ALMA MINHA, AMOR MEU...
Rangel Alves da Costa*
Segundo o espiritismo, as almas viventes de um dia eternizam-se para cumprir seus anseios e objetivos terrenos. E lembro bem que em todas as vidas que vivi, por não poder te encontrar nos meus outros instantes de vida, sempre me deram a certeza de que um dia te encontraria como já estava escrito, e te amaria como estava destinado a amar e assim retornaria feliz, até ser chamado novamente à vida para viver o mesmo imenso amor, nós dois em outras encarnações.
Renasci novamente numa pessoa como sempre fui, triste e solitário, porém cumprindo na terra o destino das pessoas escolhidas para se entregarem de corpo e alma às ações dignificantes, de modo que no julgamento de sempre não fosse sentenciado pela pena da omissão, do semear discórdia e do pecado em si mesmo. Por isso renasci também com o coração dos humildes, dos doadores, dos crentes na bondade dos homens e dos amantes. Com o coração dos amantes sim, e porque tenho um destino de amor a ser cumprido ao lado de alguém que já deveria, há muito tempo, desde outras vidas, ter compartilhado a sorte dos que se entregam por um querer comum.
O meu amor também renasceu para cumprir o doce e suave fadário de encontrar o seu verdadeiro amor. Em outras vidas, em outros e outros corpos, também experimentou amar, vivenciou o convívio amoroso, mas não amou como verdadeiramente deveria. E foi assim porque o seu amor verdadeiro era outro, separado que esteve daqueles momentos pelas circunstâncias impostas. E não poderia ser diferente, pois o ser com a expressão maior de querer, de sentir, de se entregar ao outro verdadeiro, sempre foi preservado para esse encontro de agora, para hoje em dia, para essa realidade em que vivemos. Fomos colocados, pois, no mesmo instante e na mesma idade da vida para que cumpríssemos o que secularmente nos foi destinado, que é a união como almas gêmeas que se amam. É este o nosso momento...
Você passou e eu te olhei e eu te quis e te amei, não por um acaso; não porque as pessoas se encontram e um fica desejando o outro. Não. Esse olhar, esse querer e esse amar estava apenas sendo despertado da distância adormecida do tempo, porque eu já te conhecia, eu já me apaixonei por você um dia – mesmo sem a presença ideal - e jurei eternamente que um dia seria minha para sempre. Como vê agora, muitas vidas tivemos que viver para que se cumprisse o que secularmente já havia sido escrito nas estrelas: haverá uma vida em que essas duas vidas enfim se reencontrará para formar uma só vida!
Não estamos fazendo nada de novo, meu amor. O amor é novo e é imenso porque foi se depurando com o tempo, para nos chegar com essa feição de descoberta mágica que temos agora. É novo porque nossas outras vidas repassaram para o instante em que vivemos somente aquilo que merece ser vivenciado no amor, que é aquela ideia que nos vem à mente e diz que parece que fomos feitos um para o outro. Mas já havíamos sido feitos assim, um para o outro, só que nunca conseguimos realmente nos encontrar para confirmar a certeza de que nossos espíritos estiveram sempre pairando sobre todas as forças para possibilitar esse instante na imensidão infinita da vida.
Estamos na presença do nosso instante, estamos diante do momento em que, enfim, teremos que nos encontrar por um acaso e, a partir de um olhar em meio à multidão talvez, tenhamos a certeza e consciência de que nunca nos sentimos tão atraídos, desejados e carentes um do outro, porque não seremos nós que estaremos agindo e querendo, mas sim o destino desse imortal se confirmando, que é o amor. Por isso olhe para mim, minha alma amada de sempre, meu amor de eternamente agora...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...
A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.
sexta-feira, 30 de abril de 2010
Deuses do amor (Poesia)
Deuses do amor
Deus meu
Deus teu
todas as forças
a abençoar duas vidas
e dois seres
de vidas divididas
porque a discórdia
que é a deusa da separação
transformou o amor
que era tudo
em algo chamado paixão
e não há mais divindade
que retire e distancie
essa ilusão do coração
até que se confirme
com a deusa injusta da dor
que esse sim é um não.
Rangel Alves da Costa
Deus meu
Deus teu
todas as forças
a abençoar duas vidas
e dois seres
de vidas divididas
porque a discórdia
que é a deusa da separação
transformou o amor
que era tudo
em algo chamado paixão
e não há mais divindade
que retire e distancie
essa ilusão do coração
até que se confirme
com a deusa injusta da dor
que esse sim é um não.
Rangel Alves da Costa
SER SERTÃO: DA ARTE DE NAMORAR – I
SER SERTÃO: DA ARTE DE NAMORAR – I
Rangel Alves da Costa*
O velho, com um lampejo de saudade nos olhos, deixava transparecer um fiozinho de vontade de voltar ao passado. Viagem com direção certa, encontro marcado com flor de açucena, ou seria com a rosa da janela em dias de festa no coração? Ah! o tempo, o tempo, por que leva as flores se as mãos dadivosas ainda sabem, querem, desejam cultivá-la? Por que vem a ventania e destrói jardim e deixa jardineiro somente com as saudades? Espinhos do tempo, quanto dói o sangue imaginário derramado pela tua ausência...
Que soe a saudade em sons de chamado, pois o velho não duvidaria partir. Que bom que se pode amar na lembrança! O coração acolhe, entrega as chaves à imaginação. Como foi bom, como é bom amar. Ah! o tempo, o tempo, cruel fronteira entre a presença e a ausência. Parem o tempo, chamem a vida, e venha querida, vamos que logo será muito tarde. Tarde e ainda ardem no velho tantas recordações.
Quando o velho abria na memória o seu livro encantado de recordações desafiava a razão, confrontava de morte a solidão. Quem não conhecesse os segredos do amor diria que a loucura havia tomado posse de vez de um velho que queria falar como se fosse jovem, e ainda por cima um jovem que vinha com histórias sem pé nem cabeça. Quem já viu, nesse mundo que só vale o venha nós, ainda querer falar em amor, honestidade, sinceridade, respeito, paixão e tudo que está na contramão do bem-bom, da safadeza? Ora, esse velho metido a rapazinho é maluco mesmo!
Maluco até que podia ser, porém doidinho para ajuizar a juventude, para colocar na cabeça de tantos o juízo que parece ter passado por longe. Preocupado com isso, o velho não se cansava de conversar com os jovens, ao menos aqueles que respeitosamente queriam ouvir as lições. Tentava abrir brechas naquelas personalidades ainda em formação, como meio de semear conceitos, aconselhar e demonstrar que as coisas não eram tão simplistas e vulgares como muitos pensavam.
A realidade é esta, mas não é e nem deveria ser assim, dizia o velho. O que é abundante hoje, é festa costumeira de se ter e uma mina tão rica que cega a consciência, amanhã certamente mostrará o seu outro lado, sua outra face voraz. E de repente já é tarde demais. Essa face é faca cortante, de fio impiedoso, podendo arrancar de vez toda a dignidade futura. Quem se entrega aos desvarios hoje, se completa em ser apenas uma metade para outros usarem, depois se vai a outra metade e sem que se perceba só restarão os farrapos. E como a ventania da vida gosta de carregar os farrapos dos seres que não querem ser. Aquele que quer ser completo completa-se por inteiro, sem deixar vazantes nas suas estruturas. Tudo isso dizia o velho.
Muitas coisas atormentavam o velho. Chegou mesmo a implorar que do céu baixassem espelhos que refletissem, lado a lado, o que se faz e o que teria de feito. Está assim, mas deveria ser assim. Que quebrem os espelhos, mas que cada caco de vidro sirva ao menos para perfurar os pés e alertar aqueles que insistem em caminhar pelo perigo e de encontro ao nada encontrar. São tantos caminhos bons abertos para a juventude. Mas não, os festins insaciáveis desesperadamente chamam, venha, essa lama na estrada não há de ser nada. Lavou tá novo. E vai uma multidão, enlameada até o espírito.
O entroncamento que deveria indicar percursos nada indica. Pais que veem seus filhos abrirem portas não sabem como os mesmos voltarão. Intui-se mesmo que a felicidade familiar estanca, emperra nos primeiros momentos que surgem as desconfianças de que sua linda mocinha encantou-se por um dos muitos gaviões à espreita, na espia, de garras manhosas, prontas para pegar a presa. Como os pais não podem prender a menina, só resta implorar para que o pior não aconteça. Sua mãe, que sempre foi tão recatada, séria, talvez que sirva de exemplo. Talvez, quem sabe...
Por isso mesmo, por todos os desvirtuamentos existentes, é que o velho repugnava o namoro de hoje, tinha verdadeiro asco, repulsa. Namoro uma ova, dizia baixinho. Quando os pais, na maior inocência do mundo, pensam que os filhos estão apenas se encontrando, conversando, trocando carícias e beijos tímidos num banco de praça, eles já estão nas escondidas, atrás dos muros, por entre as moitas, por cima das covas do cemitério, na maior safadeza. E depois e depois... Ah! esse velho com suas velhices! Seriam maluquices?
Nos tempos não muito distantes não existia essa sem-vergonheira toda que se tem hoje, infelizmente. Havia respeito próprio, perante o outro e pelas famílias. O namoro era uma coisa sensata; o casamento era uma virtude admirada por todos. Basta retroceder um pouco o olhar e ter a certeza de que o namoro era coisa muito mais séria do que muitos casamentos que se vê hoje. Existia mesmo um ritual que envolvia o relacionamento num véu de respeito e consideração entre os namorados e seus familiares.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
O velho, com um lampejo de saudade nos olhos, deixava transparecer um fiozinho de vontade de voltar ao passado. Viagem com direção certa, encontro marcado com flor de açucena, ou seria com a rosa da janela em dias de festa no coração? Ah! o tempo, o tempo, por que leva as flores se as mãos dadivosas ainda sabem, querem, desejam cultivá-la? Por que vem a ventania e destrói jardim e deixa jardineiro somente com as saudades? Espinhos do tempo, quanto dói o sangue imaginário derramado pela tua ausência...
Que soe a saudade em sons de chamado, pois o velho não duvidaria partir. Que bom que se pode amar na lembrança! O coração acolhe, entrega as chaves à imaginação. Como foi bom, como é bom amar. Ah! o tempo, o tempo, cruel fronteira entre a presença e a ausência. Parem o tempo, chamem a vida, e venha querida, vamos que logo será muito tarde. Tarde e ainda ardem no velho tantas recordações.
Quando o velho abria na memória o seu livro encantado de recordações desafiava a razão, confrontava de morte a solidão. Quem não conhecesse os segredos do amor diria que a loucura havia tomado posse de vez de um velho que queria falar como se fosse jovem, e ainda por cima um jovem que vinha com histórias sem pé nem cabeça. Quem já viu, nesse mundo que só vale o venha nós, ainda querer falar em amor, honestidade, sinceridade, respeito, paixão e tudo que está na contramão do bem-bom, da safadeza? Ora, esse velho metido a rapazinho é maluco mesmo!
Maluco até que podia ser, porém doidinho para ajuizar a juventude, para colocar na cabeça de tantos o juízo que parece ter passado por longe. Preocupado com isso, o velho não se cansava de conversar com os jovens, ao menos aqueles que respeitosamente queriam ouvir as lições. Tentava abrir brechas naquelas personalidades ainda em formação, como meio de semear conceitos, aconselhar e demonstrar que as coisas não eram tão simplistas e vulgares como muitos pensavam.
A realidade é esta, mas não é e nem deveria ser assim, dizia o velho. O que é abundante hoje, é festa costumeira de se ter e uma mina tão rica que cega a consciência, amanhã certamente mostrará o seu outro lado, sua outra face voraz. E de repente já é tarde demais. Essa face é faca cortante, de fio impiedoso, podendo arrancar de vez toda a dignidade futura. Quem se entrega aos desvarios hoje, se completa em ser apenas uma metade para outros usarem, depois se vai a outra metade e sem que se perceba só restarão os farrapos. E como a ventania da vida gosta de carregar os farrapos dos seres que não querem ser. Aquele que quer ser completo completa-se por inteiro, sem deixar vazantes nas suas estruturas. Tudo isso dizia o velho.
Muitas coisas atormentavam o velho. Chegou mesmo a implorar que do céu baixassem espelhos que refletissem, lado a lado, o que se faz e o que teria de feito. Está assim, mas deveria ser assim. Que quebrem os espelhos, mas que cada caco de vidro sirva ao menos para perfurar os pés e alertar aqueles que insistem em caminhar pelo perigo e de encontro ao nada encontrar. São tantos caminhos bons abertos para a juventude. Mas não, os festins insaciáveis desesperadamente chamam, venha, essa lama na estrada não há de ser nada. Lavou tá novo. E vai uma multidão, enlameada até o espírito.
O entroncamento que deveria indicar percursos nada indica. Pais que veem seus filhos abrirem portas não sabem como os mesmos voltarão. Intui-se mesmo que a felicidade familiar estanca, emperra nos primeiros momentos que surgem as desconfianças de que sua linda mocinha encantou-se por um dos muitos gaviões à espreita, na espia, de garras manhosas, prontas para pegar a presa. Como os pais não podem prender a menina, só resta implorar para que o pior não aconteça. Sua mãe, que sempre foi tão recatada, séria, talvez que sirva de exemplo. Talvez, quem sabe...
Por isso mesmo, por todos os desvirtuamentos existentes, é que o velho repugnava o namoro de hoje, tinha verdadeiro asco, repulsa. Namoro uma ova, dizia baixinho. Quando os pais, na maior inocência do mundo, pensam que os filhos estão apenas se encontrando, conversando, trocando carícias e beijos tímidos num banco de praça, eles já estão nas escondidas, atrás dos muros, por entre as moitas, por cima das covas do cemitério, na maior safadeza. E depois e depois... Ah! esse velho com suas velhices! Seriam maluquices?
Nos tempos não muito distantes não existia essa sem-vergonheira toda que se tem hoje, infelizmente. Havia respeito próprio, perante o outro e pelas famílias. O namoro era uma coisa sensata; o casamento era uma virtude admirada por todos. Basta retroceder um pouco o olhar e ter a certeza de que o namoro era coisa muito mais séria do que muitos casamentos que se vê hoje. Existia mesmo um ritual que envolvia o relacionamento num véu de respeito e consideração entre os namorados e seus familiares.
continua...
Advogado e poeta
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quinta-feira, 29 de abril de 2010
MOÇA TRISTE NO CAIS (Crônica)
MOÇA TRISTE NO CAIS
Rangel Alves da Costa*
Moça triste no cais. Parece nome de pintura dos poetas de óleos e aquarelas, dos artistas que retratam marinas, portos, areia da praia que vai invadindo o mar e vice-versa, barcos que chegam cansados e tristes, velas distantes de tristeza solitária; pontinhos que se descortinam nas distâncias. Moça triste no cais. Parece uma cena de fim de tarde. E é...
O cais onde a moça chegava todos os finais de tarde para ficar ali, mirando o horizonte com o sol naquele amarelado de despedida, observando as gaivotas pairando entre água e céu, avistando lá longe os barcos solitários e as velas pequeninas naquela imensidão, ansiando pela chegada feliz das embarcações no ancoradouro, era um cais alegre e triste, feio e bonito, de encontros e despedidas. Era um cais com seus ais. E quantos ais adormecidos nas dores do cais...
Era um cais que causava prazer e aflição. E era assim porque todo cais é misterioso para o navegante de suas areias. Não do mar, que tem destino certo, mas da margem que repousa em si a tristeza e a solidão. A moça sabia bem disso. Ninguém conhecia mais os mistérios do cais quanto ela. Uma vez quis virar sereia para entrar nas águas e fugir dali.
Quem está na beira do cais sempre tem um compromisso com as águas adiante, que permite o embarcar e desembarcar de pessoas com sonhos e destinos diferentes, que vela o barco que voltou sozinho porque o pescador foi chamado pelos seres das águas, que traz o alimento do retorno na pessoa que ficou dois dias mar adentro e não pescou nem o almoço que era pra ser ontem.
Por isso o cais é misterioso, e mais enigmático ainda nas noites em que os vultos passeiam pelas águas e velas são avistadas acesas ao longo das areias, sem que nenhuma alma vivente fosse ali acendê-las. Gente viva que vai é para fazer oferendas com flores e perfumes, esperanças, misticismo e fé. Por isso o cais é misterioso. E mais misteriosa ainda era a moça do cais...
Ao entardecer, quando quase nenhuma movimentação de partida era observada, diferentemente dos retornos das águas que eram muitos, a moça para lá se dirigia e ficava ora em pé, passeando pelas margens, molhando os pés descalços nas ondas cansadas, ora sentava no banquinho de madeira fincado ali, debaixo de um pé de coqueiro. Em muitas tardes já escurecidas, quem olhasse com cuidado podia ver os cabelos da moça balançando o mesmo balançar das folhas do coqueiro, numa dança leve soprada na melodia do vento.
Todo mundo sabia que todas as tardes, caísse o maior temporal ou existisse um resto de sol, a moça sempre podia ser encontrada vagando ou simplesmente parada na beira do cais. Era um cotidiano já duradouro, já do conhecimento dos navegantes, pescadores e outras pessoas que viviam naquelas redondezas. Contudo, ninguém sabia quem era a moça, de onde vinha todas as tardes e nem quais os motivos que a fazia retornar sempre e mais, como se algo estranho instintivamente a levasse para as margens das águas sempre ao cair do sol. Todo mundo via a moça por lá, triste, num olhar só, mas ninguém nunca sabia o instante em que saía de lá. Simplesmente a moça triste desaparecia...
Não sabiam praticamente nada sobre ela, a não ser que ontem estava lá, hoje se encharcou toda com o temporal que caiu, e amanhã certamente será avistada olhando o mundo das águas como se quisesse encontrar uma importante resposta, independentemente de tempo bom ou ruim. A única coisa que tinham certeza era sobre a sua beleza, sua faceirice na roupa simples que vestia, sua face e cabelos encantadores, seu lindo colar de conchas e um olhar esverdeado da cor de mar profundo. Linda mulher essa moça do cais...
Um dia, no último vermelho do sol, pescadores avistaram a moça levantar do seu banquinho e caminhar descalça até o limite das águas, onde as ondas batiam e voltavam. Enxergaram também um barquinho solitário que veio chegando e chegando, sem ninguém dentro dele, e aportar bem diante dela.
No mesmo instante, um velho pescador falou quase gritando para os amigos: "Mas aquele barco afundou há uns cinco anos atrás, deixando nas águas o pescador Demundo, um rapaz trabalhador que ia casar naquele mesmo dia, deixando a sua noiva praticamente esperando no altar. O barco afundou despedaçado e o rapaz morreu, e como agora ele sobe das águas e vem parar aqui?".
A moça triste jogou um vestido de noiva dentro do barco vazio e lentamente ele deu a volta e foi se distanciando nas águas. Uma semana depois o barco voltou e ela subiu nele e partiu nas águas, sem que ninguém mais pudesse vê-la no cais ao entardecer. Somente nas noites de lua cheia, quando avistam o seu vulto descendo do barco, caminhar até o coqueiro e depois retornar.
E ouve-se ao longe um canto como de sereia...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
Moça triste no cais. Parece nome de pintura dos poetas de óleos e aquarelas, dos artistas que retratam marinas, portos, areia da praia que vai invadindo o mar e vice-versa, barcos que chegam cansados e tristes, velas distantes de tristeza solitária; pontinhos que se descortinam nas distâncias. Moça triste no cais. Parece uma cena de fim de tarde. E é...
O cais onde a moça chegava todos os finais de tarde para ficar ali, mirando o horizonte com o sol naquele amarelado de despedida, observando as gaivotas pairando entre água e céu, avistando lá longe os barcos solitários e as velas pequeninas naquela imensidão, ansiando pela chegada feliz das embarcações no ancoradouro, era um cais alegre e triste, feio e bonito, de encontros e despedidas. Era um cais com seus ais. E quantos ais adormecidos nas dores do cais...
Era um cais que causava prazer e aflição. E era assim porque todo cais é misterioso para o navegante de suas areias. Não do mar, que tem destino certo, mas da margem que repousa em si a tristeza e a solidão. A moça sabia bem disso. Ninguém conhecia mais os mistérios do cais quanto ela. Uma vez quis virar sereia para entrar nas águas e fugir dali.
Quem está na beira do cais sempre tem um compromisso com as águas adiante, que permite o embarcar e desembarcar de pessoas com sonhos e destinos diferentes, que vela o barco que voltou sozinho porque o pescador foi chamado pelos seres das águas, que traz o alimento do retorno na pessoa que ficou dois dias mar adentro e não pescou nem o almoço que era pra ser ontem.
Por isso o cais é misterioso, e mais enigmático ainda nas noites em que os vultos passeiam pelas águas e velas são avistadas acesas ao longo das areias, sem que nenhuma alma vivente fosse ali acendê-las. Gente viva que vai é para fazer oferendas com flores e perfumes, esperanças, misticismo e fé. Por isso o cais é misterioso. E mais misteriosa ainda era a moça do cais...
Ao entardecer, quando quase nenhuma movimentação de partida era observada, diferentemente dos retornos das águas que eram muitos, a moça para lá se dirigia e ficava ora em pé, passeando pelas margens, molhando os pés descalços nas ondas cansadas, ora sentava no banquinho de madeira fincado ali, debaixo de um pé de coqueiro. Em muitas tardes já escurecidas, quem olhasse com cuidado podia ver os cabelos da moça balançando o mesmo balançar das folhas do coqueiro, numa dança leve soprada na melodia do vento.
Todo mundo sabia que todas as tardes, caísse o maior temporal ou existisse um resto de sol, a moça sempre podia ser encontrada vagando ou simplesmente parada na beira do cais. Era um cotidiano já duradouro, já do conhecimento dos navegantes, pescadores e outras pessoas que viviam naquelas redondezas. Contudo, ninguém sabia quem era a moça, de onde vinha todas as tardes e nem quais os motivos que a fazia retornar sempre e mais, como se algo estranho instintivamente a levasse para as margens das águas sempre ao cair do sol. Todo mundo via a moça por lá, triste, num olhar só, mas ninguém nunca sabia o instante em que saía de lá. Simplesmente a moça triste desaparecia...
Não sabiam praticamente nada sobre ela, a não ser que ontem estava lá, hoje se encharcou toda com o temporal que caiu, e amanhã certamente será avistada olhando o mundo das águas como se quisesse encontrar uma importante resposta, independentemente de tempo bom ou ruim. A única coisa que tinham certeza era sobre a sua beleza, sua faceirice na roupa simples que vestia, sua face e cabelos encantadores, seu lindo colar de conchas e um olhar esverdeado da cor de mar profundo. Linda mulher essa moça do cais...
Um dia, no último vermelho do sol, pescadores avistaram a moça levantar do seu banquinho e caminhar descalça até o limite das águas, onde as ondas batiam e voltavam. Enxergaram também um barquinho solitário que veio chegando e chegando, sem ninguém dentro dele, e aportar bem diante dela.
