SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O FILHO DAS ÁGUAS



*Rangel Alves da Costa


Há um silêncio estranho nele. Quase sem palavra, seus olhos passeiam desde a curva do rio aos caminhos molhados de mais adiante.
Avista os montes e as serras, as casas do outro lado e os bichos que passeiam nas margens. Parece morar ali, no rio, na beira do rio. Sua casa parece ser o seu barco. E é. Sua moradia parece ser também o rio. E é.
Do rio-casa tudo conhece. Transborda de contentamento com as águas muitas, com as enchentes. Entristece e quase definha quando sua casa-rio parece também definhar, numa magrez de causar dó e sofrimento.
Não usa carranca na sua proa. Não precisa. As estranhezas do rio não assustam mais. Tornou-se amigo do Nego-d’água, da pedra que fala e da correnteza que assovia.
Não é de muita leitura, mas todo dia lê um imenso livro. Quando não tem nenhum visitante que queira fazer um passeio pelos arredores, então abre o seu imenso e vai folheando cada escrito de vida.
Seu livro é o rio, o Livro do Rio, sua grande leitura é feita no Livro das Águas, mas estranhamente encontra o mesmo escrito a cada página que vai passando:
“Sou o Francisco, sou o Rio. Sou o Velho, o Velho Chico do Rio. Sou aquele que vem e que passa, sou aquele que sofre por não mais poder alimentar o filho do rio como antigamente fazia. Sou o Pai desse povo e dessa ribeira-vida, sou o Pai e filho de um Pai Maior que me acalanta e diz: Seu filho padece, mas não findará. O rio padece, mas não findará...”.
Pescador, um pescador do São Francisco. Ou simplesmente canoeiro, vez que as hidrelétricas espantaram os peixes do rio, e agora ele apenas leva um e outro a passeio pelo que resta do leito.
Não importa o seu nome. Um filho das águas. Apenas.


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Nas bandas do mundo meu (Poesia)



Nas bandas do mundo meu


Lá pras bandas
de lá longe
a pedra fala
a flor avoa
o vento canta
o toco faz floração

acredite
sou desse mundo
de sol na noite
e lua no dia
o povo não acredita
mas existe sertão.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - o filho do cangaceiro



*Rangel Alves da Costa


Dizem que eu me pareço com Alcino, meu pai, mas conheço alguém que possui uma feição que é uma cópia fiel do pai: Bernardino Rocha, o Canário, o famoso cangaceiro. Não só filho de Canário como de Adília, a mocinha do Alto de João Paulo que por amor se embrenhou nas entranhas da mataria seguindo os passos do cangaço. Batizado como João Batista Correia dos Santos, mas depois simplificado para João Batista dos Santos após perder o registro, nasceu em 12 de outubro de 1938, poucos dias após a morte de seu pai, morto à traição (pelas mãos de Penedinho, companheiro de bando, e já após o massacre de Angico), nos arredores da Poço Redondo, na Fazenda Coruripe. Joãozinho veio ao mundo nas proximidades da cidade sergipana de Propriá, numa localidade chamada Morro do Chaves. Por muito tempo morou com seus avôs maternos, numa propriedade nas proximidades do então distrito de Poço Redondo. Criado pela avó, por muito tempo chamou sua mãe Adília de “comadre Adília”, e sua avó de mãe. Assim que completou vinte anos arrumou mala e cuia e resolveu ir viver em outras paragens. Após breve temporada no Rio de Janeiro, fixou moradia em Brasília, onde vive até hoje. Casado em segundas núpcias, possui três filhos. Joãozinho reside na capital federal, mas quando sente saudades vem num passo só até seu Poço Redondo, onde tem irmãos (somente por parte de mãe) e muitos amigos, como este que vos noticia. E dono de um proseado tão bom e cativante que dá vontade de sentar com ele debaixo de sombra boa e deixar o tempo apenas passar.


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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

EU, MEU PAI E O SENTIMENTO SERTANEJO



*Rangel Alves da Costa


“De toda riqueza nossa, abdicamos de ter bens para nos contentarmos com o sol e a lua, para rabiscar sobre João e Maria, para ter a mão calejada do sertanejo sobre a nossa, e, dessa riqueza tanta, encontrar a verdadeira motivação do viver”. De todos os bens, eis a herança maior: o ser imenso e repleto de sertão!
Eis também o que herdei de Alcino, meu pai: a filiação sertaneja e o amor ao sertão. De sua partida, o único espólio deixado foi um imenso legado todo dedicado ao sertão. E foi o que herdei e o que me tornou o mais rico dos homens.
Ora, anel dourado não é nada, terno e gravata não é nada. Nada são perante o verdadeiro bem da vida: o amor pelo simples, pelo povo humilde, pelo que está depois da porta da frente e além do quintal. O que herdei não compra nada, mas abre todas as portas do mundo através do aprofundamento e compreensão das realidades.
Minha herança maior, pois, é trilhar os mesmos caminhos que meu pai trilhou, é contar histórias iguais as que meu pai contou, é amar o sertão da forma que ele tanto amou. Apenas um pai um filho, mas um entrelaçamento indescritível com o sentido maior do sertão.
Eu, Rangel, e meu já saudoso pai Alcino, nascemos dois sertanejos num mesmo berço de terra e sol, num mesmo chão semeado de flores da história, dos espinhos da luta, dos brotos da esperança e do que se tem entre passado e presente: uma saga viva e nem sempre avistada.
Além de filho e pai, de pai e filho, eu e Alcino temos muito em comum. Dizem que na feição eu me pareço muito com ele, o que me causa sempre contentamento pela certidão pessoal que vai além da filiação. Quando me avistam e dizem que sou a cara de meu pai, juro que é como se ouvisse o maior dos elogios.
Contudo, creio que o mais nos identifica são alguns aspectos relacionados ao sertão: o amor, a devoção, a veneração. Alcino amou o sertão e me ensinou a amar o mesmo chão. Alcino escreveu e descreveu o sertão e me ensinou a ter a mesma escrita. Alcino sentiu o sertão no mais profundo da alma e me ensinou a ser apaixonado pela terra, pelo sertanejo, pela saga de um povo.
De Alcino eu herdei a melhor parte da herança, repito. E tal herança eu deixarei naquilo que eu puder legar como história escrita, como registro passado a gerações e testemunhos de tanta e de toda nossa riqueza sertaneja.
Eis a maior e melhor parte de minha herança. Ser filho e caminhar os mesmos passos do pai. Ser filho e honrar o que ele me legou.


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Lá no meu sertão...


Em Poço Redondo, sertão sergipano. Retratos sertanejos!





Amor, amor (Poesia)



Amor, amor


Amor
uma palavra
é pouco
pra tanto amar

então
amor, amor

e se for pