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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 21 de abril de 2010

SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – I

SER SERTÃO: DA ARTE DE NASCER IMPRESTÁVEL – I

Rangel Alves da Costa*


Sobre certas coisas o velho não gostava de falar de jeito nenhum. Fatos existem que é melhor ser esquecidos, dizia. Mas um dia, não se sabe o porquê, ele decidiu que falaria sobre uma profecia que há muito, nas distâncias perdidas do tempo, espalhara-se sobre o sertão.
Tudo girava em torno de alguém nascido distante do lugar, que chegava na cidade usando batina, iludindo humildes fiéis com palavras talhadas com o fingimento e a dissimulação, e se tornaria político, mas na verdade tudo isso não passava de uma trama urdida pelo "coisa ruim", voltado das trevas na figura daquela pessoa toda com jeito de mansa e bondosa – só na aparência e nos modos aparentes -, para tornar a vida de todos da comunidade num verdadeiro inferno. Era o homem de batina, de chifre e estridente na mão. E depois de benzer-se três vezes, o velho começou a falar.
Até hoje, por mais invenção espirituosa que se possa ter, ninguém já soube ou sabe das reais circunstâncias que fez vir ao mundo essa pessoa sobre a qual será forçoso falar. Segundo os mais velhos, terá morte certa aquele que quiser esmiuçar, desenterrar qualquer verdade. Muitos afirmam que o dito nem nasceu e que, na verdade, é um espírito mau que veio diretamente da escuridão dos tormentos para mortificar a vida das pessoas de bem, simples e humildes. Outros, mostrando muito mais cautela, asseguram que o danado é gente mesmo, de carne e osso, só que no lugar no sangue o que corre é um fel impregnado de substâncias putrefatas.
Retirando alguns escritos de uma pasta amarrotada, o velho disse que, diante da anormalidade do caso, seria preciso usar uma alegoria, ou seja, representar uma coisa através de outra, no sentido de que a forma figurada se aproxime ao máximo daquilo que realmente se quer demonstrar. E foi através da genial criação de Mário de Andrade, com o seu endiabrado Macunaíma, que o velho começou a relatar aquilo que poderia ter sido a vinda ao mundo do desditoso sertanejo.
"No fundo do mato-virgem nasceu 'o dito', herói de nossa gente. Era preto e retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricuera, que a índia Tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de...
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
- Ai! que preguiça!...
E não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha (...). O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas Si punha os olhos em dinheiro, 'o dito' dandava pra ganhar vintém (...).
Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.
Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que espinho que pinica, de pequeno já traz ponta (...)".
A bem dizer, uma pessoa idealizada como a figura de Macunaíma mostra-se mais como um herói peralta do que como um nojento em sua plenitude, como caracteriza-se verdadeiramente a incúria, o descuido da natureza humana que busca-se identificar. Desse modo, nada mais coerente que se tente encontrar de imediato fatos que se coadunem realmente com o nascimento e infância dessa coisa infame, abjeta, que veio trazer desonra para o mundo dos homens de bem.


continua...



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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