Ama-me... e sorrio para a árvore, para o pássaro, para a ventania, para o cão esquelético. Ama-me... e beijo a brisa e beijo o vento. Ama-me... e canto a canção antiga, a nova canção, qualquer canção. Ama-me... e já não entristeço, já não choro, não lacrimejo, não maldigo a vida. Ama-me... e já terei a palavra, já terei a atenção, já serei um amigo, de braço estendido estarei. Ama-me... e meus olhos brilham, meu semblante prazerosamente enrubesce, minha vida é outro viver. Ama-me... e já não sou aquele de janela fechada, de porta fechada, deitado em lençóis, caminhando sozinho, cabisbaixo e inerte. Ama-me... e serei criança, menino malino, infante brincalhão, traquina de esquina. Ama-me... preciso que me ame. Nada na vida traz tanto prazer, tanta felicidade, tanto contentamento. Ama-me. Abraça-me. Beija-me. Tenha-me. Nada sou sem o teu amor. Ama-me... não sou nada sem o teu amor, nada sou sem esse amar tão em necessário em mim. Ama-me... por que o a noite cai, a lua vem, a canção chama ao afago. Ama-me... por e com todo amor, ama-me. E para o sempre: ama-me!

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sábado, 22 de abril de 2017

PARENTES DE SANGUE


*Rangel Alves da Costa


Parente matando parente, sobrinho matando tio, irmão levantando arma pra irmão, famílias em pé de guerra. Então, se indaga: Mas não são parentes, não só todos de uma só família, ainda que de troncos diferenciados e até distantes, e por que agem assim como cobras ruins, como inimigos ferozes, com um matando ou mandando matar o outro? Muitas respostas, mas sempre emerge em primeiro a estranheza de por que assim acontecer e de forma tão medonha e violenta.
Numa das respostas, tem-se que tudo está no sangue. Os ódios, as violências, as brutalidades, a cegueiras, a voracidade, tudo está no sangue. Sangue ruim, queimado, venenoso, que não pode sentir faísca que incendeia. Noutra resposta, pode-se afirmar que tudo está no temperamento brutal que está além do sangue e vai se firmando como comportamento odioso, selvagem, impetuoso. Contudo, nenhuma resposta seria satisfatória para o fato de a brutalidade e a violência serem praticadas entre os próprios parentes, com um matando ou querer matar o outro.
Acaso fosse o sangue fervendo instintivamente, de forma hereditária, a propensão à violência seria contra qualquer um, fosse com parentesco ou não. Acaso fosse o temperamento igualmente flamejante, de modo a formar um caráter bestial, a violência seria também contra qualquer um. Contudo, o que se trata aqui é da propensão de parentes se destruírem uns aos outros como numa guerra sem fim e contra inimigos que gestaram no sangue os mesmos motivos: o ódio.
A verdade é que a consanguinidade gera um parentesco de sangue. Parente consanguíneo, pois, diz respeito a pessoas ligadas pelo vínculo hereditário, de sangue. Quer dizer, pelo vínculo biológico que dá origem ao parentesco natural, gerando troncos familiares comuns e descendências, desde as primeiras raízes.
O parentesco é, assim, a relação existente que se forma entre pessoas não só da mesma raiz familiar como daquelas passam a fazer parte das famílias, como os esposos e as esposas, e por aí vai. Presume-se, neste vínculo, uma relação de amizade, de afetividade, companheirismo, principalmente considerando-se que juntos e unidos fortalecem o clã familiar. Mas nem sempre assim acontece.
Afirmou-se acima que é o ódio gestado entre parentes que leva a rios de sangue a partir do próprio sangue familiar. Mas por que tanto ódio é criado entre os parentes, de modo que vivam se engalfinhando, tocaiando um ao outro, emboscando um ao outro, matando ou mandando derrubar aquele de próprio sobrenome, tronco ou raiz familiar? Ou indagando de outro modo: Por que as aversões e as animosidades se tornam tão ferrenhas entre aqueles que deveriam permanecer sempre unidos e prontos para o enfrentamento de possíveis inimigos externos?
As desavenças por terras são as mais costumeiras entre os integrantes das próprias famílias. Situações como ciúmes, heranças mal resolvidas, partilhas desacertadas, espertezas entre parentes, tudo isso pode se tornar em fagulha e braseiro. Irmãos acusam irmãos de fazer a cerca além do limite certo, parentes acusam parentes de transferir para o outro lado ou dar sumiço em cabeças de gado, familiares se acusam mutuamente de estarem praticando esbulhos, ameaças e roubalheiras. Tudo isso é como graveto perto do fogo. Não demora muito e a bala começa a zunir, a comer no centro.
As inimizades políticas também geram brigas que parecem intermináveis. Quando familiares se desapartam e vão formando clãs poderosos, com núcleos como se fossem únicos e sobrepondo-se aos demais, então o vespeiro começa a se formar. Quer dizer, dentro de uma mesma matriz familiar, diversos núcleos de poder vão sendo gerados pelo próprio poder do latifúndio, do dinheiro, da política. E como todos querem ser os mais respeitados, mais importantes e poderosos, o que se tem então é uma guerra formada entre os parentes. E quando um acaba afrontando ou confrontando o outro, então todos começam a pegar em armas para as vinditas de sangue. Em tal contexto, muito utilizada é a figura do matador de aluguel para agir em nome de poderoso mandante.
Contudo, as famílias não precisam ser nem ricas nem poderosas para viverem em permanente estado de guerra. Os ódios e as intrigas não exigem condição social ou qualquer tipo de poder. Basta que um parente ataque o outro e então os partidos começam a ser tomados e as trincheiras guarnecidas de lado a lado. E não há muita escolha nessa guerra, pois cada um parente pode pagar pelo outro. Tudo vai gerando uma violência tão cega que ao invés de um sobrinho chegar para dar a benção a um tio, o que lhe estende é a arma já cuspindo fogo. E quando as vinganças começam, então é de nunca parar. Assim é que vinganças antigas ainda hoje continuam fazendo vítimas.
Assim os parentes e os parentescos de sangue. É muito mais fácil um estranho sair com vida em meio a essa guerra do que um parente quando marcado para morrer pelo outro. E nada antigo não, nada dos tempos das barbáries coronelistas não. Ainda hoje continua assim. Por trás de potentes raízes e troncos familiares há um filete de sangue que não para de escorrer.


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