SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

ZABÉ, MUIÉ IMPOSSIVE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Em toda minha vida – e olhe que já tenho mais de duzentos anos -, nunca vi uma mulher de biografia igual a Zabé. Ouvi tudo a seu respeito, fiquei de cabelo em pé, mas também confesso que me encantei quando soube a verdade da história.
Isabel, doravante Zabé, como era conhecida, cantada e decantada por todos, foi, digamos, vítima de uma séria de mal-entendidos, de fofocas, conversas demasiadamente destrutivas da honra e do caráter. Poucos levantaram a voz em sua defesa. Mas também não podia ser diferente, pois ninguém sabia ao certo quem era Zabé nem como ela vivia.
Segundo seus conterrâneos, falando na língua do povo de então, “Muié dizimpossive nasceu aí. Nunca se viu nada iguá. Numa só coisa qui se diz gente se ajuntou cobra e frô. Fofoquera de marca maió, intrigona qui só ela merma, valente qui só cangacero, mai tumem pessoa seuvidora, muié ajudadora dos mai percisado...”.
Já outro ajuntava que “Nasceu trocada a bicha. Divia nascê homi e nasceu muié, mai muito mai homi do que munto qui se diz caba macho. Num qui Zabé seje muié macho não, mai pruquê pode cum saco cheio de peda na cabeça, lasca tora de ferro no murro, toma pinga de virá garrafa, já deu tapa em treis caba safado que dissero que era fea. E tudo duma veiz só...”.
Por todo lugar e região não se falava noutra coisa. “Zabé botô o cavalo cansado no lombo e mermo ansim correu atrais do garrote brabo. Quano o bicho se virô, ela já tava pru riba. E foi perciso o valente chorá pá ela deixá levantá”. “No meio da noite, tarvez meia apaixonada, a danada da Zabé inventô de descê a lua. Num se sabe cuma, mai bastô a dizimpossive fazê um aceno que o quilarião veio se derramano pertinho dela”.  
“Conta que certa feita Zabé achô de namorá. Escoieu o caba e mandô avisá que dali em diante era seu namorado. E qui logo mai quiria qui ele fosse encrontá cum ela lá pru detrais do tanquim. Coitado do caba. Tava inxuto e se mijou todim quano recebeu o recado, quis fugí, quis inté tirá a porpia vida, mai todo mundo dixe qui num tinha jeito, pru modo qui podia morrê qui ela ia atrais. E acunteceu mai pió. O coitado tava noivo e desinoivô, tava de casamento marcado e desmarcô. E adispoi de munto choro da famia, de despedida dos amigo e do desmaio de sua véia mãe, foi-se ao encronto da dita. Ansim qui chegô no lugá marcado, coisa de fim de tarde ainda luzenta, avistô arguem pru detrais duma moita. Cum as perna bambando, sintindo frio e suó, iscuitou um assuviu e uma voiz dizeno ‘sô eu, bebé, seu amô’. Bebé, só podia sê Zabé, pensô o caba. E era mermo, a dita, a impossive da muié. E foi aí qui o caba quasi bate as bota. Pru mode ansim qui ela saiu da moita e se mostrô pur intêra, o caba se viu de pé na cova. Lhe deu um formigamento, um tremilicão tão da desgracêra qui quasi num se segura de pé. E tudo pruquê o qui viu num pôde aquerditá. Zabé tava tom bonita, mai tom bonita dum jeito que mai paricia uma frô. Rôpa apretada no corpo que mai paricia uma serêa, cabelo tom pintiado que mai paricia ispiga de mio, de rosto tom pintado qui mai paricia um auco-iro. E dixe qui o peufume entrava pela venta do caba qui ele ficava im tempo de endoidá. E foi quano ela balançô o dedo chamano ele pá junto. Mai cum coisa de treis parmo inté chegá perto dela, a dita acenô qui parasse. É agora que a coisa vai fedê pruquê mandô qui parasse e tirasse a rôpa, e a rôpa todinha, carça, camisa, chinelo, cueca, tudo. E sem tê saída o caba foi ficano nuzinho da silva, mai quano abaixô a cueca o pió acunteceu. De tom escondidim qui tava o negoço, de tom pitititim qui tava o pingulim, qui ela lascô uma tapa na cara do caba e deu as costa. Mai ante de saí dixe a ele qui no meio das perna tinha um maió qui aquele...”.
Até hoje o povo do lugar debate acirradamente acerca do que Zabé quis realmente dizer nessa última frase. Segundo uns, que estava comprovado que nem mulher ela era; já para outros que era mulher até demais, e com o negócio grande, como quis demonstrar. Mas alguns achavam tudo isso conversa sem pé nem cabeça, coisa de quem não tinha o que fazer e levava a vida falando de quem nem conheciam direito. E, realmente, poucos tiveram a honra e prazer de se avistar com Zabé, a Isabel verdadeira.
Sempre acontece assim. Quem prefere levar uma vida no recolhimento, na solidão, saindo de sua casa apenas para regar os roseirais ao alvorecer e chorar mirando a lua de seu quintal, logo é tida como louca ou como tudo que puderam maldosamente inventar. Más línguas, terríveis e pecaminosas imaginações.
Mas Zabé não era nada disso. Era apenas uma mulher e sua solidão. Morreu velha, ainda solteirona, recolhida no seu aposento de todo dia, enquanto penteava e conversava com sua boneca de pano.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Aviso (Poesia)



