SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 25 de novembro de 2020

REFLEXÕES, VENTANIAS E SOLIDÕES


*Rangel Alves da Costa


A vida é cheia de encantamentos, de tristezas, de alegrias. Na infância um viver de desandar e revirar, de se esconder e não querer ser achado. Para depois ter de acertar o passo na vida e aprender a caminhar na estrada.

Depois disso, depois que a juventude vai despertando o ser com outro pensamento e ideias, os caminhos passam a ser escolhidos com mais vagar e os passos dados sem muita pressa de chagar. Compreende-se a vida como um estranho livro.

Quando a idade avança, e vai avançando cada vez mais, aqueles caminhos passados, aqueles passos dados, tudo é retomado pelo pensamento, pela memória, pela nostalgia. E sabe que daí em diante pouco irá caminhar, e sequer em busca de sonhos tão desejados e jamais alcançados.

Tudo se torna difícil demais. As estradas são apenas os passos, as realizações são aquelas rotineiras e de pouco fazer. Olhar que se lança saudoso aos horizontes, coração que ainda sente pulsar desejos antigos. Mas tudo apenas alento para afastar as angústias da solidão.

Solidão que chega como companhia inafastável. Na velhice há uma solidão que, mesmo não estando sozinha, a pessoas se sente como distanciada de tudo, como se não puder mais ter ao lado as coisas tão cativantes.

E depois vem a soleira da porta como horizonte de vida. Foi assim que aconteceu com um conhecido e acontece com muita gente.

Na soleira da porta, ele via tudo passando. Os ódios, os rancores, as falsidades. Tudo passava e ele continuava feliz...

Na soleira da porta, bem em cima do batente e ladeando a portada, ele via as folhas secas esvoaçando em fúria. Entristecia, mas pensava na próxima estação e continuava feliz.

Na soleira da parta, logo ao amanhecer, ele viu o menino do pirulito passar e comprou uma porção só pra lhe causar contentamento. O menino estava triste, mas o seu novo sorriso também lhe trouxe felicidade.

Mas houve um tempo em que ele ia muito além da soleira da porta. Cortava estrada, seguia distante, chegava perto do céu no seu cavalo alazão. Retornava no suor na luta, mas sempre feliz pelo seu ofício.

Dono do mundo. Avô, pai, tudo. Cheio de força e disposição, não sentia cansaço nem quando o ofício do dia parecia querer testar suas forças. Vencia espinhos, pontas de pedras, tocos de pau, e sem jamais perder o encorajamento em busca da felicidade.

Olhos acostumados a avistar o conhecido e o espantoso. Mãos que se alongavam como se quisesse alcançar o sol e a lua. Uma sabedoria de mundo, tudo aprendido no livro da luta, que nenhum mestre de academia jamais saberia igual.

E hoje, ou já desde algum tempo, apenas ali na soleira da porta. E da soleira da porta avistando o mundo que era seu e que não é mais. Não entristece, não lacrimeja, não se atormenta por dentro. Tudo conseguiu, e por isso é feliz.

Tudo conseguiu, mas o que conseguiu? Sobreviver em meio a tanta dificuldade, ter o pão de cada dia em meio a tanta panela vazia e prato sem pão, ter a honradez de olhar para o passado e dizer que foi honesto em cada passo que deu.

Mas hoje está na soleira da porta. Noutros idos, costumava sentar num tamborete pela calçada ou mais adiante na malhada, em cima de um tronco de pau deitado. Conversava com os bichos, com o passarinho, com a pedra grande, com o vento açoitando.

Não reclamava de não poder cortar estrada e tomar poeira no meio do mundo. Não entristecia poder não poder mais se achar o dono do mato, das catingueiras floridas e das pedras molhadas do riachinho. Tudo tem seu tempo, dizia.

Contentava-se com o seu mundo na soleira da porta. Até podia andejar pelos arredores, colocar cadeira debaixo do sombreado da jaqueira, conversar lá fora com o calango e passarinho.

Era ali que gostava de ficar matutando as coisas da vida. De vez em quando conversando sozinho (porque achava bom fazer assim), sentenciava: Pensando bem... A gente vale tão pouco aos outros, que num instante a gente não vale mais nada!

Pensando bem... A idade da gente devia ser repartida. Quem não soubesse viver a fatia dada, mais adiante essa fatia seria perdida até retornar ao tempo perdido, com a obrigação de aprender a viver.

Contudo, um mistério há nessa história toda. Ele sempre está ali na soleira da porta, entre o vão de fora e o vão de dentro, por um motivo angustiante e pesaroso demais. Dali daquele local deu adeus à velha companheira quando ela partiu para a eternidade.

E depois disso, feito menino teimoso, ali, ali na soleira da porta, fica a esperar que um dia ela volte. E crê que a morte é ressuscitada em nome do amor. E acredita que quando o amor é profundo demais nenhum adeus será de última despedida.

Assim, na soleira da porta também está o amor.

 
Escritor
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Lá no meu sertão...



Retratos e saudades...



Amor mortal (Poesia)


Amor mortal


A mentira
murchou o amor
como veneno
que mata rato
 
a falsidade
envenenou o amor
como estricnina
vendida em beco
 
a traição
assassinou o amor
como jagunço
cruel e covarde
 
o amor murchou
o amor foi envenenado
o amor morreu matado
 
mas na autópsia lê-se:
morreu quem
no falso amor acreditou!


Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - lavando roupa, varrendo chão...


*Rangel Alves da Costa


Sempre vivo sozinho, nem sempre tive quem lavasse minhas roupas, varresse o meu chão, pregasse meus botões, costurasse minhas roupas rasgadas ou descosturadas, forrasse minha cama, guardasse minha rede, fizesse minha comida. Tudo isso eu faço sozinho, e sem qualquer receio, vergonha ou por medo de maldosas insinuações. Ora, se preciso viver, então preciso cuidar de minha vida, de me prover do que preciso e ter aquilo que desejo ter na hora que precisa. Sim, eu bem que poderia pagar a alguém pra lavar, passar, cuidar do básico de uma casa. Mas não, se eu posso fazer, então faço. Sou solteiro, nem sempre tenho companheira ao lado, deixo o meu relógio ao sabor do tempo, e vou fazendo o que posso fazer para o meu bem viver. Ademais - e como diz o ditado -, não vai cair a mão se eu fizer serviço doméstico, principalmente quando o doméstico me diz respeito. E assim também faria se tivesse esposa ou convivesse com alguém. Mulher não é empregada do esposo nem obrigada a lhe servir em tudo. Nada demais varrer uma casa, lavar panelas e pratos, estender roupas no varal, dividir tarefas. Mas como dito, sendo solteiro, vivendo sozinho, nunca deixo pra depois o que tenho de fazer para o meu próprio bem-estar. Sou advogado, jornalista, historiador, escritor. Mas também sou aquele que prega seus botões, que varre sua casa, que lava e passa sua roupa...


Escritor
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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ADÍLIA E SILA: OS CONTRASTES DE DUAS CANGACEIRAS DE POÇO REDONDO


*Rangel Alves da Costa



Poço Redondo, município encravado no sertão sergipano, foi berço de nascimento de mais de trinta cangaceiros. Trinta e cinco, em verdade. Então uma pequena povoação pertencente ao município de Porto da Folha, por todo lugar viu sua geração sertaneja tomando os caminhos do mundo nos passos do bando de Lampião.

Dentre as sete mulheres (Enedina, Rosinha, Áurea, Adelaide, Dinda, Sila e Adelaide), foram as duas últimas que mais se destacaram na vida bandoleira. Sila por ser companheira de Zé Sereno, um renomado líder de subgrupo. E Adília por ser companheira de Canário, outro cangaceiro de destaque no bando do Capitão, ainda que servindo no subgrupo do companheiro de Sila.

Cada membro do cangaço possuía características pessoais que até hoje o identifica por diversos aspectos, fosse na valentia, na pontaria ou no tino de liderança. Com as mulheres não era diferente. Contudo, foi após o fim do cangaço em 38, após a retomada da vida social, que outras características passaram a envolver os que restaram do bando de Lampião.

Uma exemplificação das mudanças e permanências pode ser obtida perante duas cangaceiras de Poço Redondo: Adília e Sila. Conterrâneas, conforme dito, de origem nas redondezas do atual Alto de João Paulo, filhas de sertanejos de foice e enxada, levadas ao mundo cangaceiro ainda jovens, tiveram irmãos cangaceiros, mas somente isso como semelhanças. No restante, contudo, eram totalmente diferentes. E isso foi mais facilmente observado no pós-cangaço.

