SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 30 de agosto de 2019

ZEQUIAS CONTA TUDO



*Rangel Alves da Costa


Zequias Geremias dos Santos, ou somente Zequias, conforme gosta de ser chamado. E não há quem não conheça esse nome no seu sertão e arredores onde ainda vive. Já perto dos cem anos, mas ainda de viva memória e lucidez, um verdadeiro testemunho dos distantes e idos.
Segundo confessou-me, sua vida já foi de serventia de quase tudo. Já foi vaqueiro, mateiro, caçador, coiteiro e muito mais. E quase até jagunço. Hoje vive numa casinha simples de cipó e barro, além de uma estrada de chão, nos escondidos além de uma porteira. Mas não vive esquecido não, eis que diz sempre rodeado com os vultos de seu passado.
Ultrapassei a porteira sem medo de não ser recebido. Ele já me aguardava. Caminhei até sua portada e chamei pelo nome. Então Zequias apareceu já apontando um tamborete. Disse-lhe em seguida que achava melhor a gente sentar mais adiante, debaixo de um sombreado de umbuzeiro. E para lá seguimos.
Caminhando devagar, no passo lento dos anos, levava à mão fumo, palha de milha e um canivete miúdo. Eu já sabia a serventia. Depois que coloquei seu tamborete, após a assentada a primeira coisa que fez foi preparar seu cigarro de palha.
Ajeitou o fumo na palha, juntou tudo com o canivete, passou a ponta da língua na beirada da palha e depois fechou o cigarro. Puxou uma caixa de fósforos do bolso e acendeu. A fumaça subiu. No instante seguinte já estava me perguntando sobre o que eu queria saber. Respondi que sobre tudo, e tudo que sua memória pudesse revelar. Então ele começou:
“Muito eu tenho visto de coisa do outro mundo. Tenho medo não, não senhor. Já faz tempo, mas certa feita eu vi quando, vindo daquelas bandas do meio do mato, uma pessoa sem cabeça. Sim, um cabra sem cabeça e como se tivesse saído de uma cova. Veio na minha direção e perguntou se eu sabia onde tava sua cabeça. Sei, eu sei onde tá sua cabeça, foi o que respondi. E disse: tá lá dentro do mesmo lugar de onde você veio. Pode ir lá procurar que você acha. Então o cabra voltou e nunca mais apareceu. Poucos acreditam quando conto essa história, mas foi tudo verdade. Também verdade que depois disso nunca mais desapartei de um rosário com crucifixo no pescoço...
Num fui coiteiro porque quis não. Naquele tempo do cangaço, não tinha escolha não, ou acoitava cangaceiro ou era pior. Mas uma coisa é certa: o cangaceiro tratava o sertanejo com muito mais respeito que o soldado da volante. Esse era um filho da gota serena de ruim. Já chegava querendo apunhalar o cabra se não dissesse que sabia onde o bando tava acoitado. Eu tinha tanta raiva de volante que não me neguei em ajudar cangaceiro, mas nunca procurei Lampião pra oferecer meu serviço. Quando o bando aparecia aqui e me pedia pra arranjar isso ou aquilo, pra ir comprar uma coisa ou outra, e ir levar em tal lugar, então eu fazia o serviço. E muita vez recebi até dinheiro pelo que eu fazia...
No meu tempo de vaqueiro aconteceu uma história pra lá de espantosa. Todo mundo dizia que havia um boi chamado Assombração que ninguém conseguia pegar, pois mesmo avistado e já pertinho, de repente o bicho se encantava e sumia. Pois bem. Certo dia eu disse que ia pegar o tal de Assombração. Ajeitei meu cavalo bom e segui pela mataria. O bicho vivia numa mataria fechada que só. Mas eu tive uma ideia e não contei a ninguém. Quando fui atrás do bicho encantador, eu levei também uma novilha nova, bonita. Cheguei perto da mataria fechada, numa distância boa, e amarrei a novilha num pé de pau. Eu sabia que o Assombração vinha atrás da novilha. Fiquei escondido num tufo de mato e me pus a esperar. Somente no outro dia o Assombração apareceu. Apareceu e começou a cercar a novilha, como se quisesse uma coisinha. Então eu subi no cavalo e fui até lá, mas não pra pegar o bicho encantador. Minha intenção era outra. Desamarrei a novilha e voltei com ela, bem devagar. Eu olhava pra trás e avistava o Assombração lá em pé. Quando olhei de novo não vi mais nada. E agora o que planejei. Botei a novilha num curral e deixei a porteira aberta. No outro dia o Assombração riscou por lá. E foi só eu fechar a cancela do curral e pronto. O bicho tava preso e se encantamento nenhum...”.
E Zequias contou muito mais. Mas depois eu conto.


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Lá no meu sertão...


Memórias da Casa Velha



Igual ao jardim sem flores (Poesia)


Igual ao jardim sem flores


Depois que abri a janela
e adiante ao invés das flores
no belo jardim de cores e aromas
eu avistei a dor acinzentada
em galhos tristes retorcidos
e folhas mortas esvoaçando
eu busquei compreender
os motivos da transformação
e o porquê da lágrima solta
na face onde havia sorrisos

e então olhei dentro de mim
para me avistar na solidão
de um amor tão desamado
ao desvão de jardim ressequido
por um adeus sem lenços
em mãos me mandando embora.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – um velho e uma velha



*Rangel Alves da Costa


Dois velhos: um velho e uma velha. O velho dizia: “Frosina, certamente o tempo passou, mas o amor que eu sinto por você não...”. A velha dizia: “Cirineu, meu Cirineu, a gente só somou o amor que um sente pelo outro. Hoje, juro por Deus, nem precisa mais dizer que ama. Venho colhendo a cada dia, ano após ano, Cirineu...”. E o velho dizia: “Você meninota e eu meninote. Depois você saiu da janela e me deu a mão. Nunca olhei pra trás nem do lado, pois sabia que o meu destino era seguir adiante, e sempre ao seu lado...”. E a velha dizia: “Dividimos o copo d’água, repartimos o pão, adormecemos sempre debaixo do mesmo cobertor. E o sol, quando entra pela janela, sempre pareceu brilhar só pra gente...”. O velho dizia: “Mas o tempo, hein Frosina?”. A velha dizia: “Não pense no tempo Cirineu, deixe o tempo passar. O meu calendário é a sua presença. Sei que qualquer dia vai soprar a ventania na folha seca. Será o outono em nós, mas já vivemos todas as primaveras do mundo, já fomos flores, já fomos borboletas sobre o jardim. Que bom como florescemos a cada instante, mas sabemos apenas da eternidade do amor, e não da vida...”.


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quarta-feira, 28 de agosto de 2019

AINDA SOBRE A MORTE DO CANGACEIRO CANÁRIO



*Rangel Alves da Costa


Bernardino Rocha era o nome daquele que foi alcunhado como Canário no bando de Lampião. Filho de Poço Redondo, no sertão sergipano, da prole de Seu Cante e Dona Virgem, na vida cangaceira teve como companheira a também poço-redondense Adília. No cangaço, atuou muito mais no subgrupo de Zé Sereno que mesmo ao lado do Capitão Lampião. Curiosamente, Canário, por sua compleição dura, rija, mal-encarada, era tido como um dos cangaceiros mais feios.
Segundo testemunhos da já falecida Adília, ainda nos tempos em que vivia na simplicidade de uma casa no Alto de João Paulo, distando cerca de um quilômetro da sede da cidade de Poço Redondo, o seu companheiro havia lhe negado muito do prometido. Mocinha nova, ainda assim seguiu com Canário à vida difícil por paixão. No entanto, não demorou muito para que a rudeza do companheiro fosse transformando o amor em negação. Afirmou Adília que chegou um tempo de não querer olhar nem pra cara do companheiro.
Suportou, contudo, até o ano de 38, após a Chacina de Angico, onde Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros, foram emboscados e mortos por soldados da volante alagoana, comandados pelo tenente João Bezerra. Após isso, mesmo com a insistência de Canário em não se entregar às forças policiais, Adília seguiu até Propriá onde abdicou de vez de sua vida cangaceira. Depois viria saber que o seu companheiro havia sido traído e morto nos arredores de Poço Redondo, e pelas mãos de um primo seu: Teodomiro, o cangaceiro Penedinho.
O adiante segue faz parte de um relato produzido após uma recente visita que fiz ao local da traição e morte de Canário, dentro de uma propriedade que se distancia apenas cerca de três quilômetros de Poço Redondo, meu berço de nascimento. Eis:
“Fazenda Coruripe nas proximidades da cidade de Poço Redondo. Paisagem impressionante. Os lajedos embranquecidos agora ladeados por uma mataria verdejante. As chuvas caídas transmudaram o acinzentado das catingueiras e tufos de matos em imagens difíceis de ser encontradas pelos sertões. Em setembro de 38, já passado o período chuvoso, certamente que a moldura matuta já estava diferente, mas também de caatinga muito mais fechada e de verdadeiros labirintos espinhentos por todo lugar. Canário, ao lado do também cangaceiro Penedinho, não se abrigaria em local muito aberto, ainda que aí, dado ao leito arenoso propício à junção de águas, jamais pudesse ficar totalmente encoberto pela densa vegetação. A proteção maior estava mesmo nas laterais acidentadas, marcadas pela presença de pedras e lajedos. Um ambiente propício tanto à defesa como ao ataque. O cangaço já havia terminado com a morte de Lampião e parte do bando do bando pouco mais de um mês antes. Canário fugia agora era da volante que continuava nas pegadas dos cangaceiros que ainda não haviam se entregado. Ele sabia que Zé Rufino a qualquer momento poderia riscar por ali. E ele não queria se entregar de jeito nenhum. Mas foi surpreendido pela traição. Foi traído e morto por seu acompanhante Penedinho. Após balear e confirmar a morte de canário, então o traidor logo se dirigiu até a povoação baiana de Serra negra, quartel-general do comandante e caçador de cangaceiros Zé Rufino. A intenção de Penedinho era se livrar da prisão e outros horrores, fazendo sua entrega de forma honrosa. Segundo alguns autores, o crime perpetrado havia sido de mando, vingança encomendada por um coronel afamado e que havia tido uma vindita com Canário. De uma forma ou outra, a verdade é que após tomar conhecimento da morte, imediatamente Zé Rufino para os sertões sergipanos se dirigiu. Desta feita, objetivando catar alguma riqueza porventura deixada pelo cangaceiro morto, vez que Penedinho lhe havia confessado sobre a existência de muito dinheiro e ouro. Provavelmente não encontrou o esperado e, por isso mesmo, degolou o morto, arrancando fora a cabeça do famoso Canário, e como troféu com ela retornou para mostrar sua força. Contudo, teve um laivo de humanismo ao mandar providenciar o sepultamento dos restos putrefatos. Assim, os restos do ex-companheiro de Adília foram enterrados um pouco mais adiante, debaixo de um umbuzeiro ainda existente. E não faz muito tempo que a saliência da cova podia ser avistada pelos que por ali andejassem. Histórias do sertão. O livro vivo de Poço Redondo”.


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Lá no meu sertão...


Nas ribeiras de Poço Redondo...






Destino e querer (Poesia)



Destino e querer


Se quiser eu fecho a porta
apago a luz e me exilo
em qualquer lugar

se quiser eu desapareço
e sem ter endereço
não deu nem sinal

se quiser eu rasgo tudo
jogo fora os retratos
e esqueço de você

apenas se eu quisesse
mas não sou destino
nada posso fazer

mas se o destino quiser
abre a porta e acende a luz
e me traz quem eu amo.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - na noite de ontem...



*Rangel Alves da Costa


Na noite de ontem eu atravessei a noite sem adormecer. Quando dei por mim, a manhã já estava gritando à janela. Mas tudo fiz para adormecer. Decidi que havia um barco no telhado e que nele eu singraria distante. Resolvi que estava numa ilha solitária e que precisava dormir para alcançar o continente ao amanhecer. Imaginei estar cansado de uma pajelança numa tribo amazônica e que, por isso mesmo, bastaria deitar e dormir. Forcei o pensamento para voar, e voar cada vez mais alto, para depois pousar e repousar num ninho aconchegante. Mas nada disso surtiu efeito. Então comecei a pensar nela, a ter à minha frente seu retrato, e ela assim tão bela. Lembrei-me dos beijos, dos abraços, das carícias, dos carinhos, das meiguices e dos cafunés. A saudade me veio tão forte que surtiu um efeito totalmente contrário, pois comecei a chorar. Chorei e mais chorei. Quando o sol despontou certamente que eu navegava, mas de olhos naufragados pela tristeza e dor. Então levantei para esquecer a noite de ontem. Mas já é noite. E temo. E não sei...


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terça-feira, 27 de agosto de 2019

A LOUCA



*Rangel Alves da Costa


Numa pessoa comum, a feição de uma pessoa comum, normal, pulsando as horas e os dias. Uma vida em plenitude do viver. Um viver em plena normalidade da vida. Amanhando, sonhando, trabalhando, querendo realizar muito mais.
Comedida, não gostava de exageros em nada. Sorria pouco, e pouco também falava. Não gostava de espalhafatos nem de se mostrar além de sua simplicidade. Roupa simples, sem luxos, na decência e no gosto de apenas estar se sentindo bem consigo mesmo.
Um dia cantou alto no banheiro. Nunca fazia assim. Depois deixou o chuveiro ligado após o término do banho, e nunca fazia assim. Mas tudo bem, pois quando percebeu o erro logo retornou para reparar. Mas novamente agiu de forma inesperada: gritou como se estivesse enraivecida.
Não havia motivo algum para agir assim, para gritar daquela forma, até mesmo por que estava sozinha no quarto. Não percebeu o erro, pois sequer se deu conta de ter agido de modo estranho demais. Saiu do quarto como se nada tivesse acontecido. Falou com os parentes, sentou à mesa, mostrou-se em plena normalidade.
Ela nem percebia, logicamente que não, mas algumas mudanças iam sendo percebidas por seus amigos e familiares. Ora, uma pessoa tão cuidadosa não passaria a ter os cabelos tão descuidados como os dela. Parecia não lavar, não pentear, não ter nenhum asseio. Seu rosto parecia outro com aquela moldura disforme, assanhada, parecendo suja.
De repente alguém sentiu como se um odor repulsivo quando ela passou por perto. Ao levantar um braço, então surgiu a certeza de que ela havia se esquecido de usar desodorante. Cheiro forte, como se já desde alguns dias nenhum protetor das axilas houvesse sido usado. Suas roupas também já não mereciam elogios. Roupas amassadas, desconjuntadas no corpo, demasiadamente estranhas numa pessoa que primava na vestimenta.
O que estaria acontecendo? O estopim veio quando ela abriu a porta da chefia e gritou que fosse tomar no... E fez mais: a papelada que tinha à mão foi toda jogada adiante. Todos se assustaram ante o ocorrido, correndo para junto dela e perguntando o que estava acontecendo. Nada ela respondeu. Apenas se lançou ao chão e, de cócoras e com as mãos à cabeça, chorou.
A gerência decidiu que suas férias teriam que ser antecipadas, pois aquele acontecido só poderia ser motivado pelo cansaço e pela exaustão. Quando, acompanhada pelas colegas, saiu pela porta, sequer imaginava que jamais colocaria os seus pés ali. Não porque quisesse, não por desejo próprio, como alguém que simplesmente abandona um emprego, mas por outras circunstâncias da vida.
Ao chegar a casa, a primeira coisa que fez foi entrar no quarto e espalhar todas as suas roupas. Arremessou todos os perfumes na parede, desgrenhou lençóis, e depois se jogou num canto para chorar. Acordou noutro quarto, ladeada pelos pais, e a pergunta que ouviu foi sobre o que estava acontecendo. Nada respondeu. Não sabia o que estava acontecendo.
Seus olhos logo passaram a ter um brilho diferente. Suas ações passaram a ser temerosas a todos os familiares. Evitavam a todo custo que ela se aproximasse de facas ou outros objetos que pudessem ser utilizados como armas. Já não se alimentava normalmente e, na maioria das vezes, arremessava o prato pela janela. Mantinha-se silenciosa, mas de repente esbravejava contra todos.
O médico não teve dúvidas: aquilo era caso para psiquiatra, pois certamente a presença de todos os sintomas de loucura. O que disse o psiquiatra? “Ela não tem nada de anormal, pois todos nós somos assim veladamente. Mas como se mostra diferente de nós, então que seja tida como louca. E temo que ela se recupere e passe a fingir a normalidade que há em nós!”.


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Lá no meu sertão...


Meu sertão de Poço Redondo





Afeto e palavra (Poesia)



Afeto e palavra


Vem, assim tão bela, meu amor
depois do compasso das horas
e dos descompassos do dia
vem e repousa tua face meiga
sobre o travesseiro de meu peito nu

e passando a mão pelos teus cabelos
e acariciando a maciez de tua pele
olhar no olhar dos teus olhos belos
para quase sem palavras enfim dizer
que a razão da vida é ao teu lado viver.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - eu dei uma flor de plástico



*Rangel Alves da Costa


Eu dei uma flor de plástico, dessas que estão à venda pelas bancas das calçadas. Certamente que mais adiante havia um mercado de flores, e mil buquês de cores, de aromas e perfumes. Meu desejo era levar uma flor, mas não tinha dinheiro suficiente para um buquê natural, de rosas vermelhas e apaixonantes. O dinheiro que eu tinha só dava mesmo para comprar aquela flor de plástico, que até achei muito bonita. Imaginei que a simbologia prevalecesse sobre o orgulho e a vaidade. Quis apenas agradar, desejei apenas demonstrar afeto com aquela flor única, que, mesmo sendo de plástico, parecia colhida em jardim naquele mesmo momento. Mas errei. Ou ela errou. Não sei bem onde está o erro. Apenas sei que a flor de plástico foi lançada ao longe, espalhou-se sem pétalas e ao desalento. Então segui adiante, recolhi os seus restos e segui em frente, levando à mão aquela simbologia do amor. E sem olhar pra atrás. Sem nunca mais olhar pra trás.