No mesmo instante, um velho pescador falou quase gritando para os amigos: "Mas aquele barco afundou há uns cinco anos atrás, deixando nas águas o pescador Demundo, um rapaz trabalhador que ia casar naquele mesmo dia, deixando a sua noiva praticamente esperando no altar. O barco afundou despedaçado e o rapaz morreu, e como agora ele sobe das águas e vem parar aqui?".
A moça triste jogou um vestido de noiva dentro do barco vazio e lentamente ele deu a volta e foi se distanciando nas águas. Uma semana depois o barco voltou e ela subiu nele e partiu nas águas, sem que ninguém mais pudesse vê-la no cais ao entardecer. Somente nas noites de lua cheia, quando avistam o seu vulto descendo do barco, caminhar até o coqueiro e depois retornar.
E ouve-se ao longe um canto como de sereia...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Da culpa (Poesia)
Da culpa
Pela vidraça nublada
na réstia do perfil que avistava
enxugando com a mão a solidão
senti que o meu amor chorava
Chore não
dizia meu coração
Abra a janela
dizia olhando ela
Venha me ver
dizia o meu querer
Me dê um beijo
pedia o meu desejo
Merecemos um perdão
recordava a paixão
De um só favor
é o que precisa o amor
Quero entrar
e pedir para ficar
No dia e no dia seguinte
sempre que retorno ao lugar
pareço sumir aos seus olhos
que preferem chorar a amar
E nem posso enxugar as lágrimas
de um rio que fiz transbordar
por brincar de coisa séria
que é um coração machucar.
Rangel Alves da Costa
Pela vidraça nublada
na réstia do perfil que avistava
enxugando com a mão a solidão
senti que o meu amor chorava
Chore não
dizia meu coração
Abra a janela
dizia olhando ela
Venha me ver
dizia o meu querer
Me dê um beijo
pedia o meu desejo
Merecemos um perdão
recordava a paixão
De um só favor
é o que precisa o amor
Quero entrar
e pedir para ficar
No dia e no dia seguinte
sempre que retorno ao lugar
pareço sumir aos seus olhos
que preferem chorar a amar
E nem posso enxugar as lágrimas
de um rio que fiz transbordar
por brincar de coisa séria
que é um coração machucar.
Rangel Alves da Costa
SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – V
SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – V
Rangel Alves da Costa*
Parecem inversas, coisas do outro mundo, essas lições do sertão que os governantes nunca querem aprender. Ano após ano e a mesma coisa; a mesma conhecida volta faminta batendo a porta e entra sem pedir licença; na panela do sol, o mesmo prato indigesto é apenas requentado. E esses governantes parecem gostar do reencontro com a miséria, a dor e a angústia. Mas miséria, dor e angústia nos outros, nos sertanejos, pois eles mesmos se refestelam nas verbas que deveriam ter ido e não foram. Dinheiro, verba pública, também guarda consigo essa coisa humana que é o esquecimento.
Os gestores terrenos da vida humana, como pretendem ser, articulam ações que não param por aí. Negligenciando perante a sorte dos outros, guardam em proveito próprio os frutos da omissão. Daí suas inteligências, suas espertezas. Sabem direitinho o bê-a-bá da malandragem, da politicagem, do favorecimento, do clientelismo, do assistencialismo.
Assim, toda seca que reluz é ouro para fins políticos. Nada melhor do que ter, a seu bel-prazer, carros-pipas, cestas de alimentos e o poder de escolha e contratação de trabalhadores para a realização de obras emergenciais. Como se diz para forçar um sorriso, mais doce que isso só o melaço que é saboreado escondido.
Ademais, repita-se, não se pode esquecer do tamanho do lucro político que isso tudo envolve. Os ganhos advindos com a miséria dos outros, prática constante e secular, nem de longe são percebidos pelo homem simples e humilde, ele mesmo vítima e peça mais importante desse nefasto jogo. A coisa é tão boa, tão grandiosa eleitoralmente, que ninguém, mas ninguém mesmo, dá um passo sequer para efetivamente mudar a situação.
Contudo, a situação de penúria e submissão que foi imposta ao sertão não justifica, em hipótese alguma, que alguns sertanejos debandem para o lado do crime. Não se pode negar a face marcante do banditismo social na região em outros tempos. Contudo, a situação era outra. Naqueles tempos o problema era generalizado, pois o fenômeno era motivado pelas condicionantes político-sociais da região, tais como a má distribuição agrária, o atraso econômico e o revanchismo, caracterizando-se ainda pelo aparecimento de grupos de bandoleiros errantes, que percorriam o sertão saqueando fazendas e cidades e lutando contra bandos rivais e as forças policiais.
Não se nega também as constantes ações dos jagunços contra os desafetos dos seus patrões, ceifando quantas vidas fosse preciso para que o poder de mando não fosse ameaçado. O que se observava, então, era o famoso crime de mando, onde o verdadeiro assassino ficava escondido por trás de sua autoridade sertaneja. A impunidade do coronel, do latifundiário, do político, sempre! Mas os tempos são outros, não se admitindo mais o estado de barbárie que se instalou noutros tempos, mesmo que se tenha de reconhecer as mesmas práticas com outros fundamentos.
Sem as raízes da violência de antes, porém com criminosos cada vez mais violentos, mais perigosos e ardilosos, assim se tornou o sertão. Aquele que tinha seu cercado com poucas cabeças de gado e lutava constantemente contra os problemas gerados com as estiagens, agora tem que lutar para ver amanhecer seus animais no pasto. Acordar e sentir que os seus dois garrotes ainda estão no pasto tornou-se motivo de sorte. Constantes tornaram-se os casos em que ladrões chegam com armamento pesado, vão cortando arames ou derrubando cercas e levam, como se fossem donos, o que quiserem. Não se contentam somente com animais, infelizmente.
Nas suas ações, os bandidos que atualmente assolam o sertão não se bastam mais em levar apenas os bichos, pois constantemente roubam também rebanhos de sonhos nas mocinhas que são estupradas e nas famílias que são forçadas a passar todos os tipos de constrangimentos e ver derramado o sangue dos seus sem poderem fazer nada. O que fazer meu Deus, perguntam um e outro. Muitos, não suportando mais o terror que se alastra, rumam sem norte para o norte. Trocadilho de vida é essa...
Qualquer resistência que encontrem, os bandidos respondem com tiros, matam, esfolam, abandonam os corpos em qualquer lugar. Agem como reinasse a impunidade, talvez até com a certeza de que jamais serão surpreendidos pela polícia. Assim, novas facções de marginais vão se formando a cada dia, cada vez mais bestializadas, truculentas, aterrorizantes, segundo as especializações de cada uma. Há os especialistas em roubo de gado, de motocicletas, de residências, de sítios e fazendas, de vidas e assim por diante, e todos com práticas que envolvem os maiores requintes de crueldades. E não se pode esquecer o crescimento do uso e do tráfico de drogas, que servem, por assim dizer, como rito de entrada para o mundo da bandidagem.
Não bastassem todos os problemas que surgem, a luta pela sobrevivência continua sendo um desafio de todo dia, na intensa busca para se viver com dignidade. Diferentemente de outrora, as classes sociais estão cada vez mais divididas. Os afortunados, grandes comerciantes, proprietários de muitas posses e os ditos remediados, estes formam uma classe quase que descompromissada com os mais carentes. Muitas vezes já comeram do mesmo pão, mas agora só faltam cuspir na sombra do pobre que passa.
Para os que estão por cima da carne seca, como se diz, tanto faz como tanto fez. Chova ou faça sol, o deles já está assegurado, garantido. Como os outros é que devem se virar, realmente alguns destes se viram como podem e a honradez e dignidade permitem. Muitos não arredam pé da seriedade e honestidade, preferindo continuar em precárias condições de sobrevivência do que servir de massa de manobra para os outros ou se rebaixar em troca de um tostão.
Existe, contudo, uma classe que, de exceção até bem pouco tempo, transformou-se numa verdadeira praga, que é aquela formada pelos aduladores, puxa-sacos dos administradores municipais. O pior é que muitos endeusam, defendem e até brigam pelo prefeito sem ter um empreguinho sequer, sem ganhar um vintém, sem serem favorecidos em coisíssima nenhuma, só para colocar em prática seus imprestáveis dons de bajuladores, até mesmo por falta de vergonha ou outra coisa melhor de se fazer na vida.
Muitos aduladores são frequentemente vistos lavando pratos, roupas e limpando o chão sempre sujo da casa do prefeito; ficam doentes em seu lugar; são vítimas antecipadas de tudo de ruim que possa acontecer com o seu deus; enfim, só não o colocam num andor e ficam pra cima e pra baixo porque faltaria tempo ao prefeito, que tem outras coisas mais importantes para fazer, como roubar dinheiro público, fraudar licitações e perseguir todas as pessoas sérias que votaram nele. Quem é sério não serve mais pra ser seu amigo, pois é por demais temeroso ter por perto alguém enxergando o lamaçal formado a partir do seu gabinete. Amigo bom, agora, é o que vê e finge que não viu nada, o adepto da propina, o que fecha o bico por um pirulito.
Mas há que se defender a classe dos aduladores, pois estão exercitando seu pleno direito de serem mais nojentos e sórdidos do que o abjeto que está sendo adulado. É feio, indigno, humilhante, mas não deixa de ser – e dói afirmar – um meio de sobrevivência.
Tendo longamente exposto sobre o assunto, o velho comeu um bolachão com mariola. Fazia parte de sua sobrevivência. Depois olhou para as nuvens e não viu nenhum sinal de chuva. Balançou a cabeça num gesto desalentado e saiu.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Parecem inversas, coisas do outro mundo, essas lições do sertão que os governantes nunca querem aprender. Ano após ano e a mesma coisa; a mesma conhecida volta faminta batendo a porta e entra sem pedir licença; na panela do sol, o mesmo prato indigesto é apenas requentado. E esses governantes parecem gostar do reencontro com a miséria, a dor e a angústia. Mas miséria, dor e angústia nos outros, nos sertanejos, pois eles mesmos se refestelam nas verbas que deveriam ter ido e não foram. Dinheiro, verba pública, também guarda consigo essa coisa humana que é o esquecimento.
Os gestores terrenos da vida humana, como pretendem ser, articulam ações que não param por aí. Negligenciando perante a sorte dos outros, guardam em proveito próprio os frutos da omissão. Daí suas inteligências, suas espertezas. Sabem direitinho o bê-a-bá da malandragem, da politicagem, do favorecimento, do clientelismo, do assistencialismo.
Assim, toda seca que reluz é ouro para fins políticos. Nada melhor do que ter, a seu bel-prazer, carros-pipas, cestas de alimentos e o poder de escolha e contratação de trabalhadores para a realização de obras emergenciais. Como se diz para forçar um sorriso, mais doce que isso só o melaço que é saboreado escondido.
Ademais, repita-se, não se pode esquecer do tamanho do lucro político que isso tudo envolve. Os ganhos advindos com a miséria dos outros, prática constante e secular, nem de longe são percebidos pelo homem simples e humilde, ele mesmo vítima e peça mais importante desse nefasto jogo. A coisa é tão boa, tão grandiosa eleitoralmente, que ninguém, mas ninguém mesmo, dá um passo sequer para efetivamente mudar a situação.
Contudo, a situação de penúria e submissão que foi imposta ao sertão não justifica, em hipótese alguma, que alguns sertanejos debandem para o lado do crime. Não se pode negar a face marcante do banditismo social na região em outros tempos. Contudo, a situação era outra. Naqueles tempos o problema era generalizado, pois o fenômeno era motivado pelas condicionantes político-sociais da região, tais como a má distribuição agrária, o atraso econômico e o revanchismo, caracterizando-se ainda pelo aparecimento de grupos de bandoleiros errantes, que percorriam o sertão saqueando fazendas e cidades e lutando contra bandos rivais e as forças policiais.
Não se nega também as constantes ações dos jagunços contra os desafetos dos seus patrões, ceifando quantas vidas fosse preciso para que o poder de mando não fosse ameaçado. O que se observava, então, era o famoso crime de mando, onde o verdadeiro assassino ficava escondido por trás de sua autoridade sertaneja. A impunidade do coronel, do latifundiário, do político, sempre! Mas os tempos são outros, não se admitindo mais o estado de barbárie que se instalou noutros tempos, mesmo que se tenha de reconhecer as mesmas práticas com outros fundamentos.
Sem as raízes da violência de antes, porém com criminosos cada vez mais violentos, mais perigosos e ardilosos, assim se tornou o sertão. Aquele que tinha seu cercado com poucas cabeças de gado e lutava constantemente contra os problemas gerados com as estiagens, agora tem que lutar para ver amanhecer seus animais no pasto. Acordar e sentir que os seus dois garrotes ainda estão no pasto tornou-se motivo de sorte. Constantes tornaram-se os casos em que ladrões chegam com armamento pesado, vão cortando arames ou derrubando cercas e levam, como se fossem donos, o que quiserem. Não se contentam somente com animais, infelizmente.
Nas suas ações, os bandidos que atualmente assolam o sertão não se bastam mais em levar apenas os bichos, pois constantemente roubam também rebanhos de sonhos nas mocinhas que são estupradas e nas famílias que são forçadas a passar todos os tipos de constrangimentos e ver derramado o sangue dos seus sem poderem fazer nada. O que fazer meu Deus, perguntam um e outro. Muitos, não suportando mais o terror que se alastra, rumam sem norte para o norte. Trocadilho de vida é essa...
Qualquer resistência que encontrem, os bandidos respondem com tiros, matam, esfolam, abandonam os corpos em qualquer lugar. Agem como reinasse a impunidade, talvez até com a certeza de que jamais serão surpreendidos pela polícia. Assim, novas facções de marginais vão se formando a cada dia, cada vez mais bestializadas, truculentas, aterrorizantes, segundo as especializações de cada uma. Há os especialistas em roubo de gado, de motocicletas, de residências, de sítios e fazendas, de vidas e assim por diante, e todos com práticas que envolvem os maiores requintes de crueldades. E não se pode esquecer o crescimento do uso e do tráfico de drogas, que servem, por assim dizer, como rito de entrada para o mundo da bandidagem.
Não bastassem todos os problemas que surgem, a luta pela sobrevivência continua sendo um desafio de todo dia, na intensa busca para se viver com dignidade. Diferentemente de outrora, as classes sociais estão cada vez mais divididas. Os afortunados, grandes comerciantes, proprietários de muitas posses e os ditos remediados, estes formam uma classe quase que descompromissada com os mais carentes. Muitas vezes já comeram do mesmo pão, mas agora só faltam cuspir na sombra do pobre que passa.
Para os que estão por cima da carne seca, como se diz, tanto faz como tanto fez. Chova ou faça sol, o deles já está assegurado, garantido. Como os outros é que devem se virar, realmente alguns destes se viram como podem e a honradez e dignidade permitem. Muitos não arredam pé da seriedade e honestidade, preferindo continuar em precárias condições de sobrevivência do que servir de massa de manobra para os outros ou se rebaixar em troca de um tostão.
Existe, contudo, uma classe que, de exceção até bem pouco tempo, transformou-se numa verdadeira praga, que é aquela formada pelos aduladores, puxa-sacos dos administradores municipais. O pior é que muitos endeusam, defendem e até brigam pelo prefeito sem ter um empreguinho sequer, sem ganhar um vintém, sem serem favorecidos em coisíssima nenhuma, só para colocar em prática seus imprestáveis dons de bajuladores, até mesmo por falta de vergonha ou outra coisa melhor de se fazer na vida.
Muitos aduladores são frequentemente vistos lavando pratos, roupas e limpando o chão sempre sujo da casa do prefeito; ficam doentes em seu lugar; são vítimas antecipadas de tudo de ruim que possa acontecer com o seu deus; enfim, só não o colocam num andor e ficam pra cima e pra baixo porque faltaria tempo ao prefeito, que tem outras coisas mais importantes para fazer, como roubar dinheiro público, fraudar licitações e perseguir todas as pessoas sérias que votaram nele. Quem é sério não serve mais pra ser seu amigo, pois é por demais temeroso ter por perto alguém enxergando o lamaçal formado a partir do seu gabinete. Amigo bom, agora, é o que vê e finge que não viu nada, o adepto da propina, o que fecha o bico por um pirulito.
Mas há que se defender a classe dos aduladores, pois estão exercitando seu pleno direito de serem mais nojentos e sórdidos do que o abjeto que está sendo adulado. É feio, indigno, humilhante, mas não deixa de ser – e dói afirmar – um meio de sobrevivência.
Tendo longamente exposto sobre o assunto, o velho comeu um bolachão com mariola. Fazia parte de sua sobrevivência. Depois olhou para as nuvens e não viu nenhum sinal de chuva. Balançou a cabeça num gesto desalentado e saiu.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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quarta-feira, 28 de abril de 2010
RAZÕES DO CORAÇÃO (Crônica)
RAZÕES DO CORAÇÃO
Rangel Alves da Costa*
Ter olhos somente para ver, boca apenas para falar e mãos unicamente para tocar ou recolher, não nos parece fazer o uso correto desses sentidos. De algum modo, animais ditos irracionais também fazem uso desses meios de relacionamento com o que os rodeia e de forma mais inteligente que o próprio homem. A este, caracterizado como racional por poder agir com discernimento do bem e do mal, resta ainda aprender a ter olhos para o que não está presente, ter boca para ficar em silêncio e ter mãos para buscar o que não está ao alcance.
Razão dou ao coração que não é sentido, mas age ilimitadamente em busca daquilo que deseja. Desconhece fronteiras para trazer e guardar dentro de si o que lhe fortalece e dá sentido à vida; rompe as barreiras da impossibilidade para tornar possível ao menos a esperança; enfrenta os labirintos assombrosos para resguardar o fio de Ariadne; torna-se onipresente onde quer estar e onipotente naquilo que quer ter. Por isso dou razão ao coração que sabe o que deseja e não precisa dos sentidos para agir. Aquilo que sente procura fazer acontecer.
Vou contar uma pequena história para ilustrar o que pretendo esclarecer. Um dia, havia um quarto com duas janelas envidraçadas, dispostas nas duas paredes laterais. Dentro do quarto havia uma menina triste, muito triste. A única saída para acabar com o sofrimento seria abrir a porta do quarto e sair em busca de qualquer coisa que lhe desse alegria. Quis ver como estava o tempo lá fora e pelo vidro das janelas viu que de um lado chovia e do outro fazia sol.
Estava cansada daquele tormento. De um lado, o sol brilhando e do outro a chuva caindo. A natureza impõe vizinhanças inimagináveis. Sair ou ficar, eis a questão; ir para as incertezas da chuva ou correr para a alegria do sol. Tudo seria muito simples de se resolver, pois as pessoas, agindo pela primeira intuição mental, nem pensam muito no que escolher, pois o sol é muito mais convidativo e prazeroso do que o horizonte enegrecido pela natureza revoltosa. O problema (seria problema?) é que a menina não queria o sol, mas sim a chuva, a tempestade. E o que fazer agora?
A menina tinha os seus motivos. Gostava muito dos dias ensolarados, dos passeios pelos parques e jardins, de sair e passear com as coleguinhas, de aproveitar ao máximo as facilidades do tempo firme, só que naquele momento não estava disposta a viver essa claridade convidativa. Só isso! E por quê? Se perguntasse a ela certamente ouviria que há muito tempo tinha vontade de experimentar sair para a rua e se molhar inteirinha num dia de chuva, gostaria de sentir os pingos caindo em sua cabeça e molhando o seu corpo, sonhava em dar pulos em poças d'água, correr descalça pelas calçadas e abrir os braços como se fosse planta que está com sede.
A menina queria experimentar algo diferente, uma experiência nova e bonita que era sair para a rua e tomar banho de chuva, brincar com água e depois sentir aquele friozinho na roupa molhada. O coração estava pedindo isso, há tempos que estava implorando para ser banhado por outras águas, para ser lavado das impurezas da solidão e do abandono, para se encharcar de vida nova, para ser molhado, reconstruído, refeito.
Ora, pensou a menina, todos os dias o sol me acompanha nessas andanças da vida e ele mesmo é cúmplice e testemunha de que o que tenho refletido é muito pouco para ser enxergada, vista, desejada, amada. Isso é o que parece ser, pois procuro brilhar mais do que o próprio sol e as pessoas me enxergam como se fosse sombra. Por isso mesmo é que hoje prefiro a chuva, e que venha uma tempestade para me banhar muito mais e ainda levar pra bem longe as réstias que restam do sol da solidão.
E pulou a janela e foi pra chuva, cantar, sonhar, brincar, viver, porque esse era o desejo do seu coração. E banhou o corpo e lavou o espírito. E depois da gripe arrumou um namorado bonito como o sol.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Ter olhos somente para ver, boca apenas para falar e mãos unicamente para tocar ou recolher, não nos parece fazer o uso correto desses sentidos. De algum modo, animais ditos irracionais também fazem uso desses meios de relacionamento com o que os rodeia e de forma mais inteligente que o próprio homem. A este, caracterizado como racional por poder agir com discernimento do bem e do mal, resta ainda aprender a ter olhos para o que não está presente, ter boca para ficar em silêncio e ter mãos para buscar o que não está ao alcance.
Razão dou ao coração que não é sentido, mas age ilimitadamente em busca daquilo que deseja. Desconhece fronteiras para trazer e guardar dentro de si o que lhe fortalece e dá sentido à vida; rompe as barreiras da impossibilidade para tornar possível ao menos a esperança; enfrenta os labirintos assombrosos para resguardar o fio de Ariadne; torna-se onipresente onde quer estar e onipotente naquilo que quer ter. Por isso dou razão ao coração que sabe o que deseja e não precisa dos sentidos para agir. Aquilo que sente procura fazer acontecer.
Vou contar uma pequena história para ilustrar o que pretendo esclarecer. Um dia, havia um quarto com duas janelas envidraçadas, dispostas nas duas paredes laterais. Dentro do quarto havia uma menina triste, muito triste. A única saída para acabar com o sofrimento seria abrir a porta do quarto e sair em busca de qualquer coisa que lhe desse alegria. Quis ver como estava o tempo lá fora e pelo vidro das janelas viu que de um lado chovia e do outro fazia sol.
Estava cansada daquele tormento. De um lado, o sol brilhando e do outro a chuva caindo. A natureza impõe vizinhanças inimagináveis. Sair ou ficar, eis a questão; ir para as incertezas da chuva ou correr para a alegria do sol. Tudo seria muito simples de se resolver, pois as pessoas, agindo pela primeira intuição mental, nem pensam muito no que escolher, pois o sol é muito mais convidativo e prazeroso do que o horizonte enegrecido pela natureza revoltosa. O problema (seria problema?) é que a menina não queria o sol, mas sim a chuva, a tempestade. E o que fazer agora?
A menina tinha os seus motivos. Gostava muito dos dias ensolarados, dos passeios pelos parques e jardins, de sair e passear com as coleguinhas, de aproveitar ao máximo as facilidades do tempo firme, só que naquele momento não estava disposta a viver essa claridade convidativa. Só isso! E por quê? Se perguntasse a ela certamente ouviria que há muito tempo tinha vontade de experimentar sair para a rua e se molhar inteirinha num dia de chuva, gostaria de sentir os pingos caindo em sua cabeça e molhando o seu corpo, sonhava em dar pulos em poças d'água, correr descalça pelas calçadas e abrir os braços como se fosse planta que está com sede.
A menina queria experimentar algo diferente, uma experiência nova e bonita que era sair para a rua e tomar banho de chuva, brincar com água e depois sentir aquele friozinho na roupa molhada. O coração estava pedindo isso, há tempos que estava implorando para ser banhado por outras águas, para ser lavado das impurezas da solidão e do abandono, para se encharcar de vida nova, para ser molhado, reconstruído, refeito.
Ora, pensou a menina, todos os dias o sol me acompanha nessas andanças da vida e ele mesmo é cúmplice e testemunha de que o que tenho refletido é muito pouco para ser enxergada, vista, desejada, amada. Isso é o que parece ser, pois procuro brilhar mais do que o próprio sol e as pessoas me enxergam como se fosse sombra. Por isso mesmo é que hoje prefiro a chuva, e que venha uma tempestade para me banhar muito mais e ainda levar pra bem longe as réstias que restam do sol da solidão.
E pulou a janela e foi pra chuva, cantar, sonhar, brincar, viver, porque esse era o desejo do seu coração. E banhou o corpo e lavou o espírito. E depois da gripe arrumou um namorado bonito como o sol.
Advogado e poeta
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Sei não sei (Poesia)
Sei não sei
Um dia
ou era noite
não lembro
adormeci
ou acordei
não lembro
abri a porta
ou a janela
não lembro
quis sair
ou ficar
não lembro
esperando
ou desesperando
não lembro
O meu amor
veio e não sei?
O meu amor
me amou
e não sei?
Quem esteve
por aqui
que me dei?
Será que amando
eu errei?
Não sei
e não era meu
o amor que eu dei
De quem era
não lembro
não sei.
Rangel Alves da Costa
Um dia
ou era noite
não lembro
adormeci
ou acordei
não lembro
abri a porta
ou a janela
não lembro
quis sair
ou ficar
não lembro
esperando
ou desesperando
não lembro
O meu amor
veio e não sei?
O meu amor
me amou
e não sei?
Quem esteve
por aqui
que me dei?
Será que amando
eu errei?
Não sei
e não era meu
o amor que eu dei
De quem era
não lembro
não sei.
Rangel Alves da Costa
terça-feira, 27 de abril de 2010
INOCÊNCIA E HUMILHAÇÃO (Crônica)
INOCÊNCIA E HUMILHAÇÃO
Rangel Alves da Costa*
No sertão, quanto mais as pessoas são pobres, carentes, necessitadas de um tudo, mais são bondosas, servidoras do próximo, sempre prontas para ajudar, muitas vezes oferecer o que está muito além de suas forças e de suas posses. Esse espírito bondoso, despido de qualquer interesse maior, já está enraizado naquelas terras desde as primeiras gerações que ali plantaram e fizeram gerar um povo generoso, de mão sempre amiga, mais preocupado com o bem estar dos outros do que consigo mesmo.
Essa predisposição em servir sem ter em mente nada em troca, nos dias atuais, onde quase tudo é na base do "é dando que se recebe", "do venha a nós", do "me dê o meu primeiro", chega até às raias da inocência, da mais pura e sertaneja inocência. Muitos, de tão inocentes que são e procurando, mesmo sem poder, encher a barriga dos outros, deixam de botar comida na boca da família para levar uma galinha gorda, um porco, um peru, um capão ou um bode para pessoas importantes do lugar. Isso é mais freqüente do que se imagina.
Uma dessas criaturas chamava-se Maria Pureza, viúva e já velha aos cinquenta anos, com dois filhos menores, sendo um paralítico e uma velha mãe eternamente adoentada, ganhando o minguado da feira com a lavagem de roupas. Vivia num casebre de barro num pequeno roçado nas proximidades da sede do município. A riqueza que a pequena família possuía se resumia, pois, na choça, num velho carro de bois (sem bois), duas vaquinhas magricelas, um jegue e um cachorro vira-lata, todos só com pele e osso. De criação, a única coisa bonita que se via ciscando pelo cercado eram dois perus, um galo velho e seis galinhas, todos gordos e vistosos.
A pobreza da família não impedia de Maria Pureza ser uma pessoa muito alegre e feliz, amigueira, mulher séria e prestativa. Bastava saber que alguém estava precisando de alguma coisa, de alguma ajuda, e num instante já estava batendo a porta para se oferecer para auxiliar no que fosse preciso. Não tinha nada a oferecer, mas tinha esse bom e bem intencionado coração, que ficava feliz só em procurar estar próximo aos amigos nas suas necessidades.
Como conseqüência desse senso humanitário guardado no coração sertanejo, alguma vezes Maria Pureza praticava ações e tomava atitudes que eram de pura inocência. Como, por exemplo, defender sempre determinados políticos do lugar e acreditar que eles iriam construir uma casa novinha e de tijolos e arrumar um emprego para o filho, ou ainda pensar que os médicos da prefeitura sempre atenderiam de graça as pessoas carentes quando estivessem fora do plantão.
De tão inocente que era, um dia pegou o peru mais gordo, mais vistoso, e foi diretamente na casa do prefeito entregá-lo de presente, dizendo que era apenas uma lembrancinha de uma pessoa pobre porém de bom coração. Disse ainda que era para a esposa do prefeito aprontar um belo almoço, pois o marido merecia. E foi muito festejada, agradecida e tão mimada que acabou prometendo que logo logo voltaria ali para fazer outra surpresa.
E que surpresa prometida foi essa que acabou comprando um carneiro fiado para cumprir sua promessa e novamente presentear o prefeito. E foi uma festa só na casa do homem, com a esposa deste dando até um pedaço de bolo com um copo de água. Maria quase chora de satisfação pelo bolo e a água.
E assim foi distribuindo tudo o que tinha, dando o outro peru ao vice-prefeito, uma galinha a um vereador, outra a outro, não esquecendo duas bem gordas para dois médicos que se diziam muito amigos e sempre à disposição. E nesse passo Maria Pureza ficou sem nada no seu quintal e ainda com a dívida do carneiro para pagar.
O tempo passou e um dia a mãe de Maria Pureza morreu e esta ficou de mãos atadas, sem saber como comprar o caixão para fazer o enterro, pois não tinha centavo algum. A primeira coisa que pensou foi ir até à prefeitura para falar com o próprio prefeito, mas este se negou a recebê-la e mandou avisar que só podia arranjar o caixão dali a uns sete dias, e se ela quisesse esperar tudo bem.
Rumou para a fazenda do vice-prefeito e este afirmou que no momento não podia fazer nada porque o que estava recebendo da prefeitura mal dava pra comprar alimentação especializada para o seu gado, mas se ela quisesse, já que o prefeito prometeu o caixão pra dali a uns sete dias, poderia arrumar uns três pacotes de sal para salgar a velha até o corpo poder ser enterrado.
Bateu todas as portas de gente importante e nada. Os vereadores, já sabendo do caso, se escondiam assim que avistavam Maria. A mulher do prefeito, não sabendo do ocorrido, assim que ela bateu à porta foi logo perguntando onde estava a lembrancinha. Mas quando Maria contou o fato e já ia pedir ajuda, a primeira-dama começou a chorar e a se lamentar dos gastos com os filhos que moravam no exterior, e ficou por isso mesmo.
Ninguém sabe quantos amigos pobres ajudaram Maria Pureza a comprar o caixão de sua mãe. O que se sabe é que um belo dia ela voltou à casa do prefeito, bateu a porta e mandou chamar a primeira-dama para entregar uma lembrancinha. A mulher apareceu feito um raio, toda alegre e sorridente e Maria entregou-lhe uma linda colcha, toda bordada à mão, contendo os seguintes dizeres: "Coração verdadeiro perdoa, mesmo aqueles que chorarão por perdão e não serão perdoados".
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
No sertão, quanto mais as pessoas são pobres, carentes, necessitadas de um tudo, mais são bondosas, servidoras do próximo, sempre prontas para ajudar, muitas vezes oferecer o que está muito além de suas forças e de suas posses. Esse espírito bondoso, despido de qualquer interesse maior, já está enraizado naquelas terras desde as primeiras gerações que ali plantaram e fizeram gerar um povo generoso, de mão sempre amiga, mais preocupado com o bem estar dos outros do que consigo mesmo.
Essa predisposição em servir sem ter em mente nada em troca, nos dias atuais, onde quase tudo é na base do "é dando que se recebe", "do venha a nós", do "me dê o meu primeiro", chega até às raias da inocência, da mais pura e sertaneja inocência. Muitos, de tão inocentes que são e procurando, mesmo sem poder, encher a barriga dos outros, deixam de botar comida na boca da família para levar uma galinha gorda, um porco, um peru, um capão ou um bode para pessoas importantes do lugar. Isso é mais freqüente do que se imagina.
Uma dessas criaturas chamava-se Maria Pureza, viúva e já velha aos cinquenta anos, com dois filhos menores, sendo um paralítico e uma velha mãe eternamente adoentada, ganhando o minguado da feira com a lavagem de roupas. Vivia num casebre de barro num pequeno roçado nas proximidades da sede do município. A riqueza que a pequena família possuía se resumia, pois, na choça, num velho carro de bois (sem bois), duas vaquinhas magricelas, um jegue e um cachorro vira-lata, todos só com pele e osso. De criação, a única coisa bonita que se via ciscando pelo cercado eram dois perus, um galo velho e seis galinhas, todos gordos e vistosos.
A pobreza da família não impedia de Maria Pureza ser uma pessoa muito alegre e feliz, amigueira, mulher séria e prestativa. Bastava saber que alguém estava precisando de alguma coisa, de alguma ajuda, e num instante já estava batendo a porta para se oferecer para auxiliar no que fosse preciso. Não tinha nada a oferecer, mas tinha esse bom e bem intencionado coração, que ficava feliz só em procurar estar próximo aos amigos nas suas necessidades.
Como conseqüência desse senso humanitário guardado no coração sertanejo, alguma vezes Maria Pureza praticava ações e tomava atitudes que eram de pura inocência. Como, por exemplo, defender sempre determinados políticos do lugar e acreditar que eles iriam construir uma casa novinha e de tijolos e arrumar um emprego para o filho, ou ainda pensar que os médicos da prefeitura sempre atenderiam de graça as pessoas carentes quando estivessem fora do plantão.
De tão inocente que era, um dia pegou o peru mais gordo, mais vistoso, e foi diretamente na casa do prefeito entregá-lo de presente, dizendo que era apenas uma lembrancinha de uma pessoa pobre porém de bom coração. Disse ainda que era para a esposa do prefeito aprontar um belo almoço, pois o marido merecia. E foi muito festejada, agradecida e tão mimada que acabou prometendo que logo logo voltaria ali para fazer outra surpresa.
E que surpresa prometida foi essa que acabou comprando um carneiro fiado para cumprir sua promessa e novamente presentear o prefeito. E foi uma festa só na casa do homem, com a esposa deste dando até um pedaço de bolo com um copo de água. Maria quase chora de satisfação pelo bolo e a água.
E assim foi distribuindo tudo o que tinha, dando o outro peru ao vice-prefeito, uma galinha a um vereador, outra a outro, não esquecendo duas bem gordas para dois médicos que se diziam muito amigos e sempre à disposição. E nesse passo Maria Pureza ficou sem nada no seu quintal e ainda com a dívida do carneiro para pagar.
O tempo passou e um dia a mãe de Maria Pureza morreu e esta ficou de mãos atadas, sem saber como comprar o caixão para fazer o enterro, pois não tinha centavo algum. A primeira coisa que pensou foi ir até à prefeitura para falar com o próprio prefeito, mas este se negou a recebê-la e mandou avisar que só podia arranjar o caixão dali a uns sete dias, e se ela quisesse esperar tudo bem.
Rumou para a fazenda do vice-prefeito e este afirmou que no momento não podia fazer nada porque o que estava recebendo da prefeitura mal dava pra comprar alimentação especializada para o seu gado, mas se ela quisesse, já que o prefeito prometeu o caixão pra dali a uns sete dias, poderia arrumar uns três pacotes de sal para salgar a velha até o corpo poder ser enterrado.
Bateu todas as portas de gente importante e nada. Os vereadores, já sabendo do caso, se escondiam assim que avistavam Maria. A mulher do prefeito, não sabendo do ocorrido, assim que ela bateu à porta foi logo perguntando onde estava a lembrancinha. Mas quando Maria contou o fato e já ia pedir ajuda, a primeira-dama começou a chorar e a se lamentar dos gastos com os filhos que moravam no exterior, e ficou por isso mesmo.
Ninguém sabe quantos amigos pobres ajudaram Maria Pureza a comprar o caixão de sua mãe. O que se sabe é que um belo dia ela voltou à casa do prefeito, bateu a porta e mandou chamar a primeira-dama para entregar uma lembrancinha. A mulher apareceu feito um raio, toda alegre e sorridente e Maria entregou-lhe uma linda colcha, toda bordada à mão, contendo os seguintes dizeres: "Coração verdadeiro perdoa, mesmo aqueles que chorarão por perdão e não serão perdoados".
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Restos e vestígios (Poesia)
Restos e vestígios
Disseram que o amor acabou
alguém a porta fechou
bem longe a chave jogou
deixando a imensidão vazia
onde a paixão um dia
com requinte fez moradia
Onde estão as porcelanas e castiçais
o brilho das louças e pratarias?
onde estão os troféus e as adagas das paredes
os móveis antigos, os ornamentos e relicários?
onde estão a flauta, o piano e o violino
a partitura da última sonata triste tocada?
Onde estão as manhãs e os sóis do solar
o jardim de orquídeas, os canteiros e a tua flor?
Onde está o amor?
Onde estará o amor?
porque a paixão não existe
mas o amor não acabou.
Rangel Alves da Costa
Disseram que o amor acabou
alguém a porta fechou
bem longe a chave jogou
deixando a imensidão vazia
onde a paixão um dia
com requinte fez moradia
Onde estão as porcelanas e castiçais
o brilho das louças e pratarias?
onde estão os troféus e as adagas das paredes
os móveis antigos, os ornamentos e relicários?
onde estão a flauta, o piano e o violino
a partitura da última sonata triste tocada?
Onde estão as manhãs e os sóis do solar
o jardim de orquídeas, os canteiros e a tua flor?
Onde está o amor?
Onde estará o amor?
porque a paixão não existe
mas o amor não acabou.
Rangel Alves da Costa
SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – IV
SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – IV
Rangel Alves da Costa*
Em meio à raça titânica sertaneja, sempre haverá uma parcela da população que realmente não merece ser chamada de viventes do sol e da luta. Pelo contrário, não passa de verdadeira classe de vermes que se prolifera nas portas dos políticos, nas cozinhas dos endinheirados, nas praças colhendo mentiras para repassá-las adiante pelo simples prazer de ser chamada de imprestável, nojenta e falsa.
Pessoas existem que não estão nem aí para o fato de serem usados para fins politiqueiros. E o contexto até que é propício a tais práticas. A miséria, então, torna-se o ambiente mais propício para se tirar dividendos políticos. Alguns não precisam nem receber promessas e ficam logo de joelhos, lambendo os sapatos do seu algoz; outros, vendendo o resto da vergonha por um preço mais caro, aceitam qualquer esmola, principalmente uma cesta de alimentos. Esta, por sinal, mesmo sendo parte de um programa assistencialista governamental, se constitui no maior cabo eleitoral de todo o sertão. Assim, os políticos governistas retêm os alimentos como se fossem deles e daí em diante vão praticando a velha e conhecida política da troca de favores.
Sertanejo digno, honesto, valente e trabalhador deveria servir de exemplo para o sertanejo cabra safado. Ao menos deveria ser assim. É bom lembrar que um poeta sertanejo já disse que uma esmola para um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. Viver com dignidade na base do trabalho, com o emprego mesmo de curta duração, mas que garante com altivez o pão de cada dia.
Antigamente, nas épocas que batiam as estiagens brabas, de secar couro, para não se submeter às ditas e vergonhosas "caridades", não eram poucos os sertanejos que vendiam seus préstimos, seus serviços ao coronéis, aos latifundiários, poderosos do lugar. Proteger, amedrontar, dar sumiço, matar, era sempre garantia de algum lucro. E nem se poderia chamar isso de bandidagem, pois no sertão isso era uma prática de honra e não de mero enveredamento pelo mundo do crime.
No passado, ocasionalmente, nos ermos sertanejos de disputas e mais disputas pela terra e pela política, alguns trabalhadores, vendo seus normais afazeres ameaçados pelas estiagens, deixavam temporariamente suas atividades e, de armas na cintura e sinais de proteção, passavam a prestar serviços a proeminentes figuras do lugar, seguindo fielmente tudo aquilo que fosse ordenado.
"Os homens do homem", como eram chamados para designar uma outra feição dos capangas e jagunços, serviam para proteger o patrão, sua família e propriedades. Os serviços mais sujos, como tocaiar e matar, eram feitos, aí sim, pelos jagunços. Estes eram elementos que integravam as forças ou corporações particulares dos fazendeiros e chefes políticos e destinavam-se, além da proteção contra tudo e todos, à execução de crimes encomendados, em tocaias e emboscadas, participando ainda, de armas sempre em punho, nas lutas entre os clãs políticos e familiares.
Nos tempos de paz, quando o sertão foi livrando-se das sombras cruéis do mandonismo, as armas foram depostas e em seu lugar retomou com dignidade todo um aparato de foices, pás, enxadas, enxadecos e machados. Nas frentes de trabalho, serviços de melhoria ou abertura de estradas e construções de barragens e açudes, quase sempre patrocinados pelo governo federal, os sertanejos, ou melhor, aqueles escolhidos pelo chefe político local, passaram a ter uma ocupação certa num tempo difícil, pois a seca é o que justificava aquele trabalho.
Quinzenalmente os flagelados, assim chamados os trabalhadores das frentes de trabalho ou "magnú" (magro e nu), faziam longas filas no próprio local de batalha para receber seus trocados. Dinheiro mirradinho, quase nada, mas não havia felicidade maior para aqueles trabalhadores desamparados pelas forças naturais, que viam naquela pequena recompensa a força que tanta necessitavam para continuarem lutando para sobreviver. Muitas vezes, junto com o pagamento recebiam uma cesta de poucos alimentos, o que acontecia com mais regularidade para as famílias que não tinham ninguém incluído nas frentes de serviço.
Com pouquíssimas modificações, as coisas continuam como antes. As secas continuam cada vez mais castigando o povo e as promessas renovam-se a cada dia. Pelo tempo que se promete, que infinitamente se promete, se cada governante fizesse apenas um tiquinho, um bocadinho apenas do que diz, tudo já estaria resolvido. Logicamente que as secas, que são independentes do desejo humano, continuariam com seus ciclos naturais, porém outros meios, através dos avanços tecnológicos, fariam com que o sertanejo nem sentisse tanto suas afetações, suas conseqüências danosas e, de uma forma totalmente inversa do que se tem hoje, poderia até mesmo tirar proveito dos períodos de estiagens.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Em meio à raça titânica sertaneja, sempre haverá uma parcela da população que realmente não merece ser chamada de viventes do sol e da luta. Pelo contrário, não passa de verdadeira classe de vermes que se prolifera nas portas dos políticos, nas cozinhas dos endinheirados, nas praças colhendo mentiras para repassá-las adiante pelo simples prazer de ser chamada de imprestável, nojenta e falsa.
Pessoas existem que não estão nem aí para o fato de serem usados para fins politiqueiros. E o contexto até que é propício a tais práticas. A miséria, então, torna-se o ambiente mais propício para se tirar dividendos políticos. Alguns não precisam nem receber promessas e ficam logo de joelhos, lambendo os sapatos do seu algoz; outros, vendendo o resto da vergonha por um preço mais caro, aceitam qualquer esmola, principalmente uma cesta de alimentos. Esta, por sinal, mesmo sendo parte de um programa assistencialista governamental, se constitui no maior cabo eleitoral de todo o sertão. Assim, os políticos governistas retêm os alimentos como se fossem deles e daí em diante vão praticando a velha e conhecida política da troca de favores.
Sertanejo digno, honesto, valente e trabalhador deveria servir de exemplo para o sertanejo cabra safado. Ao menos deveria ser assim. É bom lembrar que um poeta sertanejo já disse que uma esmola para um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. Viver com dignidade na base do trabalho, com o emprego mesmo de curta duração, mas que garante com altivez o pão de cada dia.
Antigamente, nas épocas que batiam as estiagens brabas, de secar couro, para não se submeter às ditas e vergonhosas "caridades", não eram poucos os sertanejos que vendiam seus préstimos, seus serviços ao coronéis, aos latifundiários, poderosos do lugar. Proteger, amedrontar, dar sumiço, matar, era sempre garantia de algum lucro. E nem se poderia chamar isso de bandidagem, pois no sertão isso era uma prática de honra e não de mero enveredamento pelo mundo do crime.
No passado, ocasionalmente, nos ermos sertanejos de disputas e mais disputas pela terra e pela política, alguns trabalhadores, vendo seus normais afazeres ameaçados pelas estiagens, deixavam temporariamente suas atividades e, de armas na cintura e sinais de proteção, passavam a prestar serviços a proeminentes figuras do lugar, seguindo fielmente tudo aquilo que fosse ordenado.
"Os homens do homem", como eram chamados para designar uma outra feição dos capangas e jagunços, serviam para proteger o patrão, sua família e propriedades. Os serviços mais sujos, como tocaiar e matar, eram feitos, aí sim, pelos jagunços. Estes eram elementos que integravam as forças ou corporações particulares dos fazendeiros e chefes políticos e destinavam-se, além da proteção contra tudo e todos, à execução de crimes encomendados, em tocaias e emboscadas, participando ainda, de armas sempre em punho, nas lutas entre os clãs políticos e familiares.
Nos tempos de paz, quando o sertão foi livrando-se das sombras cruéis do mandonismo, as armas foram depostas e em seu lugar retomou com dignidade todo um aparato de foices, pás, enxadas, enxadecos e machados. Nas frentes de trabalho, serviços de melhoria ou abertura de estradas e construções de barragens e açudes, quase sempre patrocinados pelo governo federal, os sertanejos, ou melhor, aqueles escolhidos pelo chefe político local, passaram a ter uma ocupação certa num tempo difícil, pois a seca é o que justificava aquele trabalho.
Quinzenalmente os flagelados, assim chamados os trabalhadores das frentes de trabalho ou "magnú" (magro e nu), faziam longas filas no próprio local de batalha para receber seus trocados. Dinheiro mirradinho, quase nada, mas não havia felicidade maior para aqueles trabalhadores desamparados pelas forças naturais, que viam naquela pequena recompensa a força que tanta necessitavam para continuarem lutando para sobreviver. Muitas vezes, junto com o pagamento recebiam uma cesta de poucos alimentos, o que acontecia com mais regularidade para as famílias que não tinham ninguém incluído nas frentes de serviço.
Com pouquíssimas modificações, as coisas continuam como antes. As secas continuam cada vez mais castigando o povo e as promessas renovam-se a cada dia. Pelo tempo que se promete, que infinitamente se promete, se cada governante fizesse apenas um tiquinho, um bocadinho apenas do que diz, tudo já estaria resolvido. Logicamente que as secas, que são independentes do desejo humano, continuariam com seus ciclos naturais, porém outros meios, através dos avanços tecnológicos, fariam com que o sertanejo nem sentisse tanto suas afetações, suas conseqüências danosas e, de uma forma totalmente inversa do que se tem hoje, poderia até mesmo tirar proveito dos períodos de estiagens.
continua...
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segunda-feira, 26 de abril de 2010
BICHO-PAPÃO NA ESCURIDÃO (Crônica)
BICHO-PAPÃO NA ESCURIDÃO
Rangel Alves da Costa*
Dois priminhos estavam brincando e de repente começaram a travar uma pequena discussão de criança. Tudo começou quando um disse ao outro que se não brincasse direito o bicho-papão vinha de noite pra lhe fazer medo. "Ah! seu bestinha, pensa que eu sou como você que ainda acredita em bicho-papão, é? Pois fique sabendo que bicho-papão não existe e nem nunca existiu, e o que existe de verdade e que vem pegar você é o papa-figo", disse o outro. Era pra dizer papa-fígado, mas...
"Ah! é, você quer que o papa-figo venha me pegar é? Então você vai ver se o bicho-papão não vem arrancar sua língua de noite". Foi falando e já correndo pra cima do primo, e só não se embolaram pelo chão porque a mãe de um deles correu para evitar o pior e em seguida pediu à sua mãe, que estava numa cadeira de balanço fazendo tricô, que resolvesse o problema: "Mãe, por favor explique a esses dois danadinhos que não existe nem bicho-papão nem papa-figo. Dá pra senhora explicar direitinho?". Porém, como se veria depois, esta não foi a melhor solução encontrada pela jovem mãe. Basta saber o que a velha senhora disse:
- Venham cá vocês dois que eu vou contar a verdade, que é pra ver se vocês aprendem e param de brigar. Na verdade, papa-figo não existe, é tudo criação dos pais e adultos para amedrontar as crianças quando elas querem fazer ou fazem alguma besteira, mas bicho-papão existe de verdade, e digo isso porque uma vez um bicho-papão já quis me pegar...
E a filha, sem acreditar no que estava ouvindo, falou: "Mas mãe, pelo amor de Deus, ao invés de a senhora ajudar quer complicar ainda mais com essa história, parece que está caducando. Por favor, fale a verdade às crianças". E a senhora continuou, como se nem tivesse ouvido a filha.
- Papa-figo não existe, mas bicho-papão existe e vou dizer porque, mas não tenham medo não, se não corre o risco dele querer pegar vocês – E os meninos ficaram quietinhos, tremendo de medo -. Quando eu era novinha e tinha um namorado escondido do meu pai, e ele de noite vinha conversar comigo na janela do quarto, quando meu pai ouvia qualquer barulho e vinha me perguntar o que tinha sido, aí eu dizia que só podia ter sido o bicho-papão, porque eu estava sozinha, como ele mesmo podia ver. Aí ele olhava dentro do guarda-roupa, atrás da cortina e embaixo da cama, e nada do bicho-papão aparecer. Mas um dia o bicho-papão me pegou de verdade...
"Mas mãe, pelo amor de Deus, que conversas são essas, não está vendo que os seus netos estão ouvindo essas asneiras e podem acreditar nisso tudo? Ademais, veja lá onde a senhora chega com essa história de bicho-papão. Sei não...", disse a mãe já preocupada.
- Cale a boca senão eu conto como o bicho-papão pegou você. Ah!, sim, vamos continuar. Um dia, quando já era noitinha bem escura, fui lá no quintal de casa tirar uma roupa do varal porque parecia que ia chover. Assim que cheguei lá e já ia pegando a roupa senti um vulto se aproximando de repente, com um bafo quente e me segurou por trás...
"Mas mãe, pelo amor de Deus...", implorava a jovem senhora.
- Cale a boca senão eu conto. Aí, quando ele me segurou por trás a luz do quintal foi acesa e ele correu e sumiu por trás das bananeiras...
Foi quando um dos netinhos perguntou: "E aí vó, a senhora ainda voltou lá quando tava escuro, depois de quase ser comida pelo bicho-papão?". "Aí já é outra história, mas eu vou contar", disse a velha senhora.
"Mas mãe, pare com isso agora mesmo, senão vai acabar falando o que não pode e não deve", repetia a moça com ares de preocupação.
- Voltei e um dia, de noite bem escura, mas com uma lua bem bonita no céu, o bicho-papão veio ainda mais ligeiro, me pegou e me comeu...
"Pare agora mesmo com isso, mãe, não está vendo que são só crianças?", agonizava a jovem. Mas sua mãe parecia que não estava nem um pouco preocupada.
- Pois bem. O bicho-papão veio e me comeu todinha, de uma vez só. Sorte minha que eu tinha passado pimenta pelo meu corpo todinho, e aí ele, que ficou todo se ardendo com a pimenta, me cuspiu e aí eu voltei para o mundo e ainda hoje estou aqui.
"E o bicho-papão vó, desapareceu de vez, sumiu com medo da pimenta?", perguntou um dos netinhos, curioso que só.
- Que nada meu filho, acabei casando com ele...
"Mas mãe!!!...".
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
Dois priminhos estavam brincando e de repente começaram a travar uma pequena discussão de criança. Tudo começou quando um disse ao outro que se não brincasse direito o bicho-papão vinha de noite pra lhe fazer medo. "Ah! seu bestinha, pensa que eu sou como você que ainda acredita em bicho-papão, é? Pois fique sabendo que bicho-papão não existe e nem nunca existiu, e o que existe de verdade e que vem pegar você é o papa-figo", disse o outro. Era pra dizer papa-fígado, mas...
"Ah! é, você quer que o papa-figo venha me pegar é? Então você vai ver se o bicho-papão não vem arrancar sua língua de noite". Foi falando e já correndo pra cima do primo, e só não se embolaram pelo chão porque a mãe de um deles correu para evitar o pior e em seguida pediu à sua mãe, que estava numa cadeira de balanço fazendo tricô, que resolvesse o problema: "Mãe, por favor explique a esses dois danadinhos que não existe nem bicho-papão nem papa-figo. Dá pra senhora explicar direitinho?". Porém, como se veria depois, esta não foi a melhor solução encontrada pela jovem mãe. Basta saber o que a velha senhora disse:
- Venham cá vocês dois que eu vou contar a verdade, que é pra ver se vocês aprendem e param de brigar. Na verdade, papa-figo não existe, é tudo criação dos pais e adultos para amedrontar as crianças quando elas querem fazer ou fazem alguma besteira, mas bicho-papão existe de verdade, e digo isso porque uma vez um bicho-papão já quis me pegar...
E a filha, sem acreditar no que estava ouvindo, falou: "Mas mãe, pelo amor de Deus, ao invés de a senhora ajudar quer complicar ainda mais com essa história, parece que está caducando. Por favor, fale a verdade às crianças". E a senhora continuou, como se nem tivesse ouvido a filha.
- Papa-figo não existe, mas bicho-papão existe e vou dizer porque, mas não tenham medo não, se não corre o risco dele querer pegar vocês – E os meninos ficaram quietinhos, tremendo de medo -. Quando eu era novinha e tinha um namorado escondido do meu pai, e ele de noite vinha conversar comigo na janela do quarto, quando meu pai ouvia qualquer barulho e vinha me perguntar o que tinha sido, aí eu dizia que só podia ter sido o bicho-papão, porque eu estava sozinha, como ele mesmo podia ver. Aí ele olhava dentro do guarda-roupa, atrás da cortina e embaixo da cama, e nada do bicho-papão aparecer. Mas um dia o bicho-papão me pegou de verdade...
"Mas mãe, pelo amor de Deus, que conversas são essas, não está vendo que os seus netos estão ouvindo essas asneiras e podem acreditar nisso tudo? Ademais, veja lá onde a senhora chega com essa história de bicho-papão. Sei não...", disse a mãe já preocupada.
- Cale a boca senão eu conto como o bicho-papão pegou você. Ah!, sim, vamos continuar. Um dia, quando já era noitinha bem escura, fui lá no quintal de casa tirar uma roupa do varal porque parecia que ia chover. Assim que cheguei lá e já ia pegando a roupa senti um vulto se aproximando de repente, com um bafo quente e me segurou por trás...
"Mas mãe, pelo amor de Deus...", implorava a jovem senhora.
- Cale a boca senão eu conto. Aí, quando ele me segurou por trás a luz do quintal foi acesa e ele correu e sumiu por trás das bananeiras...
Foi quando um dos netinhos perguntou: "E aí vó, a senhora ainda voltou lá quando tava escuro, depois de quase ser comida pelo bicho-papão?". "Aí já é outra história, mas eu vou contar", disse a velha senhora.
"Mas mãe, pare com isso agora mesmo, senão vai acabar falando o que não pode e não deve", repetia a moça com ares de preocupação.
- Voltei e um dia, de noite bem escura, mas com uma lua bem bonita no céu, o bicho-papão veio ainda mais ligeiro, me pegou e me comeu...
"Pare agora mesmo com isso, mãe, não está vendo que são só crianças?", agonizava a jovem. Mas sua mãe parecia que não estava nem um pouco preocupada.
- Pois bem. O bicho-papão veio e me comeu todinha, de uma vez só. Sorte minha que eu tinha passado pimenta pelo meu corpo todinho, e aí ele, que ficou todo se ardendo com a pimenta, me cuspiu e aí eu voltei para o mundo e ainda hoje estou aqui.
"E o bicho-papão vó, desapareceu de vez, sumiu com medo da pimenta?", perguntou um dos netinhos, curioso que só.
- Que nada meu filho, acabei casando com ele...
"Mas mãe!!!...".
Advogado e poeta
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A palavra (Poesia)
A palavra
A palavra que é tudo
ainda não nasceu
ainda não existe
ainda não apareceu
ainda não falou
Tenho medo da palavra
quando a palavra surgir
a palavra chegar
a palavra existir
a palavra falar
e ela silenciar
quando precisar falar
olhar para ti
e você não ouvir
ela dizer que te ama
Nenhuma palavra depois
nenhuma palavra jamais
na palavra que nasceu
e em seguida morreu.
Rangel Alves da Costa
blograngel-sertao.blogspot.com
A palavra que é tudo
ainda não nasceu
ainda não existe
ainda não apareceu
ainda não falou
Tenho medo da palavra
quando a palavra surgir
a palavra chegar
a palavra existir
a palavra falar
e ela silenciar
quando precisar falar
olhar para ti
e você não ouvir
ela dizer que te ama
Nenhuma palavra depois
nenhuma palavra jamais
na palavra que nasceu
e em seguida morreu.
Rangel Alves da Costa
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SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – III
SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – III
Rangel Alves da Costa*
Mal costumeiro visitante, com suas faces de miséria e angústia; sua sede esvaziando cacimbas, tanques e açudes; passos tão medonhos que esturricam as plantas e racham s caminhos; emissário apavorante que vem sinalizando um tempo de pavor e desespero, tristeza e desolação. É a seca que vem chegando...
Por mais incrível que possa parecer, as secas são os fenômenos mais previsíveis e ao mesmo tempo mais devastadores que existem no sertão. Sendo fenômeno natural, constantemente assolando a região, coisa anunciada e que o homem na sua modéstia perante as forças divinas não consegue impedir, torna-se o divisor ainda mais acentuado entre a riqueza e a pobreza, a fartura e o não ter nada, o tanto faz e o ter de suportar calado, nas pessoas e nos animais. E por um desses mistérios da criação divina, são os bichos os que mais sofrem, mais padecem na sua dor quase que silenciosa, pois, diferentemente do homem – este ao menos abre a boca pra desconjurar -, não podem falar que estão com sede ou fome. Agonizam sim, calados, quietinhos, com algo parecido com lágrima que escorre pelos olhos, até as forças não agüentarem mais o leve peso do próprio corpo, quando desabam para morrer em qualquer descampado, mirradinhos de dá dó. E êta festa pros outros bichos que vão se achegando...
Ao ser anunciado que esta ou aquela estiagem será das mais prolongada, os sertanejos mais precavidos logo tomam uma série de providências que, na maioria das vezes, pouca serventia terá. Muitos vendem o pequeno rebanho que resta para não ter maiores prejuízos mais tarde; só que no decorrer da desolação o dinheirinho adquirido também vai embora, acaba mais cedo do que o desejado. Outros arrumam as malas e vão, com toda a família, para terras distantes, num sonho que ao invés de ser construído é sempre destruído. A maioria, pela própria experiência, simplesmente espera o que vai acontecer, se mais ou menos desgraça, se maior ou menor o sofrimento do que o imposto pela seca anterior, e que parece que foi ontem.
Logo os sertanejos estarão ouvindo que os governantes estão tomando sérias providências, medidas eficazes e duradouras para diminuir os efeitos das estiagens e então resolver, de uma vez por todas, os históricos problemas. Dizem que implementarão programas de convívio do homem com a seca; que programas de irrigação para todo o semiárido já estão sendo elaborados e logo começarão os primeiros trabalhos; que serão construídas cisternas onde quer que as famílias sertanejas estejam; enfim, que tudo está sendo planejado por técnicos altamente especializados para que todo o sertão se torne num verdadeiro oásis verdejante.
No discurso dos governantes, há uma ênfase toda especial na afirmação de que não é mais possível, e até vergonhoso, que o sertanejo venha tendo ao longo dos anos apenas soluções paliativas, somente direcionadas para sanar situações emergenciais. O que se tem de fazer – bradam nos parlamentos e nos palanques – é resolver para sempre esse grave problema. E citam que este é o compromisso maior dos seus governos, pois ficam indignados quando a imprensa noticia a mesma coisa de sempre, ou seja, a mesma seca que chegou devastando tudo, mudando somente o frescor da tinta e a data. Quando ouvem essa ladainha já conhecida por seus bisavós e antepassados destes, essa mesma conversa pra boi dormir, vergonhosamente requentada desde que o sertão é sertão, os sertanejos esquecem um pouco as suas agruras e começam a gracejar, ou "mangar", como eles mesmo dizem no linguajar costumeiro. Que cara de cedro podre a desses governantes, dizem nas rodas de fim de tarde.
Como é do conhecimento de todos, promessa e conversê de político e nada é a mesma coisa. Promessa nem se fala. Certa vez teve um que disse que já havia mandado fazer um estudo no exterior, com projeto já concluído e tudo mais, com o objetivo de abrir novos e volumosos rios ao lado de cada cidade sertaneja. Só parou com essa conversa quando começaram a chamá-lo de Deus pra cima e pra baixo. Coitado, depois teve que ir inventar outra em outro lugar, e assim ia ganhando seus votinhos e se elegendo. Deixando um pouco de lado essas safadezas, verdade é que anos a fio, parecendo uma eternidade de sofrimentos, as secas vêm e retornam, vão embora, deixam seus rastros e tudo no mesmo cenário e fazendo vítimas do mesmo sangue. O que se vê de alento são as obras emergenciais, o assistencialismo barato e desavergonhado, o império da politicagem com o sofrimento alheio. E tudo vai permanecendo como ontem e hoje, como sempre será...
Nem todos, é verdade, mas a maioria dos sertanejos tem vergonha na cara. Dói aceitar as esmolas oficiais, aquele pacotinho com arroz de última qualidade, sujo e todo quebrado, lata de óleo comestível, farinha de milho que faz um cuscuz vergonhoso, farinha imprestável, borra de café, açúcar que nunca viu refino, um pedaço de mortadela ou de jabá (hoje em dia tá muito caro) e feijão que nunca cozinha. Em certas localidades há também a distribuição de leite para as famílias que comprovarem ter crianças pequenas em suas casas. Muitas vezes, as crianças são a própria salvação da "lavoura", pois tais programas de distribuição de alimentos somente persistem porque pressupõe-se que já seria demais deixar os pequeninos sem alimentação alguma. Mas mesmo assim ainda deixam, pois as cestas básicas costumam parar nas mãos de famílias que conseguiriam sobreviver sem elas.
Pais existem que só não roubam para alimentar os filhos porque têm vergonha disso e sabem das conseqüências desastrosas que tal fato pode gerar. Mas nos momentos que só ouvem as lamentações dos menores e se sentem impotentes, sem poder fazer nada porque já imploraram o que tinham de implorar, a vontade mesmo é de fazer besteiras, de sair por aí saqueando, de dar um tapa na cara do primeiro governante que encontrar, de desacreditar em Deus. É, às vezes, até Deus torna-se culpado por permitir que aquela miséria toda ameace de morte os seus pequeninos e que não pediram para nascer, como costumam dizer...
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Mal costumeiro visitante, com suas faces de miséria e angústia; sua sede esvaziando cacimbas, tanques e açudes; passos tão medonhos que esturricam as plantas e racham s caminhos; emissário apavorante que vem sinalizando um tempo de pavor e desespero, tristeza e desolação. É a seca que vem chegando...
Por mais incrível que possa parecer, as secas são os fenômenos mais previsíveis e ao mesmo tempo mais devastadores que existem no sertão. Sendo fenômeno natural, constantemente assolando a região, coisa anunciada e que o homem na sua modéstia perante as forças divinas não consegue impedir, torna-se o divisor ainda mais acentuado entre a riqueza e a pobreza, a fartura e o não ter nada, o tanto faz e o ter de suportar calado, nas pessoas e nos animais. E por um desses mistérios da criação divina, são os bichos os que mais sofrem, mais padecem na sua dor quase que silenciosa, pois, diferentemente do homem – este ao menos abre a boca pra desconjurar -, não podem falar que estão com sede ou fome. Agonizam sim, calados, quietinhos, com algo parecido com lágrima que escorre pelos olhos, até as forças não agüentarem mais o leve peso do próprio corpo, quando desabam para morrer em qualquer descampado, mirradinhos de dá dó. E êta festa pros outros bichos que vão se achegando...
Ao ser anunciado que esta ou aquela estiagem será das mais prolongada, os sertanejos mais precavidos logo tomam uma série de providências que, na maioria das vezes, pouca serventia terá. Muitos vendem o pequeno rebanho que resta para não ter maiores prejuízos mais tarde; só que no decorrer da desolação o dinheirinho adquirido também vai embora, acaba mais cedo do que o desejado. Outros arrumam as malas e vão, com toda a família, para terras distantes, num sonho que ao invés de ser construído é sempre destruído. A maioria, pela própria experiência, simplesmente espera o que vai acontecer, se mais ou menos desgraça, se maior ou menor o sofrimento do que o imposto pela seca anterior, e que parece que foi ontem.
Logo os sertanejos estarão ouvindo que os governantes estão tomando sérias providências, medidas eficazes e duradouras para diminuir os efeitos das estiagens e então resolver, de uma vez por todas, os históricos problemas. Dizem que implementarão programas de convívio do homem com a seca; que programas de irrigação para todo o semiárido já estão sendo elaborados e logo começarão os primeiros trabalhos; que serão construídas cisternas onde quer que as famílias sertanejas estejam; enfim, que tudo está sendo planejado por técnicos altamente especializados para que todo o sertão se torne num verdadeiro oásis verdejante.
No discurso dos governantes, há uma ênfase toda especial na afirmação de que não é mais possível, e até vergonhoso, que o sertanejo venha tendo ao longo dos anos apenas soluções paliativas, somente direcionadas para sanar situações emergenciais. O que se tem de fazer – bradam nos parlamentos e nos palanques – é resolver para sempre esse grave problema. E citam que este é o compromisso maior dos seus governos, pois ficam indignados quando a imprensa noticia a mesma coisa de sempre, ou seja, a mesma seca que chegou devastando tudo, mudando somente o frescor da tinta e a data. Quando ouvem essa ladainha já conhecida por seus bisavós e antepassados destes, essa mesma conversa pra boi dormir, vergonhosamente requentada desde que o sertão é sertão, os sertanejos esquecem um pouco as suas agruras e começam a gracejar, ou "mangar", como eles mesmo dizem no linguajar costumeiro. Que cara de cedro podre a desses governantes, dizem nas rodas de fim de tarde.
Como é do conhecimento de todos, promessa e conversê de político e nada é a mesma coisa. Promessa nem se fala. Certa vez teve um que disse que já havia mandado fazer um estudo no exterior, com projeto já concluído e tudo mais, com o objetivo de abrir novos e volumosos rios ao lado de cada cidade sertaneja. Só parou com essa conversa quando começaram a chamá-lo de Deus pra cima e pra baixo. Coitado, depois teve que ir inventar outra em outro lugar, e assim ia ganhando seus votinhos e se elegendo. Deixando um pouco de lado essas safadezas, verdade é que anos a fio, parecendo uma eternidade de sofrimentos, as secas vêm e retornam, vão embora, deixam seus rastros e tudo no mesmo cenário e fazendo vítimas do mesmo sangue. O que se vê de alento são as obras emergenciais, o assistencialismo barato e desavergonhado, o império da politicagem com o sofrimento alheio. E tudo vai permanecendo como ontem e hoje, como sempre será...
Nem todos, é verdade, mas a maioria dos sertanejos tem vergonha na cara. Dói aceitar as esmolas oficiais, aquele pacotinho com arroz de última qualidade, sujo e todo quebrado, lata de óleo comestível, farinha de milho que faz um cuscuz vergonhoso, farinha imprestável, borra de café, açúcar que nunca viu refino, um pedaço de mortadela ou de jabá (hoje em dia tá muito caro) e feijão que nunca cozinha. Em certas localidades há também a distribuição de leite para as famílias que comprovarem ter crianças pequenas em suas casas. Muitas vezes, as crianças são a própria salvação da "lavoura", pois tais programas de distribuição de alimentos somente persistem porque pressupõe-se que já seria demais deixar os pequeninos sem alimentação alguma. Mas mesmo assim ainda deixam, pois as cestas básicas costumam parar nas mãos de famílias que conseguiriam sobreviver sem elas.
Pais existem que só não roubam para alimentar os filhos porque têm vergonha disso e sabem das conseqüências desastrosas que tal fato pode gerar. Mas nos momentos que só ouvem as lamentações dos menores e se sentem impotentes, sem poder fazer nada porque já imploraram o que tinham de implorar, a vontade mesmo é de fazer besteiras, de sair por aí saqueando, de dar um tapa na cara do primeiro governante que encontrar, de desacreditar em Deus. É, às vezes, até Deus torna-se culpado por permitir que aquela miséria toda ameace de morte os seus pequeninos e que não pediram para nascer, como costumam dizer...
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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domingo, 25 de abril de 2010
Depois da viagem (Poesia)
Depois da viagem
Trago o meu alforje vazio
sem gota d'água no cantil
e ainda curando as feridas
das veredas de espinhos
no caminhar dessa vida
Sedento, faminto e cansado
sem ainda ter repousado
alguém vem me dizer
que nada mais tenho
quando eu só tinha você
Caminho me aceita de volta?
vida me aceita de volta?
dor me aceita de novo?
onde estão as algemas do mundo
e o açoite do povo?
Adiante, Deus sabe e eu não
alguém me dará um copo de água
e alimentará o coração.
Rangel Alves da Costa
Trago o meu alforje vazio
sem gota d'água no cantil
e ainda curando as feridas
das veredas de espinhos
no caminhar dessa vida
Sedento, faminto e cansado
sem ainda ter repousado
alguém vem me dizer
que nada mais tenho
quando eu só tinha você
Caminho me aceita de volta?
vida me aceita de volta?
dor me aceita de novo?
onde estão as algemas do mundo
e o açoite do povo?
Adiante, Deus sabe e eu não
alguém me dará um copo de água
e alimentará o coração.
Rangel Alves da Costa
NÃO É SOLIDÃO, EU GARANTO! (Crônica)
NÃO É SOLIDÃO, EU GARANTO!
Rangel Alves da Costa*
Não preciso de consulta e prescrição médica, de avaliação de enfermeiros, de alguém que diga que já viu outro alguém assim e confirme que os sintomas são realmente disso. Não preciso de nada nem de ninguém que me diga o que tenho ou não, o que sinto ou não sinto, o que sinto por dentro ou por fora ou por fora e por dentro.
Ora, só estando doente para saber o que é solidão e como se manifesta, e eu sei. E isto porque não sinto nada de solidão. O meu problema é outro, é apenas uma coisinha simples que me predispõe a ficar sozinho, retido em meus pensamentos, mesmo que você esteja gritando ao meu lado e dizendo que estou com um problema sério. Mas não estou doente, eu sei. Mas solidão também não é doença, já confirmaram. É apenas metástase do vazio.
Repito que é apenas um intenso desejo de ficar trancado para o resto da vida, virado para a janela aberta e viajando na vida que passa, no sol e na chuva, na noite e no dia, nas brisas e ventanias. Mas isso passa logo, e há de passar porque solidão não é doença, e mesmo que eu estivesse solitário faria como fiz das outras vezes: simplesmente sumi em mim mesmo e depois reapareci quando não precisava mais de mim.
Digo mais uma vez e repito: não estou solitário nem na solidão. É bom que se diga isso porque as duas coisas são diferentes e nem se relacionam. Assim quero dizer que não estou solitário porque, mesmo que não tenha ninguém ao meu lado, não estou só, e nem poderia estar com suas vidas me rodeando e entrando e saindo dentro de mim: a você que conheci, a você que amei, a você que imaginei sempre ao meu lado e a última você. E não estou na solidão porque estou ouvindo passos e vozes que dizem que você está no jardim me esperando e eu até quero dizer que já estou indo, se não fossem as mesmas pessoas dizendo que você teve que partir, mas voltará amanhã, ou depois, ou qualquer dia...
Se eu estivesse solitário ou na solidão, claro que eu saberia. Se assim fosse neste exato momento eu poderia estar sorrindo, feliz, conversando, ouvindo música, gritando, pulando, pois a solidão tem dessas coisas de gostar de zombar com a cara dos outros e mostrar que vivem uma realidade quando a verdade é totalmente outra.
Quantos palhaços não vivem a plenitude da solidão no exato instante em que estão no picadeiro fazendo os outros felizes? Jogadores de futebol são uns solitários em campo, do mesmo modo que são os corretores da bolsa de valores, os vendedores ambulantes das ruas mais movimentadas, os torcedores quando estão na arquibancada.
Ademais, se eu estivesse com essa coisa de solidão já tinha tomado antidepressivos, uísque ou vinho, fumado um cigarro após o outro, jogado o jarro na parede, molhado lenços e mais lenços e deixado a porta fechada. Sei que não tem mais remédios, bebidas, cigarros, jarros e lenços, mas isso é outra história, que sempre faço quando quero e não simplesmente porque está esse vazio terrível dentro de mim.
Não estou normal, sei, porque quero fugir do mundo, mas garanto que isso logo passa, assim que passe também essa angústia, essa saudade e essa necessidade de distanciamento das pessoas que estão vivendo felizes lá fora. Mas não é solidão, e isso eu garanto. Até sei o que é, mas não digo que é pra você não querer viver essa, essa... Deixa pra lá. Mas não é solidão, e isso eu gostaria de garantir.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Não preciso de consulta e prescrição médica, de avaliação de enfermeiros, de alguém que diga que já viu outro alguém assim e confirme que os sintomas são realmente disso. Não preciso de nada nem de ninguém que me diga o que tenho ou não, o que sinto ou não sinto, o que sinto por dentro ou por fora ou por fora e por dentro.
Ora, só estando doente para saber o que é solidão e como se manifesta, e eu sei. E isto porque não sinto nada de solidão. O meu problema é outro, é apenas uma coisinha simples que me predispõe a ficar sozinho, retido em meus pensamentos, mesmo que você esteja gritando ao meu lado e dizendo que estou com um problema sério. Mas não estou doente, eu sei. Mas solidão também não é doença, já confirmaram. É apenas metástase do vazio.
Repito que é apenas um intenso desejo de ficar trancado para o resto da vida, virado para a janela aberta e viajando na vida que passa, no sol e na chuva, na noite e no dia, nas brisas e ventanias. Mas isso passa logo, e há de passar porque solidão não é doença, e mesmo que eu estivesse solitário faria como fiz das outras vezes: simplesmente sumi em mim mesmo e depois reapareci quando não precisava mais de mim.
Digo mais uma vez e repito: não estou solitário nem na solidão. É bom que se diga isso porque as duas coisas são diferentes e nem se relacionam. Assim quero dizer que não estou solitário porque, mesmo que não tenha ninguém ao meu lado, não estou só, e nem poderia estar com suas vidas me rodeando e entrando e saindo dentro de mim: a você que conheci, a você que amei, a você que imaginei sempre ao meu lado e a última você. E não estou na solidão porque estou ouvindo passos e vozes que dizem que você está no jardim me esperando e eu até quero dizer que já estou indo, se não fossem as mesmas pessoas dizendo que você teve que partir, mas voltará amanhã, ou depois, ou qualquer dia...
Se eu estivesse solitário ou na solidão, claro que eu saberia. Se assim fosse neste exato momento eu poderia estar sorrindo, feliz, conversando, ouvindo música, gritando, pulando, pois a solidão tem dessas coisas de gostar de zombar com a cara dos outros e mostrar que vivem uma realidade quando a verdade é totalmente outra.
Quantos palhaços não vivem a plenitude da solidão no exato instante em que estão no picadeiro fazendo os outros felizes? Jogadores de futebol são uns solitários em campo, do mesmo modo que são os corretores da bolsa de valores, os vendedores ambulantes das ruas mais movimentadas, os torcedores quando estão na arquibancada.
Ademais, se eu estivesse com essa coisa de solidão já tinha tomado antidepressivos, uísque ou vinho, fumado um cigarro após o outro, jogado o jarro na parede, molhado lenços e mais lenços e deixado a porta fechada. Sei que não tem mais remédios, bebidas, cigarros, jarros e lenços, mas isso é outra história, que sempre faço quando quero e não simplesmente porque está esse vazio terrível dentro de mim.
Não estou normal, sei, porque quero fugir do mundo, mas garanto que isso logo passa, assim que passe também essa angústia, essa saudade e essa necessidade de distanciamento das pessoas que estão vivendo felizes lá fora. Mas não é solidão, e isso eu garanto. Até sei o que é, mas não digo que é pra você não querer viver essa, essa... Deixa pra lá. Mas não é solidão, e isso eu gostaria de garantir.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – II
SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – II
Rangel Alves da Costa*
Com a terra molhada, com o braço forte do homem, com o encorajamento que Deus dá sempre, com o aproveitamento das sementes guardadas de outra safra em tonéis ou cumbucos, tudo vai se tornando expectativa de fartura no sertão. Se não for fartura, já que nada na vida é demais naqueles limites, ao menos o homem vai poder ganhar um dinheirinho vendendo o que for colhido a mais.
Dependendo do tipo de solo, tudo que for plantado nasce, e ao nascer e for possível uma boa colheita, por muito tempo o sertanejo vai livrar-se da fome e da miséria, da mais degradante situação humana de ver os filhos chorando com fome e não ter nada nem um resto de qualquer coisa para dar aos desnutridos e magricelas, porém todos barrigudinhos do barro das paredes de taipa que comem.
Assim, além de espantar por um tempo a cara feia e assustadora da fome, vai também deixar de depender das esmolas eleitoreiras dos governantes de plantão. Estes sim, de forma vergonhosa imploram aos céus todos os dias para que as nuvens de chuva sigam por caminhos bem distantes, para que a barra não anuncie inverno bom, para que não chova no sertão de jeito nenhum. São as aves agourentas que estão por todos os lugares, e na aridez sertaneja não passeiam pelos céus, mas ficam na terra maldizendo a natureza. Não poderia ser diferente: a seca que destrói alimenta os vermes da política.
Há quem diga que o sertão está ficando cada vez mais pobre. Chega o progresso, suas transformações inovadoras, e nem com isto o sertão vê-se modificado para melhor. Foi este progresso que desmatou; que trouxe as farmácias e os remédios de pouca cura, quase que deixando no esquecimento as plantas medicinais de cada quintal; também são raros os quintais imensos de antigamente. Foi o progresso que trouxe a sanha da exploração; a insaciável fome do atravessador; o esperto endinheirado que tudo fez e faz para tirar do sertanejo seu pedacinho de terra e suas vaquinhas magras, a preço vergonhoso. Foi este mesmo progresso que trouxe os bancos com seus empréstimos ilusórios, deixando sem dormir todos aqueles que tinham sono seguro. Quanto mais pagam mais devem; quando tem as dívidas perdoadas já endoidaram, enlouqueceram ou sumiram pelo mundo para morrer adiante.
Verdade é que o sertanejo sempre gostou de ter um pedacinho de terra com algumas criações – quase sempre pouquinhas, é verdade -, um tantinho só, mas que se tornam como tudo na vida, desde a galinha pedrês até a vaquinha malhada. Tanto gosta dos seus bichos que prefere passar fome a matar um capão, um porco ou um bode. Vende vivo, quem quiser que mate, mas ele não. Prefere não se manchar com o sangue daquilo que só se desfaz porque é o jeito. Com o dinheiro da venda é que vai comprar o alimento – a farinha, o feijão, o fubá, o açúcar, o café, a lata de óleo e dois quilos de carne com osso, que tem de dar pra semana inteira – e, se vintém ainda sobrar, o que é muito difícil, então é que vai comprar o fumo de rolo ou já prontinho ou a carteira de cigarro e a garrafa de pinga. Muitos preferem levar da branquinha, da pura, do engenho mesmo, pois a cachaça ficará saborosa ao ser misturada em infusão com as mais diversas cascas de pau. O que não pode esquecer, de jeito nenhum, é da "bala doce" dos meninos.
Houve um tempo em que não era difícil ter um pequeno terreno com algum tipo de criação, principalmente gado, Poucas reses, magras e dando mais trabalho que lucro, mas valia a pena. Não coisa mais gratificante para o sertanejo do que logo cedinho, na manhã ainda escurecida, levantar e daí a pouco ouvir o gado berrando, as aves já traquinando e outros animais fuçando aqui e ali.
Quando tem um terreninho e não mora no próprio cercado, na casa de taipa bonita, de barro batido do próprio terreno tendente ao massapé, todos os dias o sertanejo se desloca até sua propriedade. Ao entardecer, assim que o sol começa a esfriar mais um pouquinho, ele vai chiqueirar as vacas de leite para o cercadinho que diz que é curral. Pela manhã, assim que o galo canta, se alevanta e volta para fazer a ordenha, tirar o leite, beber numa caneca de alumínio o leite quentinho saído do peito da vaca. Muitas vezes despeja o líquido num prato com farinha e ali mesmo come. A sustança está garantida até mais tarde, quando vai comer cuscuz com leite ao lado da família.
Quando o gado é ordenhado logo é retirado do curral para se juntar com os outros animais, se houver. A alimentação destes, quase sempre escassa, se resume ao que tiver no momento e para o dia inteiro. Se tiver palma, ela é pinicada num cesto e colocada numa sombra, embaixo de pé de pau ou ao lado da casinha. Quando nem palma existe, nem farelo ou outra ração qualquer, o jeito mesmo é esperar que os animais espalhem-se pelo pasto e vão buscando qualquer tipo de planta rasteira que ainda possa existir.
Quando se chega a uma situação dessas é porque ali também não tem água para matar a sede dos bichos. Se muito pedir, se lamentar e se submeter a qualquer político que esteja no poder no momento, pode até conseguir uma carrada de água de carro-pipa. Se isto não for possível, o único jeito é rezar para chover logo ou ter que amargar ver aquele pouco que tem acabado, destruído pela raiz, pois ou venderá por qualquer dinheiro o miúdo criatório ou logo verá urubus rondando as figuras ossudas e mortas dos animais.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Com a terra molhada, com o braço forte do homem, com o encorajamento que Deus dá sempre, com o aproveitamento das sementes guardadas de outra safra em tonéis ou cumbucos, tudo vai se tornando expectativa de fartura no sertão. Se não for fartura, já que nada na vida é demais naqueles limites, ao menos o homem vai poder ganhar um dinheirinho vendendo o que for colhido a mais.
Dependendo do tipo de solo, tudo que for plantado nasce, e ao nascer e for possível uma boa colheita, por muito tempo o sertanejo vai livrar-se da fome e da miséria, da mais degradante situação humana de ver os filhos chorando com fome e não ter nada nem um resto de qualquer coisa para dar aos desnutridos e magricelas, porém todos barrigudinhos do barro das paredes de taipa que comem.
Assim, além de espantar por um tempo a cara feia e assustadora da fome, vai também deixar de depender das esmolas eleitoreiras dos governantes de plantão. Estes sim, de forma vergonhosa imploram aos céus todos os dias para que as nuvens de chuva sigam por caminhos bem distantes, para que a barra não anuncie inverno bom, para que não chova no sertão de jeito nenhum. São as aves agourentas que estão por todos os lugares, e na aridez sertaneja não passeiam pelos céus, mas ficam na terra maldizendo a natureza. Não poderia ser diferente: a seca que destrói alimenta os vermes da política.
Há quem diga que o sertão está ficando cada vez mais pobre. Chega o progresso, suas transformações inovadoras, e nem com isto o sertão vê-se modificado para melhor. Foi este progresso que desmatou; que trouxe as farmácias e os remédios de pouca cura, quase que deixando no esquecimento as plantas medicinais de cada quintal; também são raros os quintais imensos de antigamente. Foi o progresso que trouxe a sanha da exploração; a insaciável fome do atravessador; o esperto endinheirado que tudo fez e faz para tirar do sertanejo seu pedacinho de terra e suas vaquinhas magras, a preço vergonhoso. Foi este mesmo progresso que trouxe os bancos com seus empréstimos ilusórios, deixando sem dormir todos aqueles que tinham sono seguro. Quanto mais pagam mais devem; quando tem as dívidas perdoadas já endoidaram, enlouqueceram ou sumiram pelo mundo para morrer adiante.
Verdade é que o sertanejo sempre gostou de ter um pedacinho de terra com algumas criações – quase sempre pouquinhas, é verdade -, um tantinho só, mas que se tornam como tudo na vida, desde a galinha pedrês até a vaquinha malhada. Tanto gosta dos seus bichos que prefere passar fome a matar um capão, um porco ou um bode. Vende vivo, quem quiser que mate, mas ele não. Prefere não se manchar com o sangue daquilo que só se desfaz porque é o jeito. Com o dinheiro da venda é que vai comprar o alimento – a farinha, o feijão, o fubá, o açúcar, o café, a lata de óleo e dois quilos de carne com osso, que tem de dar pra semana inteira – e, se vintém ainda sobrar, o que é muito difícil, então é que vai comprar o fumo de rolo ou já prontinho ou a carteira de cigarro e a garrafa de pinga. Muitos preferem levar da branquinha, da pura, do engenho mesmo, pois a cachaça ficará saborosa ao ser misturada em infusão com as mais diversas cascas de pau. O que não pode esquecer, de jeito nenhum, é da "bala doce" dos meninos.
Houve um tempo em que não era difícil ter um pequeno terreno com algum tipo de criação, principalmente gado, Poucas reses, magras e dando mais trabalho que lucro, mas valia a pena. Não coisa mais gratificante para o sertanejo do que logo cedinho, na manhã ainda escurecida, levantar e daí a pouco ouvir o gado berrando, as aves já traquinando e outros animais fuçando aqui e ali.
Quando tem um terreninho e não mora no próprio cercado, na casa de taipa bonita, de barro batido do próprio terreno tendente ao massapé, todos os dias o sertanejo se desloca até sua propriedade. Ao entardecer, assim que o sol começa a esfriar mais um pouquinho, ele vai chiqueirar as vacas de leite para o cercadinho que diz que é curral. Pela manhã, assim que o galo canta, se alevanta e volta para fazer a ordenha, tirar o leite, beber numa caneca de alumínio o leite quentinho saído do peito da vaca. Muitas vezes despeja o líquido num prato com farinha e ali mesmo come. A sustança está garantida até mais tarde, quando vai comer cuscuz com leite ao lado da família.
Quando o gado é ordenhado logo é retirado do curral para se juntar com os outros animais, se houver. A alimentação destes, quase sempre escassa, se resume ao que tiver no momento e para o dia inteiro. Se tiver palma, ela é pinicada num cesto e colocada numa sombra, embaixo de pé de pau ou ao lado da casinha. Quando nem palma existe, nem farelo ou outra ração qualquer, o jeito mesmo é esperar que os animais espalhem-se pelo pasto e vão buscando qualquer tipo de planta rasteira que ainda possa existir.
Quando se chega a uma situação dessas é porque ali também não tem água para matar a sede dos bichos. Se muito pedir, se lamentar e se submeter a qualquer político que esteja no poder no momento, pode até conseguir uma carrada de água de carro-pipa. Se isto não for possível, o único jeito é rezar para chover logo ou ter que amargar ver aquele pouco que tem acabado, destruído pela raiz, pois ou venderá por qualquer dinheiro o miúdo criatório ou logo verá urubus rondando as figuras ossudas e mortas dos animais.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
sábado, 24 de abril de 2010
A MÃO QUE ENXUGAVA OLHOS (Crônica)
A MÃO QUE ENXUGAVA OLHOS
Rangel Alves da Costa*
A mão que enxugava as lágrimas dos que choravam não pertencia aos que estavam pranteando suas dores pela perda, pelo desespero, pela aflição. Não se sabe como, mas a mesma mão estava sempre em todos os lugares onde olhos umedecidos começassem a verter suas desesperanças.
Ninguém jamais havia percebido isso até que um dia uma criancinha de uma família muito pobre perguntou à mãe, que estivera chorando instantes atrás: "Mamãe, por que as pessoas choram muito e de repente os olhos ficam apenas entristecidos e elas param de chorar, será que vem uma mão escondida e manda a tristeza ir embora e começa a enxugar as lágrimas?".
E a mãe, totalmente perplexa com a inesperada pergunta e com a certeza de que não saberia responder corretamente, apenas disse: "As pessoas tem lencinhos guardados bem dentro do coração, e quando precisam elas pedem que eles enxuguem os olhos. Deve ser isso, minha filha...". "Pois eu já acho outra coisa", disse a menina, saindo em seguida.
Rio de Janeiro, abril de 2010. Chuvas intensas, fruto de tempestades de magnitude dificilmente vistas no lugar, deixou milhares de desabrigados, ruas completamente alagadas e moradias pobres completamente destruídas por deslizamentos em morros. Mais de duas centenas de pessoas perderam suas vidas, e as inúmeras outras que ficaram vivas foram vitimadas também pela dor da perda. Quantos olhos se viram também em tempestades e quantas lágrimas não foram derramadas como em outra enxurrada? Em todos os lugares uma única mão enxugou a nascente de todos aqueles olhos e fez aqueles sobreviventes enxergarem melhor a vida a ser reconstruída.
Haiti, janeiro de 2010. Um forte terremoto devastou diversas regiões do país, derrubando casas e prédios públicos e soterrando nos escombros milhares de vítimas; os corpos dos mortos foram amontoados pelas ruas esburacadas e pessoas vagavam doentes, famintas e sedentas, pelos ermos sem saber o que fazer, apenas chorando unissonamente a dor de todos. Até hoje as lágrimas ainda não cessaram completamente, mas uma mão invisível cuidou em dar aos olhos de cada um a força que tanto precisavam para enxergar o futuro.
Arapiraca, Alagoas, abril de 2010. Padres da Diocese afirmaram ter abusado de coroinhas durante muitos anos, com práticas também recentes e que envolviam verdadeiros festins, orgias, uso de bebidas e práticas sadomasoquistas. Um padre já idoso chegou a ser preso após depoimento à CPI da pedofilia, confessando tudo e pedindo perdão aos fieis pelos reiterados pecados cometidos. As vítimas e outras pessoas restaram indignadas e reclamaram justiça, porém ninguém chorou. Mas a Igreja sim, e os olhos derramaram as lágrimas envergonhadas daqueles que não podem chorar porque demonstraram não possuir nenhum senso de respeito próprio nem à igreja que os acolhia. A Igreja chorou, e uma mão que vive em seu interior procura agora enxugar as lágrimas do templo e as próprias lágrimas.
Sertão nordestino, a vida inteira. Em épocas de prolongadas estiagens, quando a seca começa a traduzir e mostrar o lado mais cruel da miséria absoluta, da falta de qualquer perspectiva e da desesperança que toma conta dos mais novos aos mais velhos, as lágrimas ressequidas pelo sol escaldante e pelo acostumar no sofrer, são transferidas para outros olhos, pertencentes a todos aqueles que humanamente compreendem a situação e, ao lado da lágrima, ainda oferecem um pacote de fubá de milho. Tais lágrimas, enxugadas por mão amiga, dão lugar ao sorriso, que dá forças para ajudar muito mais e transmitir aos carentes e necessitados um pouco de esperança e fé por dias melhores.
Assim que aquela meninha do começo da história retornou, sua mãe lhe chamou e perguntou: "Minha filha, o que você quis dizer mesmo quando afirmou que achava outra coisa, quando a gente falava sobre uma mão que sempre enxuga os nossos olhos e a gente nunca é capaz de enxergar ela?".
"Mamãe, se sempre estou com Deus me segurando com uma de suas mãos, a outra deve ser a que enxuga os nossos olhos", falou a menina. E a mãe lacrimejou por um breve instante...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
A mão que enxugava as lágrimas dos que choravam não pertencia aos que estavam pranteando suas dores pela perda, pelo desespero, pela aflição. Não se sabe como, mas a mesma mão estava sempre em todos os lugares onde olhos umedecidos começassem a verter suas desesperanças.
Ninguém jamais havia percebido isso até que um dia uma criancinha de uma família muito pobre perguntou à mãe, que estivera chorando instantes atrás: "Mamãe, por que as pessoas choram muito e de repente os olhos ficam apenas entristecidos e elas param de chorar, será que vem uma mão escondida e manda a tristeza ir embora e começa a enxugar as lágrimas?".
E a mãe, totalmente perplexa com a inesperada pergunta e com a certeza de que não saberia responder corretamente, apenas disse: "As pessoas tem lencinhos guardados bem dentro do coração, e quando precisam elas pedem que eles enxuguem os olhos. Deve ser isso, minha filha...". "Pois eu já acho outra coisa", disse a menina, saindo em seguida.
Rio de Janeiro, abril de 2010. Chuvas intensas, fruto de tempestades de magnitude dificilmente vistas no lugar, deixou milhares de desabrigados, ruas completamente alagadas e moradias pobres completamente destruídas por deslizamentos em morros. Mais de duas centenas de pessoas perderam suas vidas, e as inúmeras outras que ficaram vivas foram vitimadas também pela dor da perda. Quantos olhos se viram também em tempestades e quantas lágrimas não foram derramadas como em outra enxurrada? Em todos os lugares uma única mão enxugou a nascente de todos aqueles olhos e fez aqueles sobreviventes enxergarem melhor a vida a ser reconstruída.
Haiti, janeiro de 2010. Um forte terremoto devastou diversas regiões do país, derrubando casas e prédios públicos e soterrando nos escombros milhares de vítimas; os corpos dos mortos foram amontoados pelas ruas esburacadas e pessoas vagavam doentes, famintas e sedentas, pelos ermos sem saber o que fazer, apenas chorando unissonamente a dor de todos. Até hoje as lágrimas ainda não cessaram completamente, mas uma mão invisível cuidou em dar aos olhos de cada um a força que tanto precisavam para enxergar o futuro.
Arapiraca, Alagoas, abril de 2010. Padres da Diocese afirmaram ter abusado de coroinhas durante muitos anos, com práticas também recentes e que envolviam verdadeiros festins, orgias, uso de bebidas e práticas sadomasoquistas. Um padre já idoso chegou a ser preso após depoimento à CPI da pedofilia, confessando tudo e pedindo perdão aos fieis pelos reiterados pecados cometidos. As vítimas e outras pessoas restaram indignadas e reclamaram justiça, porém ninguém chorou. Mas a Igreja sim, e os olhos derramaram as lágrimas envergonhadas daqueles que não podem chorar porque demonstraram não possuir nenhum senso de respeito próprio nem à igreja que os acolhia. A Igreja chorou, e uma mão que vive em seu interior procura agora enxugar as lágrimas do templo e as próprias lágrimas.
Sertão nordestino, a vida inteira. Em épocas de prolongadas estiagens, quando a seca começa a traduzir e mostrar o lado mais cruel da miséria absoluta, da falta de qualquer perspectiva e da desesperança que toma conta dos mais novos aos mais velhos, as lágrimas ressequidas pelo sol escaldante e pelo acostumar no sofrer, são transferidas para outros olhos, pertencentes a todos aqueles que humanamente compreendem a situação e, ao lado da lágrima, ainda oferecem um pacote de fubá de milho. Tais lágrimas, enxugadas por mão amiga, dão lugar ao sorriso, que dá forças para ajudar muito mais e transmitir aos carentes e necessitados um pouco de esperança e fé por dias melhores.
Assim que aquela meninha do começo da história retornou, sua mãe lhe chamou e perguntou: "Minha filha, o que você quis dizer mesmo quando afirmou que achava outra coisa, quando a gente falava sobre uma mão que sempre enxuga os nossos olhos e a gente nunca é capaz de enxergar ela?".
"Mamãe, se sempre estou com Deus me segurando com uma de suas mãos, a outra deve ser a que enxuga os nossos olhos", falou a menina. E a mãe lacrimejou por um breve instante...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Lições da natureza (Poesia)
Lições da natureza
O mesmo tempo temporal
que sofremos hoje
foi o mesmo tempo vendaval
que vivemos ontem
e será porque ainda será
o mesmo tempo de incertezas
de furacões e tempestades
que teremos amanhã e sempre
se a nossa natureza
não procurar refletir-se
no espelho da outra natureza
que para agir procura ouvir
os lamentos da mãe terra
e nós conscientes que somos
vivemos do que lamentamos
e não conseguimos aprender
as lições que a nossa natureza
quer ensinar a cada amanhecer.
Rangel Alves da Costa
blograngel-sertao.blogspot.com
O mesmo tempo temporal
que sofremos hoje
foi o mesmo tempo vendaval
que vivemos ontem
e será porque ainda será
o mesmo tempo de incertezas
de furacões e tempestades
que teremos amanhã e sempre
se a nossa natureza
não procurar refletir-se
no espelho da outra natureza
que para agir procura ouvir
os lamentos da mãe terra
e nós conscientes que somos
vivemos do que lamentamos
e não conseguimos aprender
as lições que a nossa natureza
quer ensinar a cada amanhecer.
Rangel Alves da Costa
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SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – I
SER SERTÃO: DA ARTE DE SOBREVIVER – I
Rangel Alves da Costa*
Uma das coisas que o velho mais gostava de fazer era falar sobre as proezas do homem da terra, acerca das façanhas do sertanejo para sobreviver. Ele mesmo achava-se um exemplo vivo de todas as lutas, de todos os sofrimentos e dificuldades para continuar tendo seu espaço e seu cantinho abaixo do sol. Mais difícil ainda era ter que justificar com "o homem lá em cima" a necessidade de continuar sobrevivendo. Por isso mesmo, achava belíssima a frase de Euclides da Cunha, onde se lê que o sertanejo é antes de tudo um forte.
Nesse passo, é que demonstrava ser um crítico ferrenho das gerações passivas, preguiçosas, entregues somente a vícios mundanos, como se a vida tivesse que ser temperada com os ingredientes do que não presta. Era quando dizia que muitos só pensam no bom e no melhor, e não sabem nem a diferença entre a chuva e o sol.
Mostrando suas mãos calejadas, pegava o cachimbo, ajeitava o fumo fresquinho com o dedo, acendia a labareda do primeiro fumaçar e começava a falar incessantemente, como necessitasse dizer tudo de uma só vez. Somente de vez em quando é que parava um pouquinho, olhava para a barra no horizonte, entristecia um pouco os olhos e recomeçava a falar e a falar. E dizia:
Debaixo de todos os sóis está o sertão. Não se deve considerar como realidade da terra e do tempo o que é escrito pelos acadêmicos ou ditos intelectuais. Eles podem conhecer fórmulas e teorias mas não sabem nada sobre o que é o viver nesse viver. De lá, de muito longe, inventam palavras bonitas para uma coisa que ninguém conhece mais do que o próprio sertanejo. Quem quiser pode abrir qualquer livro de geografia que lá encontrará: O sertão é uma região agreste, afastada dos centros urbanos e sem condições ecológicas e sócio-econômicas que lhe favoreça o desenvolvimento. Designa, de modo geral, todo o interior brasileiro, principalmente as regiões semidesérticas. Em especial, o termo aplica-se fundamentalmente ao setor semiárido do nordeste.
No livro da vida e da terra o conceito é outro. Sertão é a casa, a moradia do sertanejo, do São Jorge lutador contra os dragões filhos do sol, da seca e da fome. É o leito no qual abundam o suor e a lágrima, num rio imaginário de águas que nunca saciam completamente a sede e nem matam a fome da terra e dos homens.
Ser filho desse sertão verdadeiro é aprender forçadamente a ler o livro da sobrevivência. Cada página uma estação – inverno e verão, verão e inverno, somente -, uma acentuada esperança e fé, o desejo de dias melhores, que sempre tardam a chegar. Neste livro, as personagens são muitas, a maioria sem nome definido, mas todos dentro de um contexto cujo final da saga ainda não foi escrito. São vaqueiros, aboiadores, lavadeiras, lavradores, agricultores, pedintes, prostitutas, pescadores, fazendeiros, meeiros, parteiras, desempregados, aduladores (às vezes rende algum vintém), fofoqueiros, donas-de-casa, professores, alunos, e um infinito de gente de todo tipo. Hoje em dia sem-terra com terra e bandido solto e na bandidagem é o que mais se tem, é o que mais se vê.
Seja de que modo for no sertão, na terra é onde se assenta a esperança de sobrevivência. A terra sozinha, porém, não é capaz de produzir aquilo que o sertanejo necessita. Quando está seca, esturricada, ferida pelo suor cortante, não há cristão que nela possa trabalhar, plantar, produzir e colher. Semente nenhuma vinha sem os agrados da chuva, sem, ao menos, o respingar molhado da madrugada.
É preciso esperar a chuva cair em abundância, encharcar toda a terra, deixar a água escorrer vorazmente para os rios, riachos, lagoas, tanques, barreiros e barragens, e mesmo assim saber que ainda não é hora de plantar, pois isto só deve ser feito quando a terra estiver suficientemente úmida e que continue caindo com regularidade uma chuva mais fina, mais branda, quase sereno.
Contudo, esperar que chova no sertão não é tarefa para pouca fé. Observando o que diz o ditado, quase sempre esperam sentados para não cansar. Por isso mesmo é que não há uma época certa para o plantio, cultivo ou colheita. No entanto, se a experiência matuta do sertanejo fizer a previsão que tal será bom, será de chuva suficiente para plantações, todo um calendário de esperanças deve ser seguido.
Muitos dizem que o tempo de plantar feijão é junho a julho; a maioria afirma que o certo mesmo é plantar no mês de março, no dia de São José. Muitos plantam o milho e o feijão no mesmo período, conjuntamente, casados; já outros insistem que o milho vinga mais e melhor se plantado de outubro a novembro. A mandioca, em qualquer tempo. Abóbora e melancia devem acompanhar sempre o plantio do feijão e do milho. E, numa variante, cultiva-se também o quiabo e o maxixe.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Uma das coisas que o velho mais gostava de fazer era falar sobre as proezas do homem da terra, acerca das façanhas do sertanejo para sobreviver. Ele mesmo achava-se um exemplo vivo de todas as lutas, de todos os sofrimentos e dificuldades para continuar tendo seu espaço e seu cantinho abaixo do sol. Mais difícil ainda era ter que justificar com "o homem lá em cima" a necessidade de continuar sobrevivendo. Por isso mesmo, achava belíssima a frase de Euclides da Cunha, onde se lê que o sertanejo é antes de tudo um forte.
Nesse passo, é que demonstrava ser um crítico ferrenho das gerações passivas, preguiçosas, entregues somente a vícios mundanos, como se a vida tivesse que ser temperada com os ingredientes do que não presta. Era quando dizia que muitos só pensam no bom e no melhor, e não sabem nem a diferença entre a chuva e o sol.
Mostrando suas mãos calejadas, pegava o cachimbo, ajeitava o fumo fresquinho com o dedo, acendia a labareda do primeiro fumaçar e começava a falar incessantemente, como necessitasse dizer tudo de uma só vez. Somente de vez em quando é que parava um pouquinho, olhava para a barra no horizonte, entristecia um pouco os olhos e recomeçava a falar e a falar. E dizia:
Debaixo de todos os sóis está o sertão. Não se deve considerar como realidade da terra e do tempo o que é escrito pelos acadêmicos ou ditos intelectuais. Eles podem conhecer fórmulas e teorias mas não sabem nada sobre o que é o viver nesse viver. De lá, de muito longe, inventam palavras bonitas para uma coisa que ninguém conhece mais do que o próprio sertanejo. Quem quiser pode abrir qualquer livro de geografia que lá encontrará: O sertão é uma região agreste, afastada dos centros urbanos e sem condições ecológicas e sócio-econômicas que lhe favoreça o desenvolvimento. Designa, de modo geral, todo o interior brasileiro, principalmente as regiões semidesérticas. Em especial, o termo aplica-se fundamentalmente ao setor semiárido do nordeste.
No livro da vida e da terra o conceito é outro. Sertão é a casa, a moradia do sertanejo, do São Jorge lutador contra os dragões filhos do sol, da seca e da fome. É o leito no qual abundam o suor e a lágrima, num rio imaginário de águas que nunca saciam completamente a sede e nem matam a fome da terra e dos homens.
Ser filho desse sertão verdadeiro é aprender forçadamente a ler o livro da sobrevivência. Cada página uma estação – inverno e verão, verão e inverno, somente -, uma acentuada esperança e fé, o desejo de dias melhores, que sempre tardam a chegar. Neste livro, as personagens são muitas, a maioria sem nome definido, mas todos dentro de um contexto cujo final da saga ainda não foi escrito. São vaqueiros, aboiadores, lavadeiras, lavradores, agricultores, pedintes, prostitutas, pescadores, fazendeiros, meeiros, parteiras, desempregados, aduladores (às vezes rende algum vintém), fofoqueiros, donas-de-casa, professores, alunos, e um infinito de gente de todo tipo. Hoje em dia sem-terra com terra e bandido solto e na bandidagem é o que mais se tem, é o que mais se vê.
Seja de que modo for no sertão, na terra é onde se assenta a esperança de sobrevivência. A terra sozinha, porém, não é capaz de produzir aquilo que o sertanejo necessita. Quando está seca, esturricada, ferida pelo suor cortante, não há cristão que nela possa trabalhar, plantar, produzir e colher. Semente nenhuma vinha sem os agrados da chuva, sem, ao menos, o respingar molhado da madrugada.
É preciso esperar a chuva cair em abundância, encharcar toda a terra, deixar a água escorrer vorazmente para os rios, riachos, lagoas, tanques, barreiros e barragens, e mesmo assim saber que ainda não é hora de plantar, pois isto só deve ser feito quando a terra estiver suficientemente úmida e que continue caindo com regularidade uma chuva mais fina, mais branda, quase sereno.
Contudo, esperar que chova no sertão não é tarefa para pouca fé. Observando o que diz o ditado, quase sempre esperam sentados para não cansar. Por isso mesmo é que não há uma época certa para o plantio, cultivo ou colheita. No entanto, se a experiência matuta do sertanejo fizer a previsão que tal será bom, será de chuva suficiente para plantações, todo um calendário de esperanças deve ser seguido.
Muitos dizem que o tempo de plantar feijão é junho a julho; a maioria afirma que o certo mesmo é plantar no mês de março, no dia de São José. Muitos plantam o milho e o feijão no mesmo período, conjuntamente, casados; já outros insistem que o milho vinga mais e melhor se plantado de outubro a novembro. A mandioca, em qualquer tempo. Abóbora e melancia devem acompanhar sempre o plantio do feijão e do milho. E, numa variante, cultiva-se também o quiabo e o maxixe.
continua...
Advogado e poeta
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sexta-feira, 23 de abril de 2010
Historinha de amor (Poesia)
Historinha de amor
Noite e dia
na brisa ou na ventania
o amor se escondia
numa ilha distante
à espera de um amante
que deveria chegar
numa vela perdida ao mar
e numa tarde sem luzir
quando o amor já ia partir
com sentimento de desilusão
para o mundo da solidão
uma onda de força voraz
levou a ilha de volta ao cais
onde o amor entristecido
fez da vida arrependido
preferiu não ficar
e se jogou ao mar
O amor não pôde amar
e nem sabia nadar...
Rangel Alves da Costa
Noite e dia
na brisa ou na ventania
o amor se escondia
numa ilha distante
à espera de um amante
que deveria chegar
numa vela perdida ao mar
e numa tarde sem luzir
quando o amor já ia partir
com sentimento de desilusão
para o mundo da solidão
uma onda de força voraz
levou a ilha de volta ao cais
onde o amor entristecido
fez da vida arrependido
preferiu não ficar
e se jogou ao mar
O amor não pôde amar
e nem sabia nadar...
Rangel Alves da Costa
PRECISAMOS APRENDER QUE... (Crônica)
PRECISAMOS APRENDER QUE...
Rangel Alves da Costa*
Quem pensa a guerra, planeja e ordena que se faça o ataque deveria seguir à frente de suas tropas, de seus soldados e de seus comandantes, para saber como é estar no campo de batalha, na mira do inimigo, tendo que matar para não morrer. Se o primeiro canhão lançado do outro lado atingisse seu coração, não haveria mais guerra, pelo menos aquela, pois o homem nasceu para dialogar e não para guerrear.
Quem faz da vida uma aventura perigosa, enveredando pelos muitos caminhos do mau que se clareiam à sua frente, deveria pagar o mais alto tributo moral, social e jurídico assim que cometa o segundo erro, pois aquele que não aprende logo no primeiro deslize cometido é indigno de viver proliferando os seus desacertos perante a sociedade, atingindo pessoas que não tem nenhuma culpa pelas ervas daninhas que insistem em se alastrar ao lado dos frutos bons.
Quem faz da religião um verdadeiro comércio da fé, instalando templos, espalhando falsos sermões, iludindo a consciência de pessoas humildes e sem a devida noção crítica de realidade, tirando destas tudo o que for possível, com falsas promessas de salvação, deveria, a partir da primeira denúncia feita contra o seu culto, ser constrangido judicialmente para que prove a seriedade de sua pregação e, caso se confirme a prática de uso da fé para fins de enriquecimento ilícito, que tenha o seu templo fechado para sempre e que cumpra a pena segundo a gravidade do ilícito praticado. Se já há previsão legal neste sentido, que deixe de ser mera previsão para se tornar em efetiva aplicação face a estes comerciantes da fé.
Quem faz do seu corpo, ativa ou passivamente, objeto de comércio sexual, prestando os favores da carne em troca de qualquer moeda ou outras formas de recompensa, jamais poderá justificar sua atitude sob a alegação de que tal profissão é a mais antiga do mundo ou que o sexo pago é tão frequente – até mesmo entre os mais insuspeitos e de onde ninguém jamais se esperaria – quanto almoçar ou tomar banho. Tal alegação, querendo justificar a fraqueza moral e espiritual, deveria servir como exemplo maior e fundamento para que as pessoas se reconheçam muito mais importantes e fortes do que se trocar por um ou dois tostões, como se o corpo servisse somente para o uso e abuso dos outros e não para o orgulho e deleite próprio.
Quem faz dos seus momentos de lazer e convivência familiar um diálogo com a televisão e não com a família, deveria saber que enquanto se encanta com os modismos e as lições pervertidas, do mesmo modo os seus estão seguindo o mesmo caminho, e quando surgir – porque sempre surge – a necessidade urgente de dialogar para resolver algo que já se tornou num problema, as soluções encontradas serão tão fictícias quanto as suas vidas se tornaram, vez que já não sabem ser nem dublê de si mesmos. A família, nascida como entidade de amor e convivência harmônica, de repente se transforma num seriado enlatado, num reality show ou até, quem sabe, num desses canais eróticos que para entrar é preciso ter senha. Lamentável...
Quem faz do seu livro de cabeceira um caderninho com folhas contendo somente contas e mais contas, rabiscos e mais rabiscos, e a cada noite são acrescidos mais números de dívidas e preocupações, deveria rasgar este caderno e passar a carregar consigo um novinho em folha. Somente assim pensaria duas vezes antes de fazer do consumo exagerado uma prática viciosa e, com certeza, tomaria vergonha e evitaria estar a todo instante puxando o seu caderno novinho diante dos outros para colocar nele contas desnecessárias feitas ou para se fazer.
Quem faz do instante que tem na vida – pois mais longa que seja a vida, não passa de um breve instante – um desencontro com os bons hábitos, com a boa leitura e a boa música, com a reflexão sobre as pequenas coisas (que se tornam imensamente belas), com o enveredamento nos caminhos da filosofia e com o diálogo necessário com a loucura, jamais vai poder compreender que a vida é muito mais instigante do que realmente parece ser. E alguém já disse que se todos nós temos um pouco daquilo que é próprio dos loucos, que conheçamos de antemão a diferença entre jogar uma pedra e uma flor.
Quem faz da vida um tributo a si mesmo e uma homenagem de reconhecimento e valorização de sua existência, será sempre digno de respeito dos seus e das demais pessoas, pois o ser humano que sobre a terra habita não é somente um ser que nasce e que vai morrer, mas sim uma pessoa que será eternamente vista pelas construções éticas, morais e humanitárias que fez frutificar na sua passagem. Porque, parodiando Rudyard Kipling, "Tua foste a Terra com tudo o que existe no mundo, e - o que ainda é muito mais – foste um Homem, meu filho".
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
Quem pensa a guerra, planeja e ordena que se faça o ataque deveria seguir à frente de suas tropas, de seus soldados e de seus comandantes, para saber como é estar no campo de batalha, na mira do inimigo, tendo que matar para não morrer. Se o primeiro canhão lançado do outro lado atingisse seu coração, não haveria mais guerra, pelo menos aquela, pois o homem nasceu para dialogar e não para guerrear.
Quem faz da vida uma aventura perigosa, enveredando pelos muitos caminhos do mau que se clareiam à sua frente, deveria pagar o mais alto tributo moral, social e jurídico assim que cometa o segundo erro, pois aquele que não aprende logo no primeiro deslize cometido é indigno de viver proliferando os seus desacertos perante a sociedade, atingindo pessoas que não tem nenhuma culpa pelas ervas daninhas que insistem em se alastrar ao lado dos frutos bons.
Quem faz da religião um verdadeiro comércio da fé, instalando templos, espalhando falsos sermões, iludindo a consciência de pessoas humildes e sem a devida noção crítica de realidade, tirando destas tudo o que for possível, com falsas promessas de salvação, deveria, a partir da primeira denúncia feita contra o seu culto, ser constrangido judicialmente para que prove a seriedade de sua pregação e, caso se confirme a prática de uso da fé para fins de enriquecimento ilícito, que tenha o seu templo fechado para sempre e que cumpra a pena segundo a gravidade do ilícito praticado. Se já há previsão legal neste sentido, que deixe de ser mera previsão para se tornar em efetiva aplicação face a estes comerciantes da fé.
Quem faz do seu corpo, ativa ou passivamente, objeto de comércio sexual, prestando os favores da carne em troca de qualquer moeda ou outras formas de recompensa, jamais poderá justificar sua atitude sob a alegação de que tal profissão é a mais antiga do mundo ou que o sexo pago é tão frequente – até mesmo entre os mais insuspeitos e de onde ninguém jamais se esperaria – quanto almoçar ou tomar banho. Tal alegação, querendo justificar a fraqueza moral e espiritual, deveria servir como exemplo maior e fundamento para que as pessoas se reconheçam muito mais importantes e fortes do que se trocar por um ou dois tostões, como se o corpo servisse somente para o uso e abuso dos outros e não para o orgulho e deleite próprio.