Aviso


Não estou
precisei viajar
fui procurar o amor
mas pode entrar
logo vou retornar
e tão feliz e contente
no espírito e na mente
que logo vou mudar
os dizeres de avisar
pra entre sem bater
alegro-me em receber
pra cantar a canção
de um feliz coração
porque a solidão
não faz moradia
comigo mais não.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 153


Rangel Alves da Costa*


“Os meninos...”.
“Sim, os meninos...”.
“Onde estarão os meninos?”.
“Menino tanto...”.
“Menino em todo lugar...”.
“Menino de casa...”.
“Menino de escola...”.
“Menino de rua...”.
“Menino de marquise...”.
“Menino de abandono...”.
“Gostaria de ver o menino...”.
“Brincando sua idade...”.
“Pincelando o seu tempo...”.
“Construindo seu relógio...”.
“Obedecendo aos pais...”.
“Com caderno e lápis...”.
“Fazendo a lição...”.
“Querendo ser grande...”.
“Planejando o futuro...”.
“Menino que sai, menino que chega...”.
“Menino que conhece e sabe desconhecer...”.
“Menino menino e já querendo ser mais...”.
“Que bom encontrar o menino...”.
“Passeando na tarde...”.
“Conversando com bons amigos...”.
“Apaixonado pela coleguinha...”.
“Poeta de uma só rima...”.
“Rima de primeiro amor...”.
“Com maçã do amor à mão...”.
“Bilhetinho escondido...”.
“Será que ela vai ler?”.
“Menino assim, menino em seu tempo...”.
“E não aquele menino...”.
“Que o instante jogou no caminho...”.
“Menino sem nada, nem sequer menino...”.
“Pois menino já velho...”.
“Já dilacerado por dentro...”.
“Marcado pelo sofrimento...”.
“De sonhos apressados, correndo, correndo...”.
“De lua sob marquises...”.
“De mão de esmola...”.
“De viver nas esquinas...”.
“Menino de rua em rua...”.
“Menino sonolento ao relento...”.
“Menino faminto, esfarrapado...”.
“Menino que furta...”.
“Menino que rouba...”.
“Menino cheirando cola...”.
“Menino já viciado...”.
“Menino drogado...”.
“Menino da pedra, do brilho da morte...”.
“Menino usado...”.
“Menino abusado...”.
“Menino maltratado...”.
“Uma rua adiante...”.
“Seguirá em frente...”.
“Mas tudo é tão próximo...”.
“O passo, o destino...”.
“Tanto desatino...”.
“A morte...”.
“Onde está o menino?”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

E AGORA JOSEPH, NETO DE JOSÉ? (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


O poema “E agora, José?”, ou simplesmente “José”, de Carlos Drummond de Andrade, foi escrito em 1942. Em busca do significado da própria existência, com agudeza pessimista, o José drummondiano, ainda que poeticamente eterno, envelheceu.
Era um tempo de preocupações, de solidão e abandono após o regozijo da vida, redundando num ser reconhecendo a si mesmo e seus limites. Muito se passou, com José passando a figurar apenas no ideário poético, enquanto surgiam outros Josés diante de outras realidades, com novas visões de mundo. E certamente já não mais tão preocupado com o próprio destino.
E do José, no passo das gerações, foram nascendo filhos, e depois os netos. Só que agora, em obediência aos modismos na grafia dos nomes, o neto daquele José primeiro, o José drummondiano, se chama Joseph. E aquele poema, transformado em seu nome, um Joseph adolescente de sonhos escondidos, seria assim reescrito:

E agora, Joseph?
A balada acabou,
o bicho apagou,
a galera sumiu,
a night minguou,
e agora, Joseph?
você que é um nada,
que sarra da turma,
você que paquera,
tira onda, arrebenta
e agora, Joseph?

Tá sem mina
tá sem que dizer
tá numa de nada
já não pode virar
já não pode queimar
sarrar já não pode,
a night gelou,
nadica de dia
a garupa não veio
não veio o rolo
e tudo fumou
e tudo chapou
e tudo zerou
e agora, Joseph?

E agora, Joseph?
seu choromingado
sua quinzira danada
sua alucinação
seu nome no livro
seu débito a pagar
seu medo de tudo
sua adolescência
sua inocência – e agora?

Com tristeza danada
quer voltar a viver
vida tá difícil
quer embriagar
mas o litro secou
quer pedir a dose
dose não há mais.
Joseph, e agora?

Se você trabalhasse
se você corresse
se você mudasse
se você pensasse
se você agisse
se você quisesse
se você amasse...
Mas você não ama
você é nada, José!

Perdido no mundo
procurando saída
sem fé nem promessa
sem casa que vá
para descansar
sem ter um amigo
que estenda a mão
chamando Joseph!
Joseph, para onde?


Acontece de ser assim. Infelizmente. A juventude escolhendo os espinhos e as pedras do caminho. E no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho... Ah, como disse, e tanto disse o poeta.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Perto da lua (Poesia)



Perto da lua


Perto da lua
fogo e chama
sopro de vento
açoita quem ama

perto da lua
brasa queimando
silêncio da noite
o corpo atiçando

perto da lua
forno e fogão
sentir o calor
acender coração

tão perto da lua
luar noutro céu
brasa e fornalha
uma lua de mel.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 152


Rangel Alves da Costa*


“O silêncio sumiu...”.
“O silêncio partiu...”.
“E gritou na partida...”.
“Foi embora porque sabe que tudo tem voz...”.
“Tudo é som, murmúrio, barulho...”.
“Até do silêncio ouvia-se a voz...”.
“Tão meiga, silenciosa a voz do silêncio...”.
“Mas não suportava viver assim...”.
“Entristecida, esmorecida...”.
“Achou de amar...”.
“Achou de se apaixonar...”.
“Achou de quebrar a calma do seu coração...”.
“E inesperadamente se apaixonou...”.
“Perdidamente passou a amar o grito...”.
“O grito, seu oposto...”.
“Seu outro lado no espelho...”.
“Sua voz escondida...”.
“E de coração estraçalhado...”.
“Quis dizer...”.
“Quis gritar...”.
“Quis berrar...”.
“Mas teve de suportar em silêncio...”.
“Um silêncio em silêncio forçado...”.
“E que tristeza ver o silêncio assim...”.
“Pelos cantos, cabisbaixo, sofrido demais...”.
“Olhos tristes os do silêncio...”.
“Feição angustiada a do silêncio...”.
“Trêmulo é o silêncio amante...”.
“Ao entardecer, próximo à janela...”.
“Lendo poesias na brisa...”.
“Mandando recados na aragem...”.
“Gestos de enlouquecer...”.
“E uma lágrima mansa a se derramar...”.
“Uma e mais outra...”.
“Um rio silencioso escorrendo pelo silêncio...”.
“E o coração pulsando...”.
“Foi a primeira vez que ouviu sua voz...”.
“A voz interior, do coração apaixonado...”.
“Nem sabia que era assim...”.
“Assustou-se ao ouvir as leves batidas...”.
“De coraçãozinho frágil...”.
“De amor imenso...”.
“Parecia dolorosamente ecoar...”.
“E foi quando ouviu sua voz pela segunda vez...”.
“Pois perguntou a si mesmo o que estaria acontecendo...”.
“Mas nada mais respondeu...”.
“Não precisava nada responder...”.
“Os olhos diziam tudo...”.
“O coração barulhava ainda mais...”.
“Na presença do grito...”.
“Não do grito de boca...”.
“Grito de voz assustada...”.
“Temeroso grito...”.
“Mas um grito diferente...”.
“E que até parecia com o próprio silêncio...”.
“Mas o grito da natureza adiante...”.
“Da ventania em festa...”.
“Da melodia do entardecer...”.
“Da valsa dançada na brisa suave...”.
“E percebendo em tudo uma voz...”.
“Tudo tomou como grito...”.
“E tudo com tanto amor...”.
“Que teve de partir calado...”.
“Para não perder seu silêncio...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A IDEIA DE SERTÃO E O SERTÃO EXISTENTE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Não será errôneo afirmar que o sertão pode ser visto sob várias acepções. De um lado, aquele caracterizado nos livros de geografia, citado nos opúsculos de história e estampado nas manchetes de jornais. De outro, o sertão romântico, bucólico, fruto da idealização daqueles que o admiram e ali convivem.
Contudo, há ainda o sertão em si mesmo, no seu percurso, na sua vida, para chegar ao que hoje se apresenta. Este certamente está distanciado daquele outro sertão idealizado e caracterizado, pois refletindo apenas a região nas suas veias abertas e nas consequências provocadas pelas inevitáveis mudanças.
Neste último aspecto, o sertão não mais se diferencia muito de outras regiões, de outros lugares com características totalmente diferentes. Praticamente sumiram os costumes e as tradições de seu povo, os modismos apagaram de vez os jeitos matutos e sinceros de convívio, todos os vícios da vida moderna ali parecem redobrados. Sem falar que o número de forasteiros já é maior do que a gente da terra.
O verdadeiro sertão, este mesmo que está sendo totalmente transformado pelas forças das mudanças, é aquele da geografia tão conhecida. Sertão das terras áridas e semiáridas, das estiagens que se prolongam por anos a fio, do bioma envolto pela caatinga, plantas xerófitas como os cactos espinhentos, arbustos de porte médio e galhos retorcidos;  lar de vegetação refletindo os períodos maiores ou menores de estiagens.
Este é o sertão um dia desbravado a partir da beirada do rio, das margens do Velho Chico, na incansável luta daqueles que adentraram a mataria, abriram picadas, levantaram palhoças para o repouso ainda inseguro no inóspito meio. Vindos de outras distâncias, fugindo das revoluções e perseguições, trazendo seu rebanho ou somente o saco de sonhos, os colonizadores das áridas vastidões fincaram na terra desconhecida a bandeira de um povo e sua luta.
Assim nasceu o sertão, a partir dos caminhos abertos beira de rio adentro. Da luta desbravadora dos primeiros habitantes, verdadeiros bandeirantes da sequidão, é que o povoamento foi se alastrando. Uma casinha aqui, uma choupana ali, o pequeno rebanho pastando acolá, e na terra a semente jogada para frutificar quando as chuvaradas permitiam. Daí essa eterna semente refém das imprevisíveis condições climáticas.
As tantas dificuldades surgidas não impediram, contudo, que o sertão e o sertanejo se impusessem perante as forças da natureza e construíssem uma identidade que mais tarde seria reconhecida por todos: homem e terra brotando de uma só raiz, pois um tão dependente do outro, tão reconhecido no outro, que tudo toma uma feição orgulhosa demais por ser dali e ali resistir. Resistência, este poderia ser um apelido para o sertão.
Também o sertão da história, das guerras cangaceiras debaixo do sol, estrada e vereda para o bando de Lampião e a volante cuspindo fogo; percurso da missão de António, o Conselheiro, de cruz sempre erguida aos céus, abrindo caminhos pelo meio do mato, fanatizando beatos, pregando contra as injustiças tantas; púlpito e palanque para Padre Cícero, de um lado pregando a palavra divina e de outro costurando acordos políticos.
Por muito tempo o sertão pareceu imune às transformações do mundo lá fora, das distâncias sulistas. Continuou prevalecendo as características inconfundíveis do sertanejo, tendo por base a profunda religiosidade, o amor extremado pela terra, a eterna luta pela sobrevivência em meio às secas e estiagens, o cultivo das manifestações vindas de outras gerações.
Assim, era um sertão de pequenos agricultores, trabalhadores na terra, vaqueiros, pescadores, catingueiros em busca de caça, parteiras, rezadeiras, gente de ofício de sol e de lua. Eram constantes as vaquejadas, as pega-de-bois, as quermesses, os leilões festivos, os forrós nas salas de reboco, santas missões, inúmeras manifestações simples e tão grandiosas como as pessoas do lugar.
Contudo, o passar do tempo foi trazendo um calendário difícil demais para a vida sertaneja. Não que tivesse de continuar sempre com suas cidadezinhas interioranas, com as características demasiadamente pacatas do seu povo, com aquele cotidiano que parecia o mesmo de sempre. Não. Mas o que foi entrando no sertão sem bater à porta foi espantoso demais.
Verdade que o sertão sempre teve muitos problemas a resolver. Desde o início de tudo que as secas mais prolongadas provocam sofrimentos terríveis, causando fome, sede, esturricando a mataria e provocando a morte de gente e bicho. Tais aspectos, contudo, são conhecidos demais e combatidos na luta e na perseverança. Mas combater o que sorrateiramente chega e se instala de vez, desfazendo tudo, descaracterizando tudo, é muito mais difícil.
E, infelizmente, o sertão e o sertanejo estão perdendo essa batalha. Mas os adversários não são somente pessoas estranhas, o progresso que chega voraz e as transformações que são impostas a todo custo. O próprio sertanejo cuidou de desmatar, destruir grande parte de sua vegetação nativa, devastar as nascentes e os leitos dos rios e riachos, extirpar as matas ciliares, aniquilar o seu meio de sobrevivência. Para se ter uma ideia, quase não há mais bicho no mato, passarinho voando, rio que corra gordo e bonito.
Não bastassem as ações destruidoras do próprio homem da terra, a chegada dos sem-terra na região representou o fechamento do caixão. Onde um sem-terra se assenta não fica em pé nem a catingueira. Sem falar no problema social gerado por aqueles que objetivavam resolver outro problema social. Inegavelmente que houve aumento desenfreado da violência, esfacelamento nas relações sociais, instabilidade e insegurança a cada passagem pelos seus caminhos.
É doloroso, mas necessário dizer, que atualmente o sertão somente continua existindo como tal pelo seu passado. Ora, quase nada do sertão existe mais. As relações familiares são inexistentes, as amizades e os companheirismos de proseados nas calçadas ao entardecer não são mais avistados, as pessoas se tornaram desconhecidas umas das outras. Se no passado quase todo mundo sabia quem era filho de quem, hoje ninguém sabe mais de ninguém.
E agora o pior. O uso de drogas, o tráfico de entorpecentes, os roubos e os furtos cada vez mais violentos, os assassinatos bárbaros, a prostituição em cada canto e em cada idade, o desemprego, o alcoolismo, tudo isso virou normalidade no sertão. Em tais aspectos, muitas vezes supera outras regiões do país.
Sou desse sertão. Sou de Poço Redondo. As cruéis e devastadoras transformações ocorridas impõem uma dolorosa afirmação: Tenho o mais profundo orgulho de ser sertanejo, mas nenhum orgulho de vivenciá-lo como está.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Flor (Poesia)