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segunda-feira, 26 de agosto de 2019

AS PESSOAS E SUAS TRANSFORMAÇÕES



*Rangel Alves da Costa


Em muitas situações, a pessoa transmuda para um universo que nada tem a ver com o seu jeito próprio de ser. Por circunstâncias ou conveniências, de repente se torna em outra.
Não raro que surjam os comentários de como esta ou aquela pessoa mudou, e para pior ou pra melhor, segundo o julgamento do outro, e este sempre a partir de opinião pessoal.
Aqui diz respeito à mudança de comportamentos, atitudes, jeitos de ser e conviver, e não das transformações próprias trazidas na esteira do tempo.
Ocorre muito ante o poder, a função exercida e a graduação. Ora, raramente o ocupante de pedestal irá se comportar da mesma forma que fazia no seu passado.
O designativo “doutor”, muitas vezes, parece ser coisa do outro mundo, impondo uma limitação perante os pobres mortais. O anel e a caneta servem para mostrar o lugar de cada um.
A farda ou o fardão, a toga ou a gravata, a sala ou o gabinete, tudo isso serve como delimitação da esfera de cada um, e nesta hierarquia o afastamento daquele que nada é aos seus olhos.
Passa e nem olha. O cumprimento somente em mesmo nível. Quando necessária uma palavra com o dito “inferior”, esta sempre de modo arrogante, truculento, deseducado.
 “Sabe com quem está falando?”. Eis a síntese da transformação humana, quando homens deixam de ser homens e se tornam apenas em mero exercício de menosprezo perante os demais.
O poder abusa, é arrogante, é virulento, é demasiadamente desumanizado. O poder cospe no outro, chuta o próximo, fere qualquer, e pelo simples fato de ser poder, ainda que apodrecido na própria pessoa.
A autoridade é autoritária, tirânica, ditatorial. Quem se arvora de autoridade, logo se imagina comandando vidas, ditando comportamentos, fazendo o que bem entender perante aqueles que supõe  como súditos.
As provas estão aí. As salas e antessalas estão cheias de pessoas que merecem ser respeitadas por aqueles que, desejem ou não, estão à serviço da população. O povo deveria lembrar sempre disso.
Até mesmo no serviço público há reis e rainhas, soberanos e princesas, ditadores e tiranos, e todos até de uma vidraça tratando o contribuinte como cachorro, como asqueroso, como mero importunador.
Isso tudo me faz lembrar os escritos de um amigo meu, letras rabiscadas em seu caderninho, dizendo, em síntese, que o melhor da vida é o viver perante aquilo que se deseja e tendo, acima de tudo, humildade perante pessoas e coisas. Eis:
“Eu bem que poderia estar pisando no asfalto, passeando pelos shoppings ou pelos calçadões, mas eu estou aqui.
Eu bem que poderia ser adorador do terno e da gravata, devoto do anel no dedo, abnegado ao termo “doutor”, mas eu estou aqui do jeito que você é e como você está.
Eu bem que poderia chegar, fazer o que eu tenho a fazer, e depois simplesmente partir, mas eu vou onde você está.
Eu bem que poderia simplesmente passar por você, fazer que nem lhe reconheço mais e seguir adiante, mas eu lhe conheço sim, falo sim, abraço sim.
Eu bem que poderia caminhar pelas rodas de um carro, avistar o mundo atrás de um vidro fumê, sequer buzinar perante sua presença, mas eu vou caminhando e sorridente até onde você estiver.
Eu bem que poderia não me esforçar para lembrar o seu nome, mas sinto necessidade de lhe chamar como é conhecido e relembrar sobre tudo o que sei.
Eu bem que poderia não ir além do centro da cidade, não adentrar em ruelas, não visitar o chão batido, não avistar a pobreza, mas de nada disso eu sou distante.
Eu bem que poderia dizer além do que sou, subir estrelas em pedestais, mas bem sei que à escada sobe-se através do chão.
Eu bem que poderia ser egoísta, boçal, demagogo, e me adornar de ilusões para simplesmente querer ser mais que o mundo, mas todo dourado enfeia minha cor de couro e minha tez de areia.
Eu bem que poderia não bater em sua porta, não levar sorriso no olhar nem palavra boa comigo, mas eu sei o quanto deseja e precisa do olhar e da palavra.
Eu bem que poderia não aceitar seu café quentinho, não beber água em caneca, não querer sentar em sua mesa, mas agindo assim eu seria muito diferente do que realmente sou.
Eu bem que poderia não ser como sou e forjar ser outro, mas outro eu não sei ser. Eu bem que poderia negar minhas origens, omitir minhas raízes, ocultar de onde vem e por onde escorre o meu sangue, mas meu orgulho é ser sertanejo.
Eu bem que poderia aprender a dizer sempre não, mas não sei, mas não sei fazer assim, e tudo faço para dizer sempre sim.
Eu bem que poderia não estender minha mão à mão calejada de luta, fingir que não conheço o de roupa rasgada ou de pés descalço, fazer de conta que não é do meu mundo aquele mais desvalido, mas eu já não seria eu, e em mim eu já não estaria.
Eu bem que poderia ser diferente. Mas eu sou apenas eu. E um igual a você”.


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Lá no meu sertão...