Quem faz dos seus momentos de lazer e convivência familiar um diálogo com a televisão e não com a família, deveria saber que enquanto se encanta com os modismos e as lições pervertidas, do mesmo modo os seus estão seguindo o mesmo caminho, e quando surgir – porque sempre surge – a necessidade urgente de dialogar para resolver algo que já se tornou num problema, as soluções encontradas serão tão fictícias quanto as suas vidas se tornaram, vez que já não sabem ser nem dublê de si mesmos. A família, nascida como entidade de amor e convivência harmônica, de repente se transforma num seriado enlatado, num reality show ou até, quem sabe, num desses canais eróticos que para entrar é preciso ter senha. Lamentável...
Quem faz do seu livro de cabeceira um caderninho com folhas contendo somente contas e mais contas, rabiscos e mais rabiscos, e a cada noite são acrescidos mais números de dívidas e preocupações, deveria rasgar este caderno e passar a carregar consigo um novinho em folha. Somente assim pensaria duas vezes antes de fazer do consumo exagerado uma prática viciosa e, com certeza, tomaria vergonha e evitaria estar a todo instante puxando o seu caderno novinho diante dos outros para colocar nele contas desnecessárias feitas ou para se fazer.
Quem faz do instante que tem na vida – pois mais longa que seja a vida, não passa de um breve instante – um desencontro com os bons hábitos, com a boa leitura e a boa música, com a reflexão sobre as pequenas coisas (que se tornam imensamente belas), com o enveredamento nos caminhos da filosofia e com o diálogo necessário com a loucura, jamais vai poder compreender que a vida é muito mais instigante do que realmente parece ser. E alguém já disse que se todos nós temos um pouco daquilo que é próprio dos loucos, que conheçamos de antemão a diferença entre jogar uma pedra e uma flor.
Quem faz da vida um tributo a si mesmo e uma homenagem de reconhecimento e valorização de sua existência, será sempre digno de respeito dos seus e das demais pessoas, pois o ser humano que sobre a terra habita não é somente um ser que nasce e que vai morrer, mas sim uma pessoa que será eternamente vista pelas construções éticas, morais e humanitárias que fez frutificar na sua passagem. Porque, parodiando Rudyard Kipling, "Tua foste a Terra com tudo o que existe no mundo, e - o que ainda é muito mais – foste um Homem, meu filho".
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – III
SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – III
Rangel Alves da Costa*
E o velho continuou com a leitura da biografia, na parte que cuidava do nascimento e adolescência do imprestável ser sertanejo:
"Na idade de 6 meses foi levado à pia batismal, recebendo o nome de...
Deparou novo campo de abusões populares. Pretendem uns que a água-benta passava-lhe pela cabeça sem molhá-la; que o óleo santo volatizava-se ao tocar-lhe o corpo e ascendia ao teto em espirais. Muitos, enfim, asseveram que no ato do batismo a criança tinha os lábios crispados por aquele riso sarcástico que Ninon de Leuclos observou nos lábios do ateu infante que mais tarde distinguiu Voltaire. O pequeno (...) nunca engatinhou, principiou arrastando-se com a barriga pelo chão à maneira dos répteis.
Seu choro era também objeto de espanto e curiosidade: principiava com o silvar da serpente e descia gradualmente até ao sarrido do urso-marinho. Quando mamava afagava a mãe e mordia-lhe o peito. Anos mais tarde ele tinha também de arrastar-se diante dos partidos, afagar os chefes e depois morder-lhes a mão protetora que lhe dera amparo",
Quando o velho parou a leitura por um instante, no intuito de tomar um gole de água e acender o cachimbo de fumo cheiroso – servia também pra espantar maus espíritos, dizia ele -, um rapazinho que estava ouvindo tudo desde o começo perguntou:
- Mas meu senhor, tem certeza de que essa pessoa que o tal de Catunda relata aí era realmente gente, pessoa de carne e osso como a gente? Fico pensando se não tá mais pra bicho do que pra humano e qual a razão de já nascer com esse instinto ruim, e aí é que vem outra pergunta: se pequeno já é assim, o que não será quando já tiver homem feito?
Dando largas baforadas, o velho respondeu:
- Já diz o ditado que pau que nasce torto cresce torto, envelhece torto e morre torto. É que tem gente que não tem jeito mesmo, pois nasce como coisa ruim e com o tempo, ao invés de mudar, o que faz é aprimorar seu jeito de fazer maldades. Esse personagem é um, mas com certeza conhecemos muito mais pessoas que são desse mesmo jeitinho. Aliás..., mas deixa pra lá e vamos prosseguir:
"Com a idade de 12 anos completos, entrou na escoa o maldito (...). A esse tempo, já era ele o terror dos outros meninos, os quais evitavam-lhe a companhia. (...) sua natureza intrigante e rixosa principiava a desenvolver-se. Com os hábitos de espadachim, contraídos nessa educação desprezada, cresciam os instintos de perversidade nativa.
Um dia reuniu-se em capítulo a família do maldito para deliberar sobre o seu destino ulterior. Opinaram uns que ele se dedicasse a um ofício mecânico; que aprendesse o ofício de pedreiro ou carpina; queriam outros que ele se dedicasse ao comércio; estes, a ser vaqueiro; aquele, ao trabalho de foice e machado. Mas todas essas opiniões foram sucessivamente combatidas.
Queria-se uma profissão que pudesse corrigir, em parte ao menos, os vícios temporais que começavam a depravar aquela alma de 18 anos. Um velho tio disse: É melhor sentar-lhe praça; talvez que a chibata e as agruras do serviço militar possam atenuar os vícios de seu caráter e tornar menos perigosas essas inclinações viciosas. Este parecer foi geralmente aplaudido.
Por desgraça do município e seus habitantes, aquela resolução não foi levada a efeito. Os pais do maldito tomaram o acordo de dedica-lo ao sacerdócio e à igreja, esperando que as doutrinas evangélicas lhe tocassem a alma, operassem uma transformação radical no seu espírito refratário aos sentimentos de humanidade e religião". Contudo, foi pior, acrescentou o velho.
E disse mais: A igreja, por falsidade do maldito que deveria lhe resguardar e respeitar, viu-se, mais tarde, e onde quer que ele estivesse, como um palanque para a obtenção de poderes terrenos. A hóstia virou moeda; a fé, uma submissão política; a própria política tornou-se um jogo nefasto e promíscuo de interesses, com o poder sendo abençoado pela corrupção moral; e aqueles que, por via da safadeza ou da ignorância absoluta (coisa que é muito difícil hoje em dia), tornaram-se cúmplice da ascensão do espírito das trevas em meio aos homens de bem. Estes, na pior companhia, mas muitas vezes porque assim querem estar, caminharão por caminhos tortuosos e de sofrimentos até encontrarem o abismo.
"Mas meu velho, essa história toda que o senhor acabou de contar não tem tudo a ver com esse homem que está aí, que nesse momento deve estar na prefeitura, que largou a batina para se tornar prefeito desse lugar, do nosso município, não?", perguntou um rapaz.
"Você é livre para pensar o que bem entender meu jovem. Eu tenho minha convicção definida quanto a isso, e por isso mesmo me benzo todas as vezes que ele passa. Mas qualquer identificação um com o outro poderá ter sido mera coincidência, ou não...".
Tendo dito isto, em silêncio o velho ficou e assim permaneceu, charutando o seu fumo e a sua cheirosa fumaça. Notava-se nele total destemor pelo que havia contado. Todos os outros presentes pareciam perplexos e atemorizados.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
E o velho continuou com a leitura da biografia, na parte que cuidava do nascimento e adolescência do imprestável ser sertanejo:
"Na idade de 6 meses foi levado à pia batismal, recebendo o nome de...
Deparou novo campo de abusões populares. Pretendem uns que a água-benta passava-lhe pela cabeça sem molhá-la; que o óleo santo volatizava-se ao tocar-lhe o corpo e ascendia ao teto em espirais. Muitos, enfim, asseveram que no ato do batismo a criança tinha os lábios crispados por aquele riso sarcástico que Ninon de Leuclos observou nos lábios do ateu infante que mais tarde distinguiu Voltaire. O pequeno (...) nunca engatinhou, principiou arrastando-se com a barriga pelo chão à maneira dos répteis.
Seu choro era também objeto de espanto e curiosidade: principiava com o silvar da serpente e descia gradualmente até ao sarrido do urso-marinho. Quando mamava afagava a mãe e mordia-lhe o peito. Anos mais tarde ele tinha também de arrastar-se diante dos partidos, afagar os chefes e depois morder-lhes a mão protetora que lhe dera amparo",
Quando o velho parou a leitura por um instante, no intuito de tomar um gole de água e acender o cachimbo de fumo cheiroso – servia também pra espantar maus espíritos, dizia ele -, um rapazinho que estava ouvindo tudo desde o começo perguntou:
- Mas meu senhor, tem certeza de que essa pessoa que o tal de Catunda relata aí era realmente gente, pessoa de carne e osso como a gente? Fico pensando se não tá mais pra bicho do que pra humano e qual a razão de já nascer com esse instinto ruim, e aí é que vem outra pergunta: se pequeno já é assim, o que não será quando já tiver homem feito?
Dando largas baforadas, o velho respondeu:
- Já diz o ditado que pau que nasce torto cresce torto, envelhece torto e morre torto. É que tem gente que não tem jeito mesmo, pois nasce como coisa ruim e com o tempo, ao invés de mudar, o que faz é aprimorar seu jeito de fazer maldades. Esse personagem é um, mas com certeza conhecemos muito mais pessoas que são desse mesmo jeitinho. Aliás..., mas deixa pra lá e vamos prosseguir:
"Com a idade de 12 anos completos, entrou na escoa o maldito (...). A esse tempo, já era ele o terror dos outros meninos, os quais evitavam-lhe a companhia. (...) sua natureza intrigante e rixosa principiava a desenvolver-se. Com os hábitos de espadachim, contraídos nessa educação desprezada, cresciam os instintos de perversidade nativa.
Um dia reuniu-se em capítulo a família do maldito para deliberar sobre o seu destino ulterior. Opinaram uns que ele se dedicasse a um ofício mecânico; que aprendesse o ofício de pedreiro ou carpina; queriam outros que ele se dedicasse ao comércio; estes, a ser vaqueiro; aquele, ao trabalho de foice e machado. Mas todas essas opiniões foram sucessivamente combatidas.
Queria-se uma profissão que pudesse corrigir, em parte ao menos, os vícios temporais que começavam a depravar aquela alma de 18 anos. Um velho tio disse: É melhor sentar-lhe praça; talvez que a chibata e as agruras do serviço militar possam atenuar os vícios de seu caráter e tornar menos perigosas essas inclinações viciosas. Este parecer foi geralmente aplaudido.
Por desgraça do município e seus habitantes, aquela resolução não foi levada a efeito. Os pais do maldito tomaram o acordo de dedica-lo ao sacerdócio e à igreja, esperando que as doutrinas evangélicas lhe tocassem a alma, operassem uma transformação radical no seu espírito refratário aos sentimentos de humanidade e religião". Contudo, foi pior, acrescentou o velho.
E disse mais: A igreja, por falsidade do maldito que deveria lhe resguardar e respeitar, viu-se, mais tarde, e onde quer que ele estivesse, como um palanque para a obtenção de poderes terrenos. A hóstia virou moeda; a fé, uma submissão política; a própria política tornou-se um jogo nefasto e promíscuo de interesses, com o poder sendo abençoado pela corrupção moral; e aqueles que, por via da safadeza ou da ignorância absoluta (coisa que é muito difícil hoje em dia), tornaram-se cúmplice da ascensão do espírito das trevas em meio aos homens de bem. Estes, na pior companhia, mas muitas vezes porque assim querem estar, caminharão por caminhos tortuosos e de sofrimentos até encontrarem o abismo.
"Mas meu velho, essa história toda que o senhor acabou de contar não tem tudo a ver com esse homem que está aí, que nesse momento deve estar na prefeitura, que largou a batina para se tornar prefeito desse lugar, do nosso município, não?", perguntou um rapaz.
"Você é livre para pensar o que bem entender meu jovem. Eu tenho minha convicção definida quanto a isso, e por isso mesmo me benzo todas as vezes que ele passa. Mas qualquer identificação um com o outro poderá ter sido mera coincidência, ou não...".
Tendo dito isto, em silêncio o velho ficou e assim permaneceu, charutando o seu fumo e a sua cheirosa fumaça. Notava-se nele total destemor pelo que havia contado. Todos os outros presentes pareciam perplexos e atemorizados.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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quinta-feira, 22 de abril de 2010
Gota de sangue (Poesia)
Gota de sangue
Chorar ou sorrir tanto faz
a minha feição inerte
e o teu semblante impassivo
não são nada e não dizem nada
o meu gesto de preocupação
e a tua atitude de desespero
não significam coisa alguma
diante da gota de sangue
que não queremos enxergar
que não queremos sentir
que não queremos curar
e onde a gota de sangue estará
senão no nosso silêncio
que cala e não quer dizer
"ou nosso amor ou esse ciúme
que vai sangrar o que nos resta ter".
Rangel Alves da Costa
Chorar ou sorrir tanto faz
a minha feição inerte
e o teu semblante impassivo
não são nada e não dizem nada
o meu gesto de preocupação
e a tua atitude de desespero
não significam coisa alguma
diante da gota de sangue
que não queremos enxergar
que não queremos sentir
que não queremos curar
e onde a gota de sangue estará
senão no nosso silêncio
que cala e não quer dizer
"ou nosso amor ou esse ciúme
que vai sangrar o que nos resta ter".
Rangel Alves da Costa
SEXO EM OFERTA (Crônica)
SEXO EM OFERTA
Rangel Alves da Costa*
Como as necessidades humanas geraram as primeiras trocas de objetos, estas se transformaram em relações negociais e após se aperfeiçoaram como compra a venda especializada de mercadorias, da mesma forma o sexo procurou se firmar enquanto negócio especializado em corpo. Só que com suas peculiaridades inerentes à oferta e à procura.
Segundo a lei da oferta e da procura, sempre que um produto é muito procurado, adquirido e consumido, seu preço tende a aumentar cada vez mais; quando um produto de custo elevado é muito adquirido, sua fabricação tende a aumentar, é estimulada; quando muitos produtos são comercializados e devido a essa quantidade o preço baixa, sua produção é desestimulada. No comércio do sexo funciona de modo diferente, principalmente quanto ao desestímulo na produção.
Enquanto produto de compra e venda, vez que este tem na oferta uma importância maior do que na procura, o sexo parece ser determinado pela qualidade e não pela quantidade. Se quem está disposta a comercializar seu produto possui uma carinha de ninfeta, é possuidora de atributos físicos que são verdadeiro marketing, não possua muito uso e esteja exposta em lugar não muito banalizado, a tendência é que se faça um bom negócio. E isto vale para os dois sexos.
Determinados consumidores, quando se dispõem a pagar um preço mais elevado pelo produto, geralmente se tornam mais exigentes. Dão uma passeadazinha pelos shoppings, observam determinados gestos e olhares, vão até outros points, caminham pelas esquinas, passam pelas praças e num destes lugares certamente irá encontrar pessoas oferecendo todo tipo de sexo e sexo para as mais diversas utilidades.
Muitas vezes, determinados consumidores apressados, doidos para descarregar seus impulsos, por necessidade urgente e premente ou porque realmente não sabem escolher e se contentam com qualquer coisa, só não colocam em prática e usam o produto na hora porque a pessoa que vai vender este diz que tem um lugarzindo reservado exclusivamente para o teste drive, e que ali não seria ideal porque o seu produto possui múltiplas funcionalidades e que aquele local não é o lugar adequado para a sua desnuda demonstração. De tão ávidos, muitos se contentam em abrir a caixa do produto e já se dão por satisfeitos.
Como afirmado, existem certos lugares onde pessoas querem sutilmente realizar seu comércio, vendendo seus corpos e suas vergonhas por preços superfaturados, vez que muitas vezes a qualidade do produto não é confiável e de qualidade muito inferior ao encontrado num breguinha qualquer de ponta de rua. Mas o preço é dado pela aparência da pessoa e do lugar, e é por isso que todos sabem que comprar prazeres sexuais nos shoppings, nas academias e nas festas glamurosas sai por um preço muito maior do que nas feirinhas das trocas das ruas escuras, nas sulancas da prostituição e nas ofertas-relâmpagos que a todo instante surgem em qualquer lugar.
Existe outro fator que influencia muito no preço do sexo, gerando muitas vezes ofertas imperdíveis e outras vezes produtos podendo serem adquiridos totalmente grátis. Isto ocorre muito nas baladas, nas festinhas entre amigos e na amiga que maliciosamente vai apresentando amigas a amigos, e vice-versa, alimentando assim um verdadeiro círculo de prostituição cordial. E não são raras às vezes que alguém olha para o outro, se aproxima e a única coisa que diz é que quer dar seu produto sexual e pronto. Quantos não vivem transando por aí sem ao menos já terem visto antes ou saber dos nomes dos parceiros, se assim podem ser chamados? Na prostituição oficializada ao menos não tem essa feição de sexo desconhecido, pois o único compromisso é o prazer de um e o lucro do outro.
O problema é que como as coisas estão indo não há prêmio Nobel em economia que faça qualquer previsão sobre o comércio sexual, a prostituição por qualquer moeda e a total desvalorização cambial da vergonha. Ora, se de repente não haverá mais o que se comprar, vez que o sexo de tão banalizado não terá mais valor algum, deverá se impor a teoria que já vem sendo aplicada na prática e que diz: o sexo pago é desvantagem na medida em que é a pessoa que deveria pagar que passará a receber dinheiro para praticá-lo.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Rangel Alves da Costa*
Como as necessidades humanas geraram as primeiras trocas de objetos, estas se transformaram em relações negociais e após se aperfeiçoaram como compra a venda especializada de mercadorias, da mesma forma o sexo procurou se firmar enquanto negócio especializado em corpo. Só que com suas peculiaridades inerentes à oferta e à procura.
Segundo a lei da oferta e da procura, sempre que um produto é muito procurado, adquirido e consumido, seu preço tende a aumentar cada vez mais; quando um produto de custo elevado é muito adquirido, sua fabricação tende a aumentar, é estimulada; quando muitos produtos são comercializados e devido a essa quantidade o preço baixa, sua produção é desestimulada. No comércio do sexo funciona de modo diferente, principalmente quanto ao desestímulo na produção.
Enquanto produto de compra e venda, vez que este tem na oferta uma importância maior do que na procura, o sexo parece ser determinado pela qualidade e não pela quantidade. Se quem está disposta a comercializar seu produto possui uma carinha de ninfeta, é possuidora de atributos físicos que são verdadeiro marketing, não possua muito uso e esteja exposta em lugar não muito banalizado, a tendência é que se faça um bom negócio. E isto vale para os dois sexos.
Determinados consumidores, quando se dispõem a pagar um preço mais elevado pelo produto, geralmente se tornam mais exigentes. Dão uma passeadazinha pelos shoppings, observam determinados gestos e olhares, vão até outros points, caminham pelas esquinas, passam pelas praças e num destes lugares certamente irá encontrar pessoas oferecendo todo tipo de sexo e sexo para as mais diversas utilidades.
Muitas vezes, determinados consumidores apressados, doidos para descarregar seus impulsos, por necessidade urgente e premente ou porque realmente não sabem escolher e se contentam com qualquer coisa, só não colocam em prática e usam o produto na hora porque a pessoa que vai vender este diz que tem um lugarzindo reservado exclusivamente para o teste drive, e que ali não seria ideal porque o seu produto possui múltiplas funcionalidades e que aquele local não é o lugar adequado para a sua desnuda demonstração. De tão ávidos, muitos se contentam em abrir a caixa do produto e já se dão por satisfeitos.
Como afirmado, existem certos lugares onde pessoas querem sutilmente realizar seu comércio, vendendo seus corpos e suas vergonhas por preços superfaturados, vez que muitas vezes a qualidade do produto não é confiável e de qualidade muito inferior ao encontrado num breguinha qualquer de ponta de rua. Mas o preço é dado pela aparência da pessoa e do lugar, e é por isso que todos sabem que comprar prazeres sexuais nos shoppings, nas academias e nas festas glamurosas sai por um preço muito maior do que nas feirinhas das trocas das ruas escuras, nas sulancas da prostituição e nas ofertas-relâmpagos que a todo instante surgem em qualquer lugar.
Existe outro fator que influencia muito no preço do sexo, gerando muitas vezes ofertas imperdíveis e outras vezes produtos podendo serem adquiridos totalmente grátis. Isto ocorre muito nas baladas, nas festinhas entre amigos e na amiga que maliciosamente vai apresentando amigas a amigos, e vice-versa, alimentando assim um verdadeiro círculo de prostituição cordial. E não são raras às vezes que alguém olha para o outro, se aproxima e a única coisa que diz é que quer dar seu produto sexual e pronto. Quantos não vivem transando por aí sem ao menos já terem visto antes ou saber dos nomes dos parceiros, se assim podem ser chamados? Na prostituição oficializada ao menos não tem essa feição de sexo desconhecido, pois o único compromisso é o prazer de um e o lucro do outro.
O problema é que como as coisas estão indo não há prêmio Nobel em economia que faça qualquer previsão sobre o comércio sexual, a prostituição por qualquer moeda e a total desvalorização cambial da vergonha. Ora, se de repente não haverá mais o que se comprar, vez que o sexo de tão banalizado não terá mais valor algum, deverá se impor a teoria que já vem sendo aplicada na prática e que diz: o sexo pago é desvantagem na medida em que é a pessoa que deveria pagar que passará a receber dinheiro para praticá-lo.
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SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – II
SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – II
Rangel Alves da Costa*
Em 1871 Joaquim Catunda editou uma "Biografia do Reverendo Padre Correia", e é de passagens desta que será possível encontrar elementos que permitam conhecer como veio ao mundo, como foi estirpado da infeliz entranha a vil personagem aqui tratada, disse o velho.
Sem acrescentar ou modificar nada, para melhor ou pior, para fazer carniça ainda maior do desditoso, ou qualquer outro aspecto, o que será repassado demonstra a mais pura verdade, se é assim que se possa acreditar, sobre o nascimento e meninice desse desventurado e putrefato ser.
Começa Catunda: "Em princípio deste século (...) nasceu uma criança do sexo masculino. Era uma hora da madrugada. As trevas tornaram-se mais expessas; uivavam os cães; as aves da noite esvoaçadas apavoradas soltando longos e dolorosos pios; ouvia-se um ribombo prolongado e surdo como o de um trovão subterrâneo; o solo foi agitado por síbitas e violentas comoções e um cheiro acre de enxofre derramou-se pela casa da parturiente e circunvizinhança.
Realidade ou superstição, a parteira afirma ter visto entrar na câmara um homem de fisionomia hedionda e repelente, tomar nos braços o recém-nascido, apertá-lo amorosamente ao peito e murmurar-lhe palavras misteriosas em uma língua que não parecia da terra.
Tomada de assombro por tão estranho prodígio, a infeliz parteira persignou-se, invocando o nome da Virgem Celeste. O desconhecido desapareceu subitamente, deixando a criança sob os panos com aquelas feições sinistras e patibulares que ainda hoje, apesar da ação lenta do tempo, fazem dessa pessoa um objeto de asco e de horror".