Adília era de poucas palavras, sem gestos afetados ou sorriso aberto, numa singeleza e humildade que a caracterizou até seus últimos dias. Adília foi apenas de silêncio e memória, foi de tentar fazer de conta que nem havia pertencido ao mundo brutal e desumano do cangaço.

Jamais abriu a boca para, sem ser perguntada por algum amigo ou conhecido, revelar qualquer fato ou situação daqueles tempos difíceis em meio aos catingueirais e pontas de espinhos. E quando falava, também pouco revelava do muito e de tudo o que sabia. Era um baú – quase sempre fechado - de tristes recordações.

Não falava sequer em Canário, seu falecido companheiro nos tempos da cangaceirama. Também não tinha boas lembranças para falar, pois a mocinha que seguiu o cangaceiro por amor, logo se arrependeu do erro cometido e passou a odiar não só o cangaceiro como a vida sofrida que levava.

Mas nunca o traiu, nunca abriu a boca perante todos para revelar o fel guardado nos sentimentos. Suportou a tudo de forma paciente, comedida, como se penalizando estivesse pelo erro cometido. Também não gostava de falar sobre seu irmão Delicado, também integrado ao mundo cangaceiro.

Ao fim do cangaço, acabou retornando a Poço Redondo, ao Alto de João Paulo, de onde havia saído e onde passou a morar até seu último instante de vida. E numa vida tão simples que o forasteiro jamais poderia imaginar que ali vivia uma ex e famosa cangaceira. Daqueles tempos, trazia consigo apenas uma marca de tiro numa das pernas.  

Já Sila era totalmente diferente. A irmã dos cangaceiros Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro, e companheira de afamado chefe de subgrupo no cangaço, gostava de falar e até falar demais. Sila fez de seu passado cangaceiro um festim, um brilho hollywoodiano, transformando-o em algo forçadamente honroso e exuberante.Perante as câmaras e lentes, a ex-cangaceira se transformava em verdadeira estrela, contando e recontando fatos e passagens como num filme deslumbrante.

Muitos pesquisadores do cangaço ainda hoje negam a veracidade de muitas de suas afirmações. Na verdade, foi, por semelhança de pedestal, a Maria Bonita do subgrupo comandado por Zé Sereno. Mesmo que nenhuma cangaceira tivesse se equiparado em garra e valentia a Dadá, as companheiras dos líderes sempre quiseram arvorar para si uma majestade superior. E Sila assim se manteve no pós-cangaço.

Morando em São Paulo, dando entrevistas, relatando fatos para a escrita de livros, chegada aos holofotes, já não era a sertaneja dos caminhos de poeira e pedra das bandas de cá. Mais parecia uma artista quando visitava Poço Redondo. Sempre charmosa, perfumada, bem penteada, toda nos trinques, era um retrato bem diferente da outrora companheira de cangaço chamada Adília.

Enquanto Sila vivia da fama e bordando ao bel-prazer seu passado, Adília estava ali, quietinha, sentadinha em sua cadeira nas vizinhanças da cidade. Com tez morena, roupa simples, na casa humilde, no silêncio das horas, assim era a Adília que conheci e fui amigo, ainda que meninote.

Também conheci Sila, mas não de aproximação, apenas de avistamentos quando estava ao lado de meu pai Alcino, nas vezes que visitava Poço Redondo. Por último, dizer que a foto acrescida contrasta as realidades posteriores. Na foto, o sorriso é de Adília, enquanto Sila não mostra nenhum contentamento. Mas depois, depois do fim do cangaço, o sorriso foi apenas de Sila. 


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Lá no meu sertão...


No sertão, a vida e seu viver...






Eu sei que o amor... (Poesia)


Eu sei que o amor...


Eu sei
que o amor vai além
do apenas amar
do apenas sentir
do apenas querer
do apenas estar
 
eu sei
que o amor foi além
para ser a fogueira
para ser vendaval
para ser dia santo
e também carnaval
 
eu sei
que o amor é também
todo bem e todo mal
que é a doença e a cura
um destino não lido
que o peito transfigura.
 

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - agora chove...


