OS MENINOS DA MARQUISE
Rangel Alves da Costa*
A partir do anoitecer, quando a lua vagueia iluminando o destino da noite e os telhados e as lajes das casas e apartamentos protegem aqueles que podem se resguardar das intempéries da natureza, como o vento, o frio, a chuva e as tempestades, e as pessoas buscam embaixo desses tetos proteção e segurança e o conforto para dormir em paz, sob a única marquise do lugar a realidade era bem diferente.
Quem passasse próximo à marquise da loja comercial podia enxergar seus habitantes noturnos, como bichos que procuram suas tocas para descansar protegidos dos inimigos naturais. Contudo, não eram coelhos, raposas, lebres ou preás que estavam ali, mas sim meninos de ruas, abandonados por qualquer destino social, que faziam daquela marquise o único teto de proteção e leito de bem dormir, e onde davam vozes aos seus vícios, comiam os restos que levavam e dormiam seus sonhos inimagináveis. Como serão os sonhos dos que dormem sob a marquise, cobertos por um pedaço de papelão?
Não eram animais cansados que estavam ali, nem pessoas que instantaneamente se abrigaram no local para repousar. Quem estava ali, quem fazia moradia no lugar ao anoitecer e noite adentro eram quatro meninos que, como todos os meninos, possuíam nome e sobrenome, pais e familiares e nasceram para ser gente na vida, viver com dignidade e se fazerem adultos responsáveis e úteis à sociedade. Aquela situação em que viviam deveria, pois, ser uma realidade passageira, pois crianças devem estudar, brincar, crescer fortes e sadias. Mas contrariando a razão da vida, quem se abrigava ali não eram meninos, mas simplesmente Paulo, João, Tiago e Lucas. Nomes de "gente de família". Os quatro evangelistas da bíblia também tinham esses nomes.
Paulo tinha sete anos, fugiu da pobreza de casa e foi morar nas ruas porque não suportava mais a fome que passava e o alcoolismo dos pais. João tinha oito anos e dizia que morava nas ruas porque sua mãe não ligava pra ele e nem sabia quem era seu pai. Tiago, também de oito anos, foi acostumando a sair de casa e pedir esmola nas esquinas e de repente não voltou mais nem foi procurado. Lucas, sobre este ninguém sabia de nada e nem o próprio comentava sobre os motivos de estar vivendo naquela situação.
Como se fossem os quatro cavaleiros do apocalipse, suas ações cotidianas eram severamente reprovadas pela sociedade. Acostumaram a fazer pequenos furtos, imploravam esmolas, pediam ou catavam restos de comida, cheiravam cola, usavam outras drogas se adultos oferecessem, tinham fome, se cansavam, tinham sono, mas não tinham futuro. O problema é que não tinham futuro. Mas teriam também o presente?
Eram bonitos esses quatro pequenos cavaleiros do apocalipse; eram lindos mesmo com os cabelos desgrenhados, roupas desengonçadas, corpos maltratados e olhos indecifráveis como o horizonte. Mas eram feios esses meninos, eram horríveis os quatro pequenos amigos. Há feiúra maior do que ser pobre, miserável, abandonado, possuidor de chão duro e frio como cama e papelão como cobertor? Há coisa mais abjeta e nojenta do que o menor abandonado que não tem dignidade porque também não tem vida, porque não tem família, porque não tem ninguém? Há coisa mais deplorável do que os meninos lindos que são feios porque são pobres e vivem por aí e dormem sob marquises?
O espelho da sociedade honesta e de fina estampa não pode refletir as imagens dos meninos na marquise, que deitam o seu sono cansado e sonham seus pesadelos. O espelho da sociedade casta e moralista não pode refletir as imagens dos meninos que tomam banho no chafariz e depois vestem os mesmos trapos. O espelho da sociedade dignificada pelo trabalho e pela honradez se quebraria se visse os meninos pegando às escondidas um pacote de biscoito ou furtando uma cera de engraxar sapatos. O espelho da sociedade egoísta só gosta de refletir o batom, o brilho, o penteado e a roupa de grife; se contagia ao espelhar faces que não passam de rostos que apenas recobrem a impureza da alma. Quando o sol começa a nascer, eis o espelho dos meninos, refletindo sempre os caminhos pelas ruas.
Mas chegou o inverno, tempo de chuvas fortes, tempestades, trovoadas, relâmpagos e trovões, de ventos fortes espalhando as coisas frágeis pelo ar. O dono da loja da marquise reformou a fachada do seu comércio e derrubou aquele lar dos meninos ao anoitecer. Quem passa pelo local, acostumado a ver os quatro pequenos cavaleiros reunidos e em comunhão pelo destino, fica somente imaginando qual o paradeiro daquelas quatro forças vivas da nação, fica pensando onde poderiam estar agora abrigados Paulo, João, Tiago e Lucas. Não haveria outra marquise no lugar que pudesse abrigar a vida, vez que a própria vida nem sempre quer acolher a vida.
Onde era a marquise agora é um letreiro bem grande, luminoso ao anoitecer: "Tudo para o seu lar". E dizem que o dono da loja mandou derrubar a marquise enquanto os meninos dormiam embaixo.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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