Enquanto o velho lia o relato biográfico desse ser imprestável, exemplificando com isto outra pessoa existente ali naquela localidade, mais e mais ouvintes chegavam, e todos se comportando tão seriamente para ouvir que parecia mais a leitura de um sermão bíblico. E continuou o velho:
"Foi um ano calamitoso em toda a região: as chuvas faltaram, secaram as águas, os calores ardentes do sertão mataram as sementeiras, a fome e a peste dizimaram a população. O sol, ao desaparecer, deixava os moribundos extorcendo-se nas agonias extremas e, no outro dia, alumiava um montão de cadáveres.
Os bons sertanejos, que sempre gostaram de dar circulação aos escândalos da vida íntima, ocuparam-se muito desses fatos e os interpretaram ao sabor das superstições do tempo. Afirmavam que aquele menino fora gerado numa sexta-feira santa com o concurso de pai putativo e a crença se generalizava de que o Anticristo havia nascido encarnand0-se nele, e todos julgavam próximo o fim do mundo.
O transeunte, ao passar em frente à sua casa, acelerava o passo, murmurando o 'Creio em Deus Padre', e apenas as sombras da noite começavam a estender-se pela cidade, seus habitantes fechavam as portas.
Como quer que fosse, esse menino, ainda sem nome, cujo nascimento assombrava a natureza, e a quem o céu, em sua cólera contra o gênero humano, concedeu vida (...), veio a ser mais tarde o libertino, o devasso, o traidor...".
Nesse passo da leitura, o velho foi interrompido por um dos assistentes: "Olha lá, olha lá quem vai passando lá adiante, acompanhado daquele monte de puxa-sacos, que na verdade não passam de fanáticos daquela coisa ruim em pessoa. Sei não, meu bom velho, mas como é que elegem um traste desse para prefeito, hein?". E o velho respondeu: "Meu filho, que fique aqui pra nós e amanhã pro mundo, mas tem muita coisa nessa história de poder desse homem que foge à nossa compreensão, por ser fruto de uma poderosíssima intercessão das forças do mal. Isso pode ter certeza". E se benzeu; e todos os presentes acompanharam o padre, na busca da proteção divina. E o velho prosseguiu:
"Gerado por graça do Satanás, segundo a crença popular, ele devia, em todo tempo, em todo curso de sua existência, mostrar-se digno de sua infernal origem. Ele devia levar cinco vezes a desonra ao seio da família, prostituir a juventude, macular pela calúnia, a reputação das pessoas conceituadas; pela intriga, acender as paixões das famílias, açular-lhes os ódios, e jubilar depois como um tigre, diante da imensa hecatombe que produziram aqueles ódios; ele devia profanar os altares, perverter as almas confiadas aos seus cuidados; trair os homens e os partidos e representar a figura viva do crápula mais abjeto e torpe e do vício mais orgulhoso e sórdido".
Era deveras impressionante a concentração daquele pequeno grupo de pessoas para ouvir o relato do velho. Ele sabia, contudo, que nem todos aqueles que estavam ali o faziam por desejo de ouvir aquela instigante história, mas sim para saber o que estava se passando e o que conversavam para, em seguida, irem para os fundos da prefeitura contar ao próprio prefeito. Não ganhavam nada com isso, mas o simples fato de serem fofoqueiros oficiais já lhes assomava como se fosse grande coisa. Não sabendo que estavam jogando o jogo do "coisa ruim".
continua...
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Em 1871 Joaquim Catunda editou uma "Biografia do Reverendo Padre Correia", e é de passagens desta que será possível encontrar elementos que permitam conhecer como veio ao mundo, como foi estirpado da infeliz entranha a vil personagem aqui tratada, disse o velho.
Sem acrescentar ou modificar nada, para melhor ou pior, para fazer carniça ainda maior do desditoso, ou qualquer outro aspecto, o que será repassado demonstra a mais pura verdade, se é assim que se possa acreditar, sobre o nascimento e meninice desse desventurado e putrefato ser.
Começa Catunda: "Em princípio deste século (...) nasceu uma criança do sexo masculino. Era uma hora da madrugada. As trevas tornaram-se mais expessas; uivavam os cães; as aves da noite esvoaçadas apavoradas soltando longos e dolorosos pios; ouvia-se um ribombo prolongado e surdo como o de um trovão subterrâneo; o solo foi agitado por síbitas e violentas comoções e um cheiro acre de enxofre derramou-se pela casa da parturiente e circunvizinhança.
Realidade ou superstição, a parteira afirma ter visto entrar na câmara um homem de fisionomia hedionda e repelente, tomar nos braços o recém-nascido, apertá-lo amorosamente ao peito e murmurar-lhe palavras misteriosas em uma língua que não parecia da terra.
Tomada de assombro por tão estranho prodígio, a infeliz parteira persignou-se, invocando o nome da Virgem Celeste. O desconhecido desapareceu subitamente, deixando a criança sob os panos com aquelas feições sinistras e patibulares que ainda hoje, apesar da ação lenta do tempo, fazem dessa pessoa um objeto de asco e de horror".
Enquanto o velho lia o relato biográfico desse ser imprestável, exemplificando com isto outra pessoa existente ali naquela localidade, mais e mais ouvintes chegavam, e todos se comportando tão seriamente para ouvir que parecia mais a leitura de um sermão bíblico. E continuou o velho:
"Foi um ano calamitoso em toda a região: as chuvas faltaram, secaram as águas, os calores ardentes do sertão mataram as sementeiras, a fome e a peste dizimaram a população. O sol, ao desaparecer, deixava os moribundos extorcendo-se nas agonias extremas e, no outro dia, alumiava um montão de cadáveres.
Os bons sertanejos, que sempre gostaram de dar circulação aos escândalos da vida íntima, ocuparam-se muito desses fatos e os interpretaram ao sabor das superstições do tempo. Afirmavam que aquele menino fora gerado numa sexta-feira santa com o concurso de pai putativo e a crença se generalizava de que o Anticristo havia nascido encarnand0-se nele, e todos julgavam próximo o fim do mundo.
O transeunte, ao passar em frente à sua casa, acelerava o passo, murmurando o 'Creio em Deus Padre', e apenas as sombras da noite começavam a estender-se pela cidade, seus habitantes fechavam as portas.
Como quer que fosse, esse menino, ainda sem nome, cujo nascimento assombrava a natureza, e a quem o céu, em sua cólera contra o gênero humano, concedeu vida (...), veio a ser mais tarde o libertino, o devasso, o traidor...".
Nesse passo da leitura, o velho foi interrompido por um dos assistentes: "Olha lá, olha lá quem vai passando lá adiante, acompanhado daquele monte de puxa-sacos, que na verdade não passam de fanáticos daquela coisa ruim em pessoa. Sei não, meu bom velho, mas como é que elegem um traste desse para prefeito, hein?". E o velho respondeu: "Meu filho, que fique aqui pra nós e amanhã pro mundo, mas tem muita coisa nessa história de poder desse homem que foge à nossa compreensão, por ser fruto de uma poderosíssima intercessão das forças do mal. Isso pode ter certeza". E se benzeu; e todos os presentes acompanharam o padre, na busca da proteção divina. E o velho prosseguiu:
"Gerado por graça do Satanás, segundo a crença popular, ele devia, em todo tempo, em todo curso de sua existência, mostrar-se digno de sua infernal origem. Ele devia levar cinco vezes a desonra ao seio da família, prostituir a juventude, macular pela calúnia, a reputação das pessoas conceituadas; pela intriga, acender as paixões das famílias, açular-lhes os ódios, e jubilar depois como um tigre, diante da imensa hecatombe que produziram aqueles ódios; ele devia profanar os altares, perverter as almas confiadas aos seus cuidados; trair os homens e os partidos e representar a figura viva do crápula mais abjeto e torpe e do vício mais orgulhoso e sórdido".
Era deveras impressionante a concentração daquele pequeno grupo de pessoas para ouvir o relato do velho. Ele sabia, contudo, que nem todos aqueles que estavam ali o faziam por desejo de ouvir aquela instigante história, mas sim para saber o que estava se passando e o que conversavam para, em seguida, irem para os fundos da prefeitura contar ao próprio prefeito. Não ganhavam nada com isso, mas o simples fato de serem fofoqueiros oficiais já lhes assomava como se fosse grande coisa. Não sabendo que estavam jogando o jogo do "coisa ruim".
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quarta-feira, 21 de abril de 2010
ALGUÉM ME VIU POR AÍ? (Crônica)
ALGUÉM ME VIU POR AÍ?
Rangel Alves da Costa*
Não sei é ou foi assim mesmo, mas há muito tempo que saí de casa, que não abro minha porta, que não fico na janela ao entardecer, que não coloco a cadeira de balanço no quintal em noites de lua cheia, que não deito em minha rede, que não sei o que é casa. Não estou vagando à toa pelas ruas, eu sei; não vivo abandonado em qualquer outro lugar, tenho certeza; não tive problemas de esquecimento e me perdi, sem dúvidas. Mas a verdade é que não estou aqui nem ali. E alguém me viu por aí?
Todos os dias deito muito tarde, acordo bem cedinho, caminho ao alvorecer, converso com as plantas e os bichos ou com quem encontrar pela frente, faço tudo que deve ser feito numa manhã e depois me preparo para fazer o que tenha de ser feito pelo resto do dia. E nesse pedaço de dia que me falta viver, infelizmente tenho de fazer aquilo que certamente as pessoas de bem (será que sou?) tem de fazer, que é entrar como ingrediente na salada da vida, onde na mesma panela se juntam podres, perdidos, vencidos. Como se vê, sou uma pessoa normal, e por isso mesmo não deveria estar perguntando aos outros se alguém me viu por aí.
Mas pergunto porque não estou conseguindo me encontrar. E acho que tudo começou quando, de repente, roubaram o vento e a brisa que passavam na minha janela, a única lua que tinha ao anoitecer, o pedaço inteiro de sol que me restava, as cores do jardim que costumava enxergar, os caminhos estreitos e verdejantes por onde procurava caminhar, o horizonte com suas nuvens e passarinhos e, o que é pior e mais dolorido, a capacidade de ter sentimentos com tudo isso e a incapacidade de me admirar com qualquer outra coisa. Só pode ter sido isso!
Outra hipótese para o meu desaparecimento diz respeito ao sonho que resolvi sonhar. E tudo aconteceu assim: Dizem que se a gente ficar pensando e pensando numa coisa antes de deitar, guardando o nome, a feição, situações que digam respeito ao objeto do sonho, àquilo que se quer sonhar, quando as imagens adormecidas começam a chegar logo é fácil identificar a pessoa que se quer ver, as cenas que com ela quer ter e o demais que foi pensado. Ocorre que no meu sonho, ao invés de chamá-la para perto de mim, era ela que acenava dizendo que fosse, e com um sorriso tão encantador e aquele jeito tão belo de ser que fiquei sem saída e atendi ao chamado. Sei que acordei, mas ainda não voltei do sonho que sonhei e a verdade é que ainda continuo por lá fazendo não sei o que.
Contudo, pode não ser nada disso. E talvez realmente não seja porque se assim fosse as pessoas não teriam me encontrado em muitos lugares e nas mais diversas situações. Chegaram a comentar que me viram entrando numa loja que vendia poesias e textos usados, criatividade de segunda mão; que eu estava no balcão de agência que vende passagens para a lua, para o infinito, para o desconhecido e outros lugares mais ou menos estranhos; que eu andava com a lanterna de Diógenes procurando, em meio à sociedade atual, qual era o homem honesto ainda existente; que eu estava pregando que no lugar das estátuas dos heróis deveriam ser colocadas imensas fotografias mostrando situações de pobreza e miséria absolutas, da adolescência perdida por esquecimento, de crianças famintas e de cenas que provocam pânico nos olhos daqueles que só se contentam em enxergar vitrines. Em qualquer dessas situações eu estaria completamente maluco, com certeza. Ou não?...
Assim, de uma forma ou de outra muitos me viram por aí, mas isso não quer dizer quase nada porque o que preciso saber é onde realmente eu possa estar agora, para poder ir até lá é me encontrar. É que preciso falar comigo, preciso dizer a mim mesmo que ainda sou meu amigo e pedir que volte para onde estou. Vou prometer que se voltar vou me dar de presente uma namorada bem bonita e cheirando a flor e escrever um longo e belo poema, todo branco e sem rimas. Como é a vida...
Advogado e poeta
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Rangel Alves da Costa*
Não sei é ou foi assim mesmo, mas há muito tempo que saí de casa, que não abro minha porta, que não fico na janela ao entardecer, que não coloco a cadeira de balanço no quintal em noites de lua cheia, que não deito em minha rede, que não sei o que é casa. Não estou vagando à toa pelas ruas, eu sei; não vivo abandonado em qualquer outro lugar, tenho certeza; não tive problemas de esquecimento e me perdi, sem dúvidas. Mas a verdade é que não estou aqui nem ali. E alguém me viu por aí?
Todos os dias deito muito tarde, acordo bem cedinho, caminho ao alvorecer, converso com as plantas e os bichos ou com quem encontrar pela frente, faço tudo que deve ser feito numa manhã e depois me preparo para fazer o que tenha de ser feito pelo resto do dia. E nesse pedaço de dia que me falta viver, infelizmente tenho de fazer aquilo que certamente as pessoas de bem (será que sou?) tem de fazer, que é entrar como ingrediente na salada da vida, onde na mesma panela se juntam podres, perdidos, vencidos. Como se vê, sou uma pessoa normal, e por isso mesmo não deveria estar perguntando aos outros se alguém me viu por aí.
Mas pergunto porque não estou conseguindo me encontrar. E acho que tudo começou quando, de repente, roubaram o vento e a brisa que passavam na minha janela, a única lua que tinha ao anoitecer, o pedaço inteiro de sol que me restava, as cores do jardim que costumava enxergar, os caminhos estreitos e verdejantes por onde procurava caminhar, o horizonte com suas nuvens e passarinhos e, o que é pior e mais dolorido, a capacidade de ter sentimentos com tudo isso e a incapacidade de me admirar com qualquer outra coisa. Só pode ter sido isso!
Outra hipótese para o meu desaparecimento diz respeito ao sonho que resolvi sonhar. E tudo aconteceu assim: Dizem que se a gente ficar pensando e pensando numa coisa antes de deitar, guardando o nome, a feição, situações que digam respeito ao objeto do sonho, àquilo que se quer sonhar, quando as imagens adormecidas começam a chegar logo é fácil identificar a pessoa que se quer ver, as cenas que com ela quer ter e o demais que foi pensado. Ocorre que no meu sonho, ao invés de chamá-la para perto de mim, era ela que acenava dizendo que fosse, e com um sorriso tão encantador e aquele jeito tão belo de ser que fiquei sem saída e atendi ao chamado. Sei que acordei, mas ainda não voltei do sonho que sonhei e a verdade é que ainda continuo por lá fazendo não sei o que.
Contudo, pode não ser nada disso. E talvez realmente não seja porque se assim fosse as pessoas não teriam me encontrado em muitos lugares e nas mais diversas situações. Chegaram a comentar que me viram entrando numa loja que vendia poesias e textos usados, criatividade de segunda mão; que eu estava no balcão de agência que vende passagens para a lua, para o infinito, para o desconhecido e outros lugares mais ou menos estranhos; que eu andava com a lanterna de Diógenes procurando, em meio à sociedade atual, qual era o homem honesto ainda existente; que eu estava pregando que no lugar das estátuas dos heróis deveriam ser colocadas imensas fotografias mostrando situações de pobreza e miséria absolutas, da adolescência perdida por esquecimento, de crianças famintas e de cenas que provocam pânico nos olhos daqueles que só se contentam em enxergar vitrines. Em qualquer dessas situações eu estaria completamente maluco, com certeza. Ou não?...
Assim, de uma forma ou de outra muitos me viram por aí, mas isso não quer dizer quase nada porque o que preciso saber é onde realmente eu possa estar agora, para poder ir até lá é me encontrar. É que preciso falar comigo, preciso dizer a mim mesmo que ainda sou meu amigo e pedir que volte para onde estou. Vou prometer que se voltar vou me dar de presente uma namorada bem bonita e cheirando a flor e escrever um longo e belo poema, todo branco e sem rimas. Como é a vida...
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Todas as vezes... (Poesia)
Todas as vezes...
Uma vez alegrei-me
com um certo sorriso
e como era lindo
você sorrindo!
Certa vez encantei-me
com o teu meigo olhar
e como coração foi inflando
você me olhando!
Outra vez apressei-me
para te ver docemente passar
e como fiquei olhando
você passando!
De vez em quando
nas noites contigo sonhando
como é bom estar inventando
nós nos amando!
Desta vez encorajei-me
para dizer que te amava
e como dói a aflição
continuar na solidão!
Rangel Alves da Costa
Uma vez alegrei-me
com um certo sorriso
e como era lindo
você sorrindo!
Certa vez encantei-me
com o teu meigo olhar
e como coração foi inflando
você me olhando!
Outra vez apressei-me
para te ver docemente passar
e como fiquei olhando
você passando!
De vez em quando
nas noites contigo sonhando
como é bom estar inventando
nós nos amando!
Desta vez encorajei-me
para dizer que te amava
e como dói a aflição
continuar na solidão!
Rangel Alves da Costa
SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – I
SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – I
Rangel Alves da Costa*
Sobre certas coisas o velho não gostava de falar de jeito nenhum. Fatos existem que é melhor ser esquecidos, dizia. Mas um dia, não se sabe o porquê, ele decidiu que falaria sobre uma profecia que há muito, nas distâncias perdidas do tempo, espalhara-se sobre o sertão.
Tudo girava em torno de alguém nascido distante do lugar, que chegava na cidade usando batina, iludindo humildes fiéis com palavras talhadas com o fingimento e a dissimulação, e se tornaria político, mas na verdade tudo isso não passava de uma trama urdida pelo "coisa ruim", voltado das trevas na figura daquela pessoa toda com jeito de mansa e bondosa – só na aparência e nos modos aparentes -, para tornar a vida de todos da comunidade num verdadeiro inferno. Era o homem de batina, de chifre e estridente na mão. E depois de benzer-se três vezes, o velho começou a falar.
Até hoje, por mais invenção espirituosa que se possa ter, ninguém já soube ou sabe das reais circunstâncias que fez vir ao mundo essa pessoa sobre a qual será forçoso falar. Segundo os mais velhos, terá morte certa aquele que quiser esmiuçar, desenterrar qualquer verdade. Muitos afirmam que o dito nem nasceu e que, na verdade, é um espírito mau que veio diretamente da escuridão dos tormentos para mortificar a vida das pessoas de bem, simples e humildes. Outros, mostrando muito mais cautela, asseguram que o danado é gente mesmo, de carne e osso, só que no lugar no sangue o que corre é um fel impregnado de substâncias putrefatas.
Retirando alguns escritos de uma pasta amarrotada, o velho disse que, diante da anormalidade do caso, seria preciso usar uma alegoria, ou seja, representar uma coisa através de outra, no sentido de que a forma figurada se aproxime ao máximo daquilo que realmente se quer demonstrar. E foi através da genial criação de Mário de Andrade, com o seu endiabrado Macunaíma, que o velho começou a relatar aquilo que poderia ter sido a vinda ao mundo do desditoso sertanejo.
"No fundo do mato-virgem nasceu 'o dito', herói de nossa gente. Era preto e retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricuera, que a índia Tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de...
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
- Ai! que preguiça!...
E não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha (...). O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas Si punha os olhos em dinheiro, 'o dito' dandava pra ganhar vintém (...).
Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.
Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que espinho que pinica, de pequeno já traz ponta (...)".
A bem dizer, uma pessoa idealizada como a figura de Macunaíma mostra-se mais como um herói peralta do que como um nojento em sua plenitude, como caracteriza-se verdadeiramente a incúria, o descuido da natureza humana que busca-se identificar. Desse modo, nada mais coerente que se tente encontrar de imediato fatos que se coadunem realmente com o nascimento e infância dessa coisa infame, abjeta, que veio trazer desonra para o mundo dos homens de bem.
continua...
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Sobre certas coisas o velho não gostava de falar de jeito nenhum. Fatos existem que é melhor ser esquecidos, dizia. Mas um dia, não se sabe o porquê, ele decidiu que falaria sobre uma profecia que há muito, nas distâncias perdidas do tempo, espalhara-se sobre o sertão.
Tudo girava em torno de alguém nascido distante do lugar, que chegava na cidade usando batina, iludindo humildes fiéis com palavras talhadas com o fingimento e a dissimulação, e se tornaria político, mas na verdade tudo isso não passava de uma trama urdida pelo "coisa ruim", voltado das trevas na figura daquela pessoa toda com jeito de mansa e bondosa – só na aparência e nos modos aparentes -, para tornar a vida de todos da comunidade num verdadeiro inferno. Era o homem de batina, de chifre e estridente na mão. E depois de benzer-se três vezes, o velho começou a falar.
Até hoje, por mais invenção espirituosa que se possa ter, ninguém já soube ou sabe das reais circunstâncias que fez vir ao mundo essa pessoa sobre a qual será forçoso falar. Segundo os mais velhos, terá morte certa aquele que quiser esmiuçar, desenterrar qualquer verdade. Muitos afirmam que o dito nem nasceu e que, na verdade, é um espírito mau que veio diretamente da escuridão dos tormentos para mortificar a vida das pessoas de bem, simples e humildes. Outros, mostrando muito mais cautela, asseguram que o danado é gente mesmo, de carne e osso, só que no lugar no sangue o que corre é um fel impregnado de substâncias putrefatas.
Retirando alguns escritos de uma pasta amarrotada, o velho disse que, diante da anormalidade do caso, seria preciso usar uma alegoria, ou seja, representar uma coisa através de outra, no sentido de que a forma figurada se aproxime ao máximo daquilo que realmente se quer demonstrar. E foi através da genial criação de Mário de Andrade, com o seu endiabrado Macunaíma, que o velho começou a relatar aquilo que poderia ter sido a vinda ao mundo do desditoso sertanejo.
"No fundo do mato-virgem nasceu 'o dito', herói de nossa gente. Era preto e retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricuera, que a índia Tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de...
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
- Ai! que preguiça!...
E não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha (...). O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas Si punha os olhos em dinheiro, 'o dito' dandava pra ganhar vintém (...).
Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.
Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que espinho que pinica, de pequeno já traz ponta (...)".
A bem dizer, uma pessoa idealizada como a figura de Macunaíma mostra-se mais como um herói peralta do que como um nojento em sua plenitude, como caracteriza-se verdadeiramente a incúria, o descuido da natureza humana que busca-se identificar. Desse modo, nada mais coerente que se tente encontrar de imediato fatos que se coadunem realmente com o nascimento e infância dessa coisa infame, abjeta, que veio trazer desonra para o mundo dos homens de bem.
continua...
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