SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 29 de abril de 2010

MOÇA TRISTE NO CAIS (Crônica)

MOÇA TRISTE NO CAIS

Rangel Alves da Costa*


Moça triste no cais. Parece nome de pintura dos poetas de óleos e aquarelas, dos artistas que retratam marinas, portos, areia da praia que vai invadindo o mar e vice-versa, barcos que chegam cansados e tristes, velas distantes de tristeza solitária; pontinhos que se descortinam nas distâncias. Moça triste no cais. Parece uma cena de fim de tarde. E é...
O cais onde a moça chegava todos os finais de tarde para ficar ali, mirando o horizonte com o sol naquele amarelado de despedida, observando as gaivotas pairando entre água e céu, avistando lá longe os barcos solitários e as velas pequeninas naquela imensidão, ansiando pela chegada feliz das embarcações no ancoradouro, era um cais alegre e triste, feio e bonito, de encontros e despedidas. Era um cais com seus ais. E quantos ais adormecidos nas dores do cais...
Era um cais que causava prazer e aflição. E era assim porque todo cais é misterioso para o navegante de suas areias. Não do mar, que tem destino certo, mas da margem que repousa em si a tristeza e a solidão. A moça sabia bem disso. Ninguém conhecia mais os mistérios do cais quanto ela. Uma vez quis virar sereia para entrar nas águas e fugir dali.
Quem está na beira do cais sempre tem um compromisso com as águas adiante, que permite o embarcar e desembarcar de pessoas com sonhos e destinos diferentes, que vela o barco que voltou sozinho porque o pescador foi chamado pelos seres das águas, que traz o alimento do retorno na pessoa que ficou dois dias mar adentro e não pescou nem o almoço que era pra ser ontem.
Por isso o cais é misterioso, e mais enigmático ainda nas noites em que os vultos passeiam pelas águas e velas são avistadas acesas ao longo das areias, sem que nenhuma alma vivente fosse ali acendê-las. Gente viva que vai é para fazer oferendas com flores e perfumes, esperanças, misticismo e fé. Por isso o cais é misterioso. E mais misteriosa ainda era a moça do cais...
Ao entardecer, quando quase nenhuma movimentação de partida era observada, diferentemente dos retornos das águas que eram muitos, a moça para lá se dirigia e ficava ora em pé, passeando pelas margens, molhando os pés descalços nas ondas cansadas, ora sentava no banquinho de madeira fincado ali, debaixo de um pé de coqueiro. Em muitas tardes já escurecidas, quem olhasse com cuidado podia ver os cabelos da moça balançando o mesmo balançar das folhas do coqueiro, numa dança leve soprada na melodia do vento.
Todo mundo sabia que todas as tardes, caísse o maior temporal ou existisse um resto de sol, a moça sempre podia ser encontrada vagando ou simplesmente parada na beira do cais. Era um cotidiano já duradouro, já do conhecimento dos navegantes, pescadores e outras pessoas que viviam naquelas redondezas. Contudo, ninguém sabia quem era a moça, de onde vinha todas as tardes e nem quais os motivos que a fazia retornar sempre e mais, como se algo estranho instintivamente a levasse para as margens das águas sempre ao cair do sol. Todo mundo via a moça por lá, triste, num olhar só, mas ninguém nunca sabia o instante em que saía de lá. Simplesmente a moça triste desaparecia...
Não sabiam praticamente nada sobre ela, a não ser que ontem estava lá, hoje se encharcou toda com o temporal que caiu, e amanhã certamente será avistada olhando o mundo das águas como se quisesse encontrar uma importante resposta, independentemente de tempo bom ou ruim. A única coisa que tinham certeza era sobre a sua beleza, sua faceirice na roupa simples que vestia, sua face e cabelos encantadores, seu lindo colar de conchas e um olhar esverdeado da cor de mar profundo. Linda mulher essa moça do cais...
Um dia, no último vermelho do sol, pescadores avistaram a moça levantar do seu banquinho e caminhar descalça até o limite das águas, onde as ondas batiam e voltavam. Enxergaram também um barquinho solitário que veio chegando e chegando, sem ninguém dentro dele, e aportar bem diante dela.
No mesmo instante, um velho pescador falou quase gritando para os amigos: "Mas aquele barco afundou há uns cinco anos atrás, deixando nas águas o pescador Demundo, um rapaz trabalhador que ia casar naquele mesmo dia, deixando a sua noiva praticamente esperando no altar. O barco afundou despedaçado e o rapaz morreu, e como agora ele sobe das águas e vem parar aqui?".
A moça triste jogou um vestido de noiva dentro do barco vazio e lentamente ele deu a volta e foi se distanciando nas águas. Uma semana depois o barco voltou e ela subiu nele e partiu nas águas, sem que ninguém mais pudesse vê-la no cais ao entardecer. Somente nas noites de lua cheia, quando avistam o seu vulto descendo do barco, caminhar até o coqueiro e depois retornar.
E ouve-se ao longe um canto como de sereia...




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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