Curralinho, povoação ribeirinha em Poço Redondo, sertão sergipano





Sóis, girassóis... (Poesia)



Sóis, girassóis...


O meu amor
tem sóis
arrebóis
rouxinóis
girassóis

e é a flor
em nós
em sussurros
sem voz
nos lençóis.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - uma antiga casa de farinha no Memorial



*Rangel Alves da Costa


A velha moedeira da antiga Casa de Farinha da Fazenda Coruripe já está quase toda montada defronte ao Memorial Alcino Alves Costa, na cidade sergipana e sertaneja de Poço Redondo. E assim porque vou fazer a junção de outras peças que também foram doadas pelo amigo Ailton, um dos herdeiros do Coruripe. Agora receberá tratamento contra cupins, depois será envernizada e, somente após será colocada no interior da casa da memória de Poço Redondo. E se acaso perguntarem o motivo de eu fazer isso, de me preocupar com coisas antigas, de ir atrás de relíquias que quase ninguém valoriza, simplesmente responderei: Um livro sobre o sertão, sobre Poço Redondo, não se escreve apenas com letras e papel, mas também com o que ainda existe de seu grandioso passado. E ainda acrescentarei: Mas principalmente porque amo fazer o que faço!


  
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domingo, 25 de agosto de 2019

ALGUMAS VERDADES



*Rangel Alves da Costa


Existem muitas verdades, mas algumas verdades nos servem mais, e assim por espelhar o que somos, como agimos na vida e como nos relacionamos perante os demais.
Tudo como visão de mundo. Mundo este refletindo a própria personalidade. Ou mesmo uma opção de viver de uma forma quando muito bem se poderia viver de outra.
Se eu sempre passasse de carro possante e vidraças escuras fechadas, certamente não teria como me aproximar de você para falar, para abraçar, para compartilhar o prazer da amizade.
Se eu usasse anéis dourados nos dedos de unhas afinadas, certamente teria as mãos limpas e finas demais para serem estendidas em direção a toda mão, e mão endurecida da luta, calejada de tempo, marcada pela vida dura.
Se eu satisfizesse meu ego apenas atrás de um birô e só atendesse que me chamasse de “dotô”, certamente não deleitaria o prazer de caminhar pelas ruas, virar esquinas, passar pelas calçadas e janelas, bater à porta, conversar com um e com outro.
Se eu “quisesse ser importante demais, seria uma chiqueza só”, roupa na goma, sapato brilhoso, um boçal idiota entre humildes e conterrâneos. Passava e nem olhava, virava esquina sem me importar com que quer que fosse.
Se eu, com a cara mais safada do mundo, quisesse ser o outro e não o que verdadeiramente sou, até o nome eu esconderia, fingiria nem ter sobrenome nem família, que meu sangue não é igual ao de todo mundo e que não venho da mesma raiz de um chão sertanejo.
Se eu quisesse me meter a besta, achando que vivo em pedestal e que nunca posso tropeçar em ponta de pedra e cair, até que eu poderia colocar paletó e gravatá e subir no alto da igreja apenas para me mostrar, e como se lá embaixo estivesse apenas uma gentinha qualquer.
Existem realidades e verdades na vida que são inegáveis. Ninguém é mais ou maior que ninguém. O poder é fogo que apaga e cinza que some. O egoísmo serve apenas para tornar a pessoa distante de todo mundo, fria, amarga e solitária.
O gibão é roupa vaqueira igual a uma roupa qualquer. E por que, com minha roupa chique, eu teria de nem passar perto do animal e do vaqueiro? Aquele que passa de roló velho ou de chinelo pregado com arame, juro que em nada se diferencia daquele que passa de sapato e meia.
Meu pai, um senhor chamado Alcino, que também cortava caminho levando havaianas nos pés, dentre muitas lições, eis que me deixou uma escrita: “Ninguém vive sem precisar do outro. E aquele de quem você fugiu para não encontrar, mais tarde será o mesmo que você tanto procurará!”.
Sigo a lição de meu pai. E digo ainda: Nada melhor que ser assim!


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Lá no meu sertão...


O São Francisco Sertanejo!




A casa (Poesia)



A casa


Uma casa
uma janela aberta
uma porta aberta
uma moringa na janela
um tamborete na porta
a vassoura junta folhagens
o café cheira na chaleira
o cachorro dorme num canto
um menino chega correndo

quando a lua vem
e dura a casa de amarela
as estrelas parecem nem existir
pois já estão brilhando na casa
nos olhos singelos de uma família
cuja riqueza maior da vida
é a casa.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - namorada



*Rangel Alves da Costa


Brigo demais com ela, enraiveço demais com ela, traquino demais com ela, mas ela é linda. Às vezes, mesmo na distância, eu me ponho a imaginar sua formosura. E também me pergunto: será que sua beleza está no amor sentido, apenas no meu olhar ou na ilusão de ter a mais bela namorada do mundo? Acabo concluindo que é uma junção de tudo, de verdadeira beleza e de amor sentido. Seu corpo, seu olhar, seu jeito de ser, tudo é belo. Algumas coisinhas complicam, como as teimosias, as implicâncias e as desavenças de vez em quando surgidas, mas tudo na normalidade dos relacionamentos. E juro que de vez em quando tudo parece desandar mesmo, coisa de o mundo parecer que vai acabar. E terminamos. E juramos nunca mais um olhar na cara do outro. Mas a mesma estrada que separa acaba nos unindo. E assim vamos seguindo. Eu com o amor sentido e ela com sua beleza, com sua bela feição de mulher.


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quinta-feira, 22 de agosto de 2019

IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DE POÇO REDONDO: NOS PASSOS DE SUA HISTÓRIA



*Rangel Alves da Costa


No último dia 15 de agosto aconteceu a celebração maior da religiosidade de Poço Redondo, no Alto Sertão Sergipano: Festa da Padroeira Nossa Senhora da Conceição. Ante a igreja e seus arredores repletos à espera da procissão, eis que me pus a imaginar quantos daqueles fiéis conheciam ao menos um pouco da história daquele sagrado templo. Comprometi-me, então, a tecer algumas considerações.
Igreja Matriz significa o templo mãe, o templo primeiro, o local escolhido para que os habitantes de uma comunidade ou povoação pudessem expressar sua fé perante um sagrado altar. Certamente que a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo não foi a primeira igreja nascida na povoação.
Antes de sua construção, e no mesmo local de onde agora se mostra bela e imponente, em outra localidade mais acima já havia surgido, em meio à comunidade primeira do Poço de Cima, a Capela de Santo Antônio, ainda nas últimas quadras do século XIX. Contudo, tal capela, pequena e modesta, surgiu por aspirações familiares, para os cultos e ofícios de uma comunidade profundamente católica. E mais antiga ainda é a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Curralinho, vez que em 1874, quando da passagem de Antônio Conselheiro e seus seguidores pela região, os alicerces daquele templo já estavam fincados.
Quando, após o florescimento das muitas fazendas que circundavam a região conhecida como Poço de Baixo e a formação de uma pequena comunidade nas beiradas do Riacho Jacaré, então o centro vivo daquela povoação sertaneja passou a ser a comunidade de Poço Redondo, assim denominado porque ao lado de um “poço redondo” onde costumeiramente os criadores levavam seus magros rebanhos para enganar a sede em épocas de seca grande.
Assim, ante essa comunidade surgida, também a necessidade de um templo católico onde houvesse a junção de todos os ofícios e cultos religiosos. Desse modo foi que surgiu a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, homenageando a padroeira escolhida da recém-surgida povoação, ainda que logo ao lado, no Poço de Cima, o padroeiro continuasse sendo Santo Antônio, como acontece até os dias atuais.
A denominação de matriz somente surgiu após a emancipação política local, em 1953, e a presença de outros templos católicos nas povoações do município. Passando a ser matriz, a igreja mãe das demais igrejas, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo tornou-se símbolo maior da crença, da fé e da religiosidade poço-redondense. A denominação de paróquia (subdivisão da Diocese de Propriá, abrangendo as diversas comunidades religiosas e igrejas na circunscrição de Poço Redondo) surgiu apenas em 15 de julho de 1979. Até essa data, a matriz e as demais igrejas estavam vinculadas a Porto da Folha.
Sua feição, contudo, já foi muito diferente da que atualmente se apresenta. Nasceu na simplicidade, surgiu como quatro paredes nuas com portas laterais e à frente, e um singelo altar. O único luxo que se tinha era a imensidão de fé em cada coração que ali adentrava. Desde então, seu percurso foi de progresso - mas também de retrocesso (principalmente quando se viu desprotegida e sem telhado).
Nos tempos mais antigos, e quando ainda pertencente à Paróquia de Porto da Folha, apenas duas missas eram celebradas, uma em data escolhida pela comunidade e a outra na celebração da padroeira, no mês de agosto, daí ter surgido a famosa e cada vez mais ofuscada Festa de Agosto. Para a celebração das missas, o sacerdote geralmente chegava à povoação montado em burro e após uma longe e cansativa viagem.
Fato interessante ocorreu em 1929, quando o bando do cangaceiro maior, o famoso Virgulino Lampião, assistiu missa celebrada pelo Padre Artur Passos. Uma cena que em muito atiça a imaginação: a cangaceirama em plena devoção, orando ajoelhada, enquanto o velho sacerdote discorria sobre os pecados do mundo. Lampião, fervoroso católico, devoto do Padim Ciço e da Senhora Mãe, recebendo a hóstia sangrada e todo paramentado de embornal, cartucheira, punhal e arma cuspideira de fogo.
Mas os fatos, lendas e curiosidades, são muito maiores, e que certamente não cabem na estreiteza de um escrito qualquer como este. Muitos foram os sacerdotes que já pregaram perante o seu altar: Padre João, Padre León Gregório, Frei Teodoro, Padre Fabiano, Padre Mário, Padre Valdinã e muitos outros. A partir de suas posrtas as Santas Missões, as presenças sagradas de Frei Damião e Dom José Brandão.
A partir de suas portas e ecoando pelo mundo-sertão, as vozes beatas, as vozes da fé, os cantos e as ladainhas. Vozes ainda presentes como a de Marizete e Geovanete, e ecos já saudosos como os de Mazé de Iracema e Maria José de Zé Preto. Um mundo sertanejo e sua igreja, aquele mundo de Mãeta, de Bebela, de Dona Lídia, um mundo de tanta crença e tanta fé que se perpetua no próprio tempo.
Mas eis, ali no centro do mundo chamado Poço Redondo, a bela matriz de braços abertos. Lá dentro, mas com mãos estendidas por todos os sertões, uma Senhora Mãe Sertaneja a dizer: Abençoados sejam os filhos meus!


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Lá no meu sertão...


Vaqueiros de Poço redondo, sertão sergipano





Igual ao jardim sem flores (Poesia)



Igual ao jardim sem flores


Depois que abri a janela
e adiante ao invés das flores
no belo jardim de cores e aromas
eu avistei a dor acinzentada
em galhos tristes retorcidos
e folhas mortas esvoaçando
eu busquei compreender
os motivos da transformação
e o porquê da lágrima solta
na face onde havia sorrisos

e então olhei dentro de mim
para me avistar na solidão
de um amor tão desamado
ao desvão de jardim ressequido
por um adeus sem lenços
em mãos me mandando embora.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – ela não veio



*Rangel Alves da Costa


A lua não veio nesta noite. E sem lua, sem o seu clarão, sem a sua poesia e os seu encanto, tudo fica mais angustiante e triste. Ela também não veio nesta noite. Ela sempre chegava linda, perfumada, encantadora, cheia de beleza e sedução, mas nesta noite não veio. Mas ela veio nesta saudade. Não queria que ela viesse, mas ela chegou e se apossou de mim: a triste, a angústia, a aflição, a saudade, a desvalia num ser que só quer amar. Abro a janela e só encontro a escuridão. A estrela também não veio, a palavra do vento não veio, a boa recordação não chegou. A porta não foi aberta, pois ela não veio. A taça chora o vinho, pois ela não veio. Sem lua, sem estrela, sem ela, resta-me adormecer e sonhar com seu beijo, seu abraço, seu prazer. Mas temo acordar e dizer a mim mesmo que ela não veio.