*Rangel Alves da Costa


Já é noite e agora chove. Um silêncio de chuva que muito me agrada, ainda que os sentimentos sejam mais despertados pelos pingos que caem. Noturno chuvoso é assim: melancolias derramadas a me tomar por inteiro. Noite chuvosa é assim: saudades e nostalgias em correntezas e encharcamentos. Na vidraça molhada não há coração desenhado nem frase de amor de um dia, sequer de angústia ou desilusão. Da janela aberta, apenas o olhar para o mundo molhado adiante. Não haverá lua nem estrelas brilhando no alto. Adiante do portão, os pingos avançando sobre minha pele e sobre a aridez da solidão. A rua parece nua, os gatos não passam, os cachorros não ladram. As crianças não brincam nem as vizinhas tomam as calçadas para cuidar da vida dos outros. Portas e janelas fechadas, chão molhado, uma luz no asfalto caída do poste. Esqueci meu lenço no varal, mas não quero chorar. Mas chove, e chove por todo lugar. Lá fora e dentro de mim.


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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O VESTIDO DA MULHER DE BRANCO


*Rangel Alves da Costa

A Mulher de Branco é tão misteriosa e amedrontadora que ninguém sabe ao certo sua origem nem a real motivação de aparecer toda vestida de branco após o anoitecer nas curvas dos caminhos, nas lombadas das estradas, apenas surgindo de forma fantasmagórica.

Também estranho que nem todo mundo consiga avistá-la, pois apenas alguns cujo olhar de repente se assombra diante daquela imagem assustadora. Dizem até que, como num voo, às vezes se lança em direção à vidraça dos veículos. Para depois sumir.

Muitos falam que não passa de uma lenda, de um velho mito que vai se espalhando de geração a geração. Outros, contudo, não só asseveram sua existência como confirmam a sua visão. Muitos juram por tudo na vida já tê-la avistado em determinado lugar de uma estrada.

E muitos até confirmam os lugares mais propícios ao seu encontro. E dizem: “Depois daquela curva, logo na descida, é ali que ela aparece, e do nada, apenas como um vulto todo vestido de branco. E é uma mulher, pois muitas vezes dá até pra ver a feição esbranquiçada da morte e os cabelos desgrenhados dos fantasmas levantados dos túmulos”.

Em Poço Redondo, no sertão sergipano, dizem que na pista em direção a Canindé de São Francisco, principalmente depois da fazenda Santa Rita até chegar ao Mulungu, vez por outra a mulher é avistada nos beirais da estrada.

A visão é tão repentina e assustadora que muita gente sequer acredita no que está diante de si. Somente depois do susto é que vem o medo. Muito motorista se mija nas calças, procura cabelo na cabeça sem encontrar, tremelica tanto que jura nunca mais passar por ali depois do escurecer.

E dizem ainda que a tal mulher também gosta de subir na garupa da moto de solitário viajante. O motoqueiro vai seguindo tranquilo, despreocupado, mas de repente sente um peso maior na garupa. Olha pra trás e logo avista a roupa branca da desconhecida. E também logo sente o bafo frio dos mortos no seu cangote.

Assim já aconteceu, e com gente que não aceita ser chamado de mentiroso. Contudo, eu conheço outra história de outra mulher de branco. Da mulher cujo vestido branco, de casamento, todos os dias é avistado pendurado na parede de uma casinha sertaneja de barro e cipó.

A mulher foi abandonada no dia do casório, enlouqueceu e se trancou para sempre. Uns dizem que já morreu, outros dizem que não. Mas toda noite o vestido some do local onde vive dependurado. E um vulto vestido de branco é avistado andando pelas estradas. 

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Lá no meu sertão...


Pelos sertões, entre chegadas e partidas, as memórias e as saudades...





Flor (Poesia)


Flor

 
Meu amor
é uma flor
 
uma mulher
apenas
 
com ternuras
e iras
 
com afetos
e dissabores
 
e por isso mesmo
uma flor
 
em meus braços
desabrocha
 
e perfumada vem
para o seu colibri
 
que com todo amor
beija a flor.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a saudade


*Rangel Alves da Costa


Como é bonito o ser assim tão sertanejo. Como é bonito o olhar, o falar, o sentir de um povo assim tão sertanejo. Uma gente que é jardim e que é flor, que é de decente simplicidade, que é tão grandiosa na humildade. Uma gente de carinho e de afeto, de meiguice e de presença boa. Uma gente que de diz palavras belas em seus silêncios tão acanhados. Um povo que abre a porta e vem ao abraço apenas pelo sorriso sincero que nos afaga. Um povo que vai ficando aonde vive e a gente segue sentindo saudade. Uma gente que ao longe nos olha e o nosso coração faz pulsar com desejo de voltar. Um povo que é do meu sertão. E que é irmão. E por isso mesmo tanta saudade. Saudade por que olhei pra trás e avistei aquelas vidas ainda juntinho da porta da frente. Saudade por que o que ficou para trás é tudo aquilo que eu gostaria que estivesse sempre comigo. O povo do meu sertão.

Escritor


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

TREM DA MEMÓRIA


*Rangel Alves da Costa


Já não sei se trem de partida ou de chegada. A estação já estava vazia, triste, silenciosa.

Os bancos estão desocupados, folhagens dançam no chão de terra. A ventania chega trazendo poeira, um cachorro late uma saudade distante.

Um cheiro diferente no ar. Não sei se de fumaça do trem ou da aparência antiga e maltratada do lugar. Mais de cem anos de adeuses, abraços, despedidas.

De um lado, ao longe, apenas a curva da montanha entreaberta para sua passagem; do outro, onde o olhar vai se perdendo na finura dos trilhos, apenas uma cor sombria de desalento.

Os trilhos não deixam marcas, não indicam da proximidade ou da já distante partida. Nos encaixes, madeira velha divisando o percurso, nenhum sinal de calor do instante.

Queria ouvir uma voz, encontrar alguém que soprasse notícia, dissesse sobre a hora do trem, falasse sobre quem chegou ou partiu, quando o próximo apito será ouvido.

Uma velha mala num canto, um chapéu alanhado esquecido num banco, um envelope retorcido já sendo levado pela ventania. Um lenço branco espalhado no meio dos trilhos, e até parecendo ainda molhado.

A portinhola dos bilhetes de viagem dança ao sabor da aragem. Passo o olhar pelo interior e vejo apenas papéis rasgados numa caixa de chão. Um velho birô, uma cadeira mais velha ainda. Um calendário amarelado de tempo na parede.

Avisto ainda uma antiga fotografia daquela estação. Tudo igual, a mesma solidão, a mesma feição, apenas um trem que desponta imponente soltando fumaça. No local de desembarque e espera apenas um cachorro magro com a língua de fora.

Imagino que as pessoas deixaram de existir na fotografia. Estavam ali com seus lenços à mão, seus buquês perfumados, seus braços prontos aos abraços. Ou talvez apenas para dizer adeus, para a despedida, envoltas em lágrimas e aflições.

Sei que não existe estação de trem tão sozinha, tão desalentada, parecendo esquecida de tudo. Ela é sempre viva, cheia de vida, tomada de passos e de olhares, ainda que fantasmas de um tempo que se foi no último vagão.

Olho a montanha adiante, lá onde o trem faz a curva, e me pergunto quantas saudades, quantas alegrias, quantas feições entristecidas já avistou pela janela.

Dentro do trem, as pessoas nem percebem que estão sendo observadas pela natureza, pelas montanhas e pedreiras, por tudo ao redor. Mas vão passando e deixando suas impressões no que fica.

Por isso mesmo aquela montanha ser tão conhecida como os olhos entristecidos da natureza. Se as pessoas avistadas estivessem sempre felizes, sorridentes, cheias de contentamento, seu nome certamente seria outro.

O mesmo acontece com as distâncias que vão sumindo do outro lado. Um descampado largo que dá passagem aos trilhos, para mais adiante ir estreitando até sumir no olhar. Se o trem vai naquela direção, certamente que os lenços acompanhavam o apito e a fumaça até tudo sumir de vez.

Mas nem avistava mais. Os olhos molhados se encarregam de nublar o horizonte, de turvar a saudade que já não olha pra trás. Melhor assim, menos dolorido assim, pois não há nada mais triste que viver tendo à mente o trem seguindo, partindo, sumindo, desaparecendo.

Não sei quantas horas são; não sei se restará outro trem para este dia. Preciso viajar pra qualquer lugar, mas também desejo ardentemente que alguém chegue à estação, ao longe me aviste e molhe o lábio para o reencontro.

Mas não sei, verdadeiramente não sei se partirei ou continuarei por aqui, esperando o trem, o apito, a fumaça do trem. O relógio parou, o horizonte está nublado, não sei da hora do dia.

Agora ouço um apito, mais um, mais outro. E como meu coração bate assim, feito apito de trem, quando está com saudade. 

Escritor
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Lá no meu sertão...


Craibeira em Flor - Estrada de Curralinho, Poço Redondo, sertão sergipano







Minhas roupas velhas (Poesia)



Minhas roupas velhas


Gosto de roupas
roupas novas e bonitas
folgadas e confortáveis
até mesmo caras demais
para o pouco que possuo

mas gosto ainda mais
das roupas velhas
minhas velhas roupas
já quase rasgadas
mesmo descosturadas
tronchas e tortas
mas que são carícias
quando me abraçam
e não querem mais sair
do meu corpo
 
minhas roupas velhas
são como aquele pé
um pé de laranja lima
que fez o menino chorar
quando sumiu de seu quintal
 
e o meu quintal tem varal
onde minhas roupas velhas
se estendem desajeitadas
querendo logo me vestir
me abraçar e me amar.
 
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - tenho um voto pra vender


*Rangel Alves da Costa


Isso mesmo: eu tenho um voto pra vender. Ora, todo mundo vende, negocia com voto, então por que eu não poderia negociar o meu? E direi mais: digo logo o preço sem rodeios. E assim porque, diferente das artimanhas de muitos, que utilizam de ardis para a negociação, eu digo logo o valor e pronto. Também não aceito outra coisa que não seja dinheiro, e vivo, na mão, despejado logo no bolso. Não me venha com saco de cimento, com telha, com oferta de pagar receita, com cesta básica, com nada disso. Também não aceito que ofereçam pagamento de fatura, de boleto ou de conta no bar ou na mercearia da esquina. Eu mesmo sei onde devo e onde devo e quanto tenho que pagar e, por isso mesmo, não preciso de ninguém que faça isso por mim. Então me passe logo o dinheiro que o seu voto estará garantido. Quanto? Isso eu não posso dizer aqui não. Vamos ali conversa baixinho, ao pé do ouvido, quase como um segredo. Mas logo aviso o seguinte: já que vai roubar muito se eleito for, então traga pacote, e não nota!

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quarta-feira, 4 de novembro de 2020

FEITIÇOS, AMORES E OUTRAS MAGIAS


*Rangel Alves da Costa


Jurou que não amaria mais ninguém, mas de repente se viu misteriosamente atraída por alguém que jamais imaginaria lançar nem um tiquinho de amoroso olhar. Depois soube que o tal rapaz havia encomendado um “serviço de atração amorosa”. Já era tarde demais, pois, apaixonada, se entregou.

De hora pra outra sentiu tudo mudar. Não tinha fome, uma vontade danada de chorar, então resolver se aconselhar com o velho rezador, que para muitos não passava de feiticeiro. E logo ouviu que seu problema não era de saúde ou de qualquer outra coisa, mas espiritual. E mais: o espírito desejava um macho em sua vida!

Histórias assim acontecem além da conta. Gente que leva calcinha roubada em varal, retrato tirado às escondidas, fios de cabelos, nomes e corações desenhados em papel de feira, e tudo para ser colocado no alguidar da vela preta. Tudo feitiço.

Entretanto, não é somente a mandinga que serve para atrair, prender, ou fazer reverter o invertido, ou como simples promessa de tudo isso. Na verdade, há um tipo de magia que passa a interferir na pessoa sem que a mesma tenha passado perto de um terreiro. É o feitiço oculto, aquele dos desejos normalmente aflorados.

Não adianta dizer que não vai mais amar, que desistiu de compartilhar abraços e beijos, de ser do outro mais que de si mesmo. Não adianta porque em certas coisas a pessoa não manda, não tem suficiente poder para dizer que não, que não vai mais fazer.

Há feitiço em tudo. O coração mesmo depõe contra a pessoa. Tudo se faz para não se envolver, para dizer não, para evitar esse primeiro gole de paixão, mas não haverá jeito. O coração é bruxo e traiçoeiro, age ocultamente e quando a pessoa percebe já está no caldeirão dos perdidos.

Mas eu amei e me arrependi, pois sofri demais. Assim se diz. Contudo, não vai muito e a mandinga já está preparada. E a pessoa passa a se envolver como se nada tivesse dito. E o pior que se entregando total e cegamente àquilo que tanto desejou evitar. E por amor, e por amar, enfrenta tudo, até o sofrimento e a dor.

O feitiço está em tudo. Melhor não dizer que desta água não beberei ou que os meus passos jamais caminharão por esta estrada. Evita-se ao máximo, tudo faz para cumprir o prometido. Mas de repente a mandinga do acaso ou a bruxaria do desejo escondido novamente ataca.

E não adianta se benzer, tomar banho com sal grosso, borrifar-se de água benta, sair com Bíblia debaixo do braço ou com santo na ponta da língua. Tudo acontece como encantamento, como cegueira, como coisa do outro mundo. De repente a pessoa estará nos braços da perdição.

Em tudo há um feitiço atiçando e desnorteando a vida. Eu não queria, mas... Fiz tudo para evitar, mas não houve jeito... Apenas experimentei, mas não queria que fosse assim... Minha força fraquejou ante o pecado e então pequei... Assim acontece. Tudo como se o livre-arbítrio despudoradamente ocultado fosse a chave para a inversão.

Ora, o corpo em si já é um caldeirão de enfeitiçamento. O corpo é fascínio, é encanto, é sedução. O corpo é chama que queima além da medida e braseiro que chameja ainda que esteja em cinzas. E possui duplo significado: o da provocação e o da atração.

O feitiço está nos dois, tanto na provocação como na atração. Ao provocar, desata os laços desconhecidos do outro e já não pode dizer que não tem culpa pelo que venha acontecer. Ao atrair, eis que chama para si as consequências tanto do se permitir como do desejo do outro. Um jogo perigoso demais, vez que mais forte que o feitiço é a cegueira da possessão.

Não brinque com coisa séria, então. Lute com todas as forças do mundo para que nem enfeitice nem seja enfeitiçado. Uma simples atitude, como uma roupa curta demais ou um erotismo exagerado no andar, pode ser aquilo que o feitiço tanto esteja esperando.

Ninguém está livre do mal ou da maldade, uma verdade. Contudo, quem brinca com fogo se queima, quem anda nu pode sentir frio, quem sai na escuridão pode encontrar o indesejado. Os olhos estão vendo, as mãos querem tocar, as lascívias querem satisfazer seus instintos pecaminosos.

Use um amuleto. Sim, use um amuleto. Use um patuá, um talismã, uma pedra sagrada. Coisa do outro mundo, sobrenatural, difícil de encontrar? Não. De jeito nenhum. Nenhum talismã é mais forte que a força própria, que o desejo próprio, que a certeza de saber o que faz e o que deseja com cada ação.

Pronto. Está salvo. Até que abra a porta e sinta um diferente fascínio por viver, por amar, por ser feliz. Mas já não será feitiço, e sim o encantamento de um coração que coerentemente desperta para viver, amar e ser feliz. 
 

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Lá no meu sertão...




Meu escritório, meu endereço na capital sergipana




A arca (Poesia)


A arca

 
Eu não quis mais avistar
os lixões com seus pássaros famintos
os silêncios tristes nos olhos dos meninos
 
eu já não suportava alimentar
de restos de restos e putrefatos grãos
os animais que me estendiam as mãos
 
quanto me doía ouvir os lobos
uivando suas fomes em sertões tão pobres
e no alto da montanha a fartura dos nobres
 
então das lágrimas famintas eu enchi o mundo
e toda a lonjura da terra logo se tornou em mar
e todos então correram para a arca alcançar
 
mas somente os pássaros meninos
mas somente os lobos de tristes destinos
e aqueles bichos jogados aos desatinos
 
estavam salvos ao amanhecer!
 
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a lição


*Rangel Alves da Costa


Um retrato meu. Moldura de sertão, tudo de sertão. Desculpe-me dizer, mas seu não tivesse nada a fazer eu não iria aí. Se não tivesse nada a aprender eu não estaria aí. Há tufos de mato, há pedra espalhada, há mandacaru, há vegetação sertaneja, garranchos e restos retorcidos de sol. Para muitos, apenas coisas sem importância no meio do tempo. Não há nenhum livro e nenhuma letra, não há escola nem academia. Mas há um professor que tudo ensina: o Sertão. Sou sertanejo e preciso aprender a lição: o Sertão!

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