Flor


Uma rosa talvez
violeta diante da mão
eu queria uma flor
uma flor
a flor

o jardim é distante
a noite solitária e vazia
meu silêncio não tem flor
sequer uma flor
uma flor

prometi a mim mesmo
não mais amar assim
fotografia para beijar a flor
no retrato a flor
você flor

quem dera uma manhã
janela aberta para o jardim
e você entre as flores
a mais bela flor
minha flor...

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 151


Rangel Alves da Costa*


“Alguém disse um dia...”.
“Que um pequeno gesto...”.
“Uma simples atitude...”.
“Pode transformar o momento e a vida...”.
“Jamais as cartas marcadas...”.
“As atitudes premeditadas...”.
“Os tratados, acordos e convenções...”.
“Pouca valia no que depende de cerimonial...”.
“O coração nunca deseja formalidade...”.
“O fazer surge repentinamente...”.
“Sem receita ou indicação...”.
“Porque a esmola fotografada é deprimente...”.
“A ajuda politizada é abominável...”.
“A festa para doar é censurável...”.
“A demagogia é desprezível...”.
“O coração não marca...”.
“A seiva não quer luzes nem holofotes...”.
“O humanismo não precisa de manchete...”.
“E tudo num mundo de vaidades, egoísmos, demagogias...”.
“Concedendo o que é do povo e se achar benfeitor...”.
“Apenas fazendo o que está obrigado...”.
“Mas não. Em tudo deve haver proveito...”.
“Por outro lado...”.
“O enfermo recebe a visita do desconhecido...”.
“A velha possui numa mocinha sua maior amizade...”.
“Os órfãos recebem carinhos, afetos, afeições...”.
“Os desvalidos nunca ficam abandonados...”.
“Tudo através de gestos simples...”.
“De pessoas pacatas e anônimas...”.
“De pessoas de bondosos corações...”.
“Agindo com imenso amor...”.
“Não se sentem contentes se sabem que tantos estão sofrendo...”.
“Não se realizam senão ao lado de um enfermo...”.
“Não adormecem em paz sem antes rogar pelos aflitos...”.
“E não são nem parentes, amigos ou conhecidos...”.
“Mas são muito mais...”.
“São aqueles anjos bons existentes na vida...”.
“Pessoas que dividem o seu pão com o irmão...”.
“Pessoas que deixam o conforto do lar para estar nas distâncias...”.
“Pessoas que seguram na mão até que o estranho adormeça...”.
“Pessoas que cuidam, zelam, amam o próximo...”.
“Corações imensos e tão divididos...”.
“Em muitas partes iguais...”.
“O que deseja para si...”.
“Também quer garantir para o necessitado...”.
“E apenas em gestos simples...”.
“Meigas e doces atitudes...”.
“Um toque na face...”.
“Um perguntar como vai...”.
“O carinho demonstrado...”.
“O abraço dado...”.
“O sorriso lindo e sincero...”.
“E o amanhã...”.
“O amanhã novamente...”.
“Pois o amor não se cansa...”.
“De tanto amar o próximo...”.
“Como a si mesmo...”.
“Pois assim está escrito!”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

LINHAS TÊNUES, SUTIS, DELICADAS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Muito da vida está por cima de linhas e fios finos, tênues, sutis, delicados. E perigosamente se veem soprados pelos ventos sorrateiros do acaso. Quase invisíveis, quase irreconhecíveis, mas por onde o ser humano tem de caminhar.
Tudo como um pêndulo, como pluma oscilante, como folha morta ao sabor da aragem. Querer ficar e querer partir, saber que ainda está, mas que já não vai existir. Quase tudo. Quase ser e não ser, quase permanência e logo ausência. A dúvida: até quando?
Por cima da lâmina, na estrada do fio mais fino, toda a vida espera a sorte. Ali tem que correr, se mexer, pular, revirar, mas sem ao menos imaginar dar um passo em falso, perder o equilíbrio, tombar. Um passo fora do fino fio e tudo desaba. Não há retorno nem chance. É a estrada na lâmina pela vida inteira.
O pé, o passo, o olhar, seguem o fio sem olhar atrás, ao redor ou para qualquer outro lugar. Nada pode dar errado nessa caminhada. O vento é ameaça, qualquer sopro coloca em risco, a ventania seria prenúncio de destruição. Em cima o horizonte, debaixo o abismo, toda a distância lado a lado.
Mas não há tempo para parar, pensar, imaginar. Sempre para frente, cuidadosamente adiante, pois a linha tênue demais não pode esperar o descanso, a atenção maior, outros cuidados. E eis que de repente, naquela finura toda, onde somente um passo pode atravessar, do outro lado pode surgir algo naquela direção.
Não é difícil que surja. Mas fazer o que, então? Não há nada a fazer senão seguir adiante, fazer de conta que nada avistou, que aquela é sua estrada e é por ela que tem de andar, seguir sempre em frente. Não pode temer, não pode fugir do confronto, pois se o outro tudo fará para que saia da frente, então será preciso mostrar de quem é aquele destino.
Sempre surgirá algo assim, visões de outros que se aproximam, vão chegando para impedir a caminhada. Contudo, ao seguir em frente muitas vezes verá que o avistado não passa de uma ilusão para testar a fragilidade, para ver se tem medo, recua, cai, desfalece. Por isso mesmo que não deve temer o perigo.
Os tuaregues não se iludem mais com miragens, pois sabem que os oásis são visões traiçoeiras que apressam o cansaço, que levam à desesperança; os homens do deserto não olham para trás, vez que conhecem a nuvem de areia que quer lhe cegar, maltratar, destruir. Nos desamparos e desolações aprenderam a conviver e a andar por cima da lâmina quente do seu mundo.
Com o homem de outras paragens não há muita diferença. O problema é que o nômade aprendeu a caminhar sobre brasas, a pisar no fio cortante sem ferir o pé. Falta ao homem do asfalto, da estrada e do chão esse destemor. Conhecendo os desafios surgidos a cada instante, e se mantendo firmes acima do fio tênue do perigo, certamente conseguirá ultrapassar o abismo sem se ferir. Ao menos tanto.
Por isso mesmo é preciso muito cuidado a cada passo, a cada compasso. É preciso ir além do chão para conhecer a distância se algum dia cair. É necessário espetar o dedo na ponta da agulha, ter a pele levemente cortada pelo fio da navalha, sentir na pele a ranhura da finura da linha, do fio.
Será preciso conhecer para não temer num momento de precisão. Saber que a ponta da agulha causa tormento e dor, que a lâmina corta dolorosamente e faz sangrar, que o fio tênue grita como lâmina por onde passa. Mas também terá mais proteção se souber domar todos estes perigos, subir na ponta da agulha, caminhar pelo fio da navalha, se equilibrar em cima da tênue linha.
Somente assim talvez um dia aprenda porque o equilibrista até cantarola lá em cima. Caiu mil vezes, levantou em igual número. E lá em cima se sente mais seguro do que as armadilhas do chão.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Vento que leva (Poesia)



Vento que leva


Vento que leva a saudade
e traz o perfume da flor
vento que leva a tristeza
e traz a alegria do amor
vento que leva bilhete
e me diz que ela aceitou
vento que leva meu beijo
e me diz que ela beijou
vento que leva segredo
e diz que ela ruborizou
vento que leva presente
e diz que ela se enfeitou
vento que quer me levar
com asas de passarinhar
pousando no ninho adiante
com tanto amor para amar.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 150


Rangel Alves da Costa*


“O homem...”.
“Precisa conhecer a si mesmo...”.
“O ser humano...”.
“Precisa aprender a viver em comunhão...”.
“A pessoa...”.
“Precisa respeitar o próximo...”.
“Gente...”.
“Precisa justificar sua existência...”.
“O indivíduo...”.
“Precisa aprender a perdoar...”.
“O sujeito...”.
“Precisa construir...”.
“Cada um...”.
“Precisa somar para ser mais...”.
“Tudo pode ser diferente...”.
“A vida não tem segredos...”.
“Os mistérios e incompreensões são criados pelo próprio homem...”.
“Cada um já nasce com uma lição...”.
“Viver e conviver...”.
“Assim como a construção precisa de alicerce...”.
“O homem precisa ter boa raiz...”.
“Precisa se sustentar no melhor que é capaz...”.
“Precisa crescer e fazer brotar bons frutos...”.
“Precisa desejar ser a árvore mais frondosa existente...”.
“Precisa buscar a eternidade enquanto viver...”.
“E a eternidade não significa viver para sempre...”.
“Mas eternizar-se na obra terrena...”.
“No que realizou, no que construiu...”.
“Imortal será todo aquele jamais esquecido pelos que ficam...”.
“E tal imortalidade só é possível com o trabalho realizado...”.
“Os caminhos percorridos, as veredas abertas...”.
“As lutas para erguer bases sólidas...”.
“Mas apenas lições...”.
“Que a maioria insiste em não querer aprender...”.
“Ah, quantas vezes bastaria abrir uma página desse livro...”.
“O livro da vida...”.
“Não há nada que nele não se contenha...”.
“Desde o trato ao respeito...”.
“Desde a conduta à ética...”.
“Desde a moral aos bons costumes...”.
“Desde o amor à escolha amorosa...”.
“Desde a dúvida à certeza...”.
“No livro da vida tudo se contém...”.
“Mas cada um pode escrever o seu próprio livro...”.
“Seu próprio manual de presença na terra...”.
“Os exemplos estão em todo canto e todo lugar...”.
“O bem e o mal estão diante do olhar...”.
“Há a natureza para ensinar, há o tempo para confirmar...”.
“Se há dúvida, que indague, pergunte...”.
“Por que os animais gostam tanto da liberdade que possuem?”.
“Por que as águas dos rios descem assim, tantas vezes mansas e calmas?”.
“Por que cactos vingam por cima do rochedo bruto?”
“Por que o orvalho escolhe a madrugada para surgir?”.
“Por que as estações existem?”.
“O que significa o outono no ciclo de vida das plantas?”.
“Por que a manhã, a tarde, a noite?”.
“Em tudo encontrará respostas...”.
“E respostas que podem ser aplicadas à vida humana...”.
“Pois o homem também natureza...”.
“Pergunte a si mesmo quem você é...”.
“Pergunte a si mesmo como quer ser...”.
“Depois de obtidas as respostas inicie o seu livro...”.
“O livro de sua vida!”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

E ERAM TÃO JOVENS... (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Vida cheia de vida, vida cheia de esperança, vida de planos e grandes perspectivas, vidas na flor da idade. E eram tão jovens...
Em meio à madrugada, talvez por um descuido terrível ou porque predestinado a assim mesmo acontecer, eis que a fagulha acende a chama. Um sinalizador de palco. E daí o incêndio, o pavor...
Vidas que estavam ali para brincar, comemorar entre amigos, reencontrar colegas, brindar as alegrias da vida universitária e todas as alegrias, pois na maioria estudantes. E eram tão jovens...
Nunca há espaço seguro, com rota de fuga, com facilidade de escape, quando o terror se alastra, a correria começa, cada um pensando somente em fugir e todos na mesma aflição. Tudo é difícil der transposto. Assim aconteceu.
Certamente que estavam acostumados a diversões em boates, casas de shows, espaços tão propícios aos jovens. E ali seria apenas mais uma noitada agradável. Apenas seria. E eram tão jovens...
Com o fogo se alastrando, os gritos ecoando, o espanto e o terror tomando conta de tudo, os mais frágeis, as meninas de salto alto e os que iam tropeçando, simplesmente caíam para em seguida serem pisoteados. Alguns se arrastaram para morrer adiante.
Muitos colegas de curso, amigos de universidade, conhecidos no convívio cotidiano da vida estudantil. Outros conhecidos destes e amigos daqueles, e todos ali sorridentes sob as luzes flamejantes do imenso salão. E eram tão jovens...
Aqueles que caíram dificilmente conseguiram se levantar; os que correram para os banheiros ou por lá já estavam não tiveram melhor sorte. Quando a fumaça fortemente se espalhou, aqueles que ali estavam foram sendo terrivelmente asfixiados.
Jovens casais participavam do evento, namorados tiveram de apartar suas mãos para nunca mais se reencontrarem. E somente o irromper da tragédia, da crueldade indescritível, para que um namorado solte a mão de seu amor. E eram tão jovens...
O fogo em si não provocou tantas mortes, mas a fumaça asfixiante sim, as pessoas agonizando pelos banheiros sim, os jovens pisoteados e desfigurados sim, o verdadeiro tropel em desesperada busca de fuga e salvação sim. E eram tão jovens...
A mocinha não havia avisado à família que participaria da festa. Somente depois das onze da noite chamou os seus para ajudar na escolha da roupa. Uma saia verde e uma blusa branca. Estava linda. Seu nome: Leandra Toniolo, de 23 anos. Uma das vítimas. E eram tão jovens...
O noticiário dá conta que a tragédia seria menor se a arrogância e a brutalidade dos seguranças da boate não impedissem a fuga dos jovens em desespero. Impediram que buscassem as saídas para evitar prejuízos com o não pagamento da comanda. Cobravam as vidas.
Muitos que ali estavam e foram vitimados, certamente retornariam na semana para repor aulas na universidade. As listas de presença estarão fechadas e em profundo silêncio. Os professores olharão sem ainda acreditar para as cadeiras vazias, os colegas estarão olhando em direção à porta para ver se o amigo chega. E eram tão jovens...
Um rapazinho viajou de lugar distante para reencontrar sua namorada, estudante universitária. Passariam o final de semana juntos, mas na noite do sábado participariam da festa. Ele, Roger Dall'Agnol,  de 21, e ela, Susiele Cassol, de 19 anos, não conseguiram sair do incêndio com vida nem planejar o futuro a dois.
Enquanto os corpos amontoavam-se pelos banheiros e salões, os celulares das vítimas, ainda junto com elas, tocavam incessantemente. Eram as famílias desesperadas que apenas queriam ouvir uma voz do outro lado dizendo que estava salva, estava bem, estava vivo. Mas os telefones tocavam, tocavam e tocavam. Ninguém atendia. E eram tão jovens...
O noticiário televisivo e os sites de notícias mostram a terrível e aflitiva situação das famílias que perderam seus meninos. Olhos assombrados, feições pasmas, gestos desesperados. E ainda não haviam feito o reconhecimento dos seus. E depois a dor e o sofrimento em toda a sua intensidade.
Quase duzentos e quarenta mortos e tantos outros ainda espalhados pelos hospitais em tratamento. Não só uma tragédia, um terrível sinistro ou demasiadamente funesto acontecimento, mas um mundo que de repente se acaba. E assim, de modo tão brutal e incompreensível à crença humana.
Tudo dói. Dói demais, porque tantas vidas ainda em construção. E eram tão jovens...


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

Se ela chorar... (Poesia)



Se ela chorar...


Não dei nem adeus
ela sabe que volto
a estrada é curta
o retorno é breve
mas dói-me o peito
apenas imaginar
se ela chorar...

direi que vou jardim
buscar uma bela flor
para o meu amor
subirei na nuvem
para riscar o nome
de quem tanto amo
vou ali volto já
mas tenho medo
se ela chorar...

e se ela chorar
também vou chorar
vou adiar a viagem
vou querer ficar
dois prantos assim
dor nela e em mim
só resta partir
com ela seguir
e de vez acabar
o medo de chorar.

  
Rangel Alves da Costa