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quarta-feira, 21 de agosto de 2019

POÇO REDONDO, CANÇÃO AO PASSADO



*Rangel Alves da Costa


Poço Redondo, meu sertão querido, o seu álbum e suas molduras ainda vivem em mim como imagens eternizadas no coração. Por isso tanto me lembro, tanto recordo, tanto busco nas nostalgias suas feições mais singelas.
Ainda me lembro da tábua de pirulitos de mel de Dona Luisinha, do arroz-doce de Baíta ao entardecer, de Maria do Piau aparecendo na esquina com sua piaba salgada em cesto na cabeça. Mãeta em sua calçada dando a benção a quem passasse e pedisse a proteção. Seu João Retratista chegando de Pão de Açúcar e armando seu tripé perante aquele que desejasse uma fotografia como recordação. 
Nas proximidades da Festa de Agosto, Manezinho Tem-tem, famoso engraxate daqueles idos, atravessava o rio para fazer verdadeiros milagres em sapatos tortos, tronchos, de muito caminho andado. Delino vendendo banana, Delino com o seu bar, e das três portas adentro o forró comendo no centro.
Certa feita, num dia de forró de Festa de Agosto, Heraldo Carvalho da Serra Negra entrou pelas portas do bar com cavalo e tudo. Quem reclamava? Quantos sanfoneiros bons já animaram aquele passado poço-redondense: Zé Aleixo, Zé Goití, Dudu, Agenor da Barra, Dida e tantos outros. Zelito era a voz do forró de Zé Aleixo. Miltinho abria as portas de seu bar para resgatar aquele forró pé-de-serra que já descambava para o esquecimento.
Camisa chique de volta-ao-mundo, calça boca-de-sino, brilhantina no cabelo e nos bolsos um pente e um espelhinho ovalado. Ali na Praça da Matriz, bem defronte à casa de Tia Cordélia, a marinete de Seu Vavá parando depois de mais de cinco horas de viagem por estrada de chão, e todo o sacrifício para chegar ao sertão. E, tantas vezes, para fazer retornar sertanejos depois de uma estadia no sul.
Gente passando menos de ano pelo Rio de Janeiro e São Paulo e logo chegando com falar diferente, num carioquês ou paulistês desavergonhado que só. Trazia sempre uma radiola e discos de Maurício Reis, Odair José e Fernando Mendes. Depois era uma farra, mas só até o dinheiro ir minguando e o sertanejo se virar como podia para se manter. Tudo isso ainda possui presença forte na minha memória.
As calçadas do entardecer tomadas pelas senhoras e suas almofadas de renda de bilros. Araci, Maria de Iaiá, Dom, Clotilde, uma irmandade que era só maestria no tracejar dos bilros fazendo encantamentos sobre as marcações das almofadas. No barraco de Zé de Lola a pinga boa. Não havia quem não se encantasse com o doce de leite de bolas do Bar de Noélia. Também local onde a vaqueirama se juntava para a farra e o aboio.
Quando Zé Ferreira, Ademor e tantos outros chegavam por ali, então tudo parecia cheirando a terra e a gado, mas principalmente a aboio e toada, e tudo em meio a uma cervejada sem fim. Pelas ruas, o que sempre há em toda cidade interiorana: os doidos, desajuizados, ou aluados, como melhor se dizia. Zé Gabão, Expedito e até Tonho Bioto, quando a lua desandava o seu juízo. Tonho Doido e Nalvinha viviam na paz de seus poucos juízos, sendo amigos de todo mundo.
Pano de roupa de festa, florido, bonito, tudo era encontrado com a irmandade Izabel Marques, Mãezinha e Conceição. Uma vez por ano, eis que a cidade parecia ser outra. Além da roupa nova para a Festa de Agosto, também as fachadas das casas recebiam pintura nova. Nas calçadas, por riba de cadeiras, colchas e panos rendados ao sol. Também uma forma de mostrar as posses daquela família.
Um dia inesquecível foi a chegada da televisão na cidade. O colorido era apenas numa tela de plástico de diversas cores colocada sobre o chuvisquento preto e branco. Parecia coisa do outro mundo! Mas nada igual ao Cassimicoco de Julinho e as serenatas ao som da sanfona de Zé Goiti pelas noites enluaradas da cidade. Já perto da meia-noite a Praça do Cruzeiro parecia só de Alcino. Chegava com sua radiola e discos sertanejos e então deixava se embriagar pela lua e as estrelas de seu sertão.
Poço Redondo era um mundo assim, de viver singelo e pacato, mas de uma grandiosidade sem fim. Aquela Rua dos Vaqueiros e suas porteiras agora saudosas dos grandes homens: Abdias, Tião de Sinhá, Mané Cante, Bastião Joaquim e tantos outros. Chico de Celina ora passava esquipando em cavalo bom ora passava tangendo um carro-de-bois. Mariá juntava uma trouxa grande e seguia com as muitas roupas em direção às pedras do riachinho.
Maninho chegava junto pé do balcão e pedia uma relepada boa, não demorava muito e já estava esfuziante: “Ora, pois, pois...”. Dizia sem nada reclamar da vida. Nos anos 70, a inauguração da energia elétrica fez a noite virar dia. Galinhas, pintos e galos, confundidos com o clarão, desceram de seus poleiros e tomaram a cidade inteira, dividindo as ruas com as pessoas maravilhadas.
E eu aqui apenas com muita saudade, tendo que me contentar em abrir aqueles velhos baús para reencontrar o doce e nostálgico passado de Poço Redondo.


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Lá no meu sertão...


Avenida Alcino Alves Costa, Poço Redondo/SE



Desamor (Poesia)



Desamor


Eu amei
juro que amei
até onde
me foi possível
amar

não desamei
o afeto persiste
mas o que existe
foi tão desamado
que teme amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - sou uma casa velha



*Rangel Alves da Costa


Sou uma casa velha. Casa velha, de portas e janelas fechadas, abandonada. Paredes frágeis e frestas de sol e lua. Sou uma casa velha sim. Ninguém mais bate à minha porta, ninguém mais chega à minha janela, ninguém anuncia chegada. Outrora as flores no jardim, as folhagens formando tapete entre o ocre e o dourado, pombos catando grãos, um banco para repouso e memória. As borboletas bailavam, os colibris dançavam, as abelhas beijavam as pétalas adocicadas. Pelas janelas abertas entravam as manhãs e as noites. Pela porta aberta entrava a notícia boa, o sopro do vento, o livro de poesias. E bastou que o outono chegasse. Não a antítese primaveril, mas o outono na força e no viço, na posse e no luxo, nas benesses mundanas. Assim que me vi assim, sem mais ter a ilusão, então a realidade mudou de cor, de viço, de força, e assim chegando as folhas secas e a ventania. Quando tudo sumiu, então a casa fechou sua porta, trancou sua janela, e deixou que o tempo cuidasse de todo amanhã. Hoje apenas uma casa velha. Uma existência quase sem existir, uma vida quase sem viver, uma escuridão sem luz que sirva de guia. E os que adiante passam e não sentem mais o perfume nem a palavra alegre, não se encantam com o glamour do passado, simplesmente seguem dizendo a si mesmos: não existe mais, não existe mais!


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terça-feira, 20 de agosto de 2019

UMA CARTA



*Rangel Alves da Costa


“Bom dia, boa tarde, boa noite... Como vai, tudo bem? Espero que esteja sim, pois o que mais precisamos é de um pouco de paz nessa vida. Gostaria que o abraço fosse acompanhado desta xícara de café que agora tenho diante de mim. Na verdade, nunca estou sem uma xícara de café por perto. Outra coisa que jamais deixo de ter comigo é uma janela aberta. Ah quanto bem me faz uma janela aberta e a imaginação indo além de seu vão e seu umbral.
Custou-me muito escrever essa cartinha. Na verdade, quase não escrevo mais. Também abdiquei das muitas leituras. Agora somente o essencial. Mais fácil ler receita de bolo que filosofia, mais fácil ler horóscopo do que notícias sobre política. Um enojamento só. Também não admiro a filosofia como antigamente. Ora, vivemos num mundo real e assustador demais para que, além disso, adentremos nos infindáveis mistérios filosóficos. Diga-me, por favor: qual a valia da retórica filosófica ao mundo?
Não concebo mais me adentrar nas entranhas daqueles velhos filosóficos que nunca chegavam a consensos entre eles mesmos. Até hoje não sei se houve algum vitorioso na guerra do ser, do nada ser, do vazio, do caos, da síntese, da antítese, da síntese da antítese. Segundo um conhecido, viver de pensar só existe para quem não tem o que fazer. Certo que existe algo inteligível na concepção filosófico, mas - e repito - continuo não sabendo o motivo de se cavar um poço que nunca tem fundo. E a filosofia faz isso.
Na verdade, gosto mais do simples, do acessível. Gosto de imaginar apenas quando estou na minha janela. No demais, sempre achei com maior validade sentir a força do vento, a chuva molhando, a terra sobre os pés, o grilo cantando, o vaga-lume acendendo seu candeeiro, o cheiro de café na chaleiro ou do ovo de capoeira na frigideira. Ora, são coisas plausíveis, sensíveis, alcançáveis. Que luxo da vida poder beber da água fria de uma fonte que se mostra límpida e transparente bem adiante do caminhar.
Penso muito em também abdicar da cidade e ir de vez para as distâncias. A cidade não existe mais. O que se tem é apenas medo, violência, abusos, absurdos, buzinas, gritos, brutalidades e arrogâncias. Na cidade, um mundo de portas e vidas fechadas, e por medo de tudo. O homem da cidade também desumanizou, esta a verdade. Aquele que passa parece mirando um inimigo que também passa. Olhares arrogantes, frios, brutais. Aquele velho bom dia ou boa tarde já não existe mais. Ninguém mais se senta em banco de praça ou coloca sua cadeira na calçada. Ninguém é doido de fazer assim.
Nas cidadezinhas distantes ainda persiste outra realidade. Logicamente que o mundanismo e os modismos já abriram todas as cancelas e porteiras, mas ainda é possível viver com mais prazer, segurança e dignidade. Sei que muita gente é avessa a isso, mas vejo como possibilidade de me exilar pelos campos, pelos beirais de estradas, ou mesmo dentro dos matos, em refúgio numa casinha modesta, humilde, singela. Criar galinha, ter alguns bichos de cria ao lado, semear o grão e colher o necessário à sobrevivência. Que bom será dialogar com a natureza, caminhar pelas veredas, avistar o sol se pondo e a lua surgindo. E ter um oratório para dignificar minha fé.
Assim o que penso, amigo. Como dito, esse café de que me sirvo agora seria bem mais saboroso se houvesse sido preparado naqueles sertões que eu citei. Não me importo de tomar água de moringa nem de preparar comida em fogo de chão. Talvez um radinho de pilha ao lado e um caderno para escrever qualquer coisa. Ah! Isso eu não posso esquecer: uma rede para armar e nela adormecer para o sonho bom. Acho que será possível ainda encontrar esse mundo. E por isso mesmo me despeço agora para arrumar mala e sonhar. Até mais. E apareça por lá!”.


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Lá no meu sertão...


No sertão, secando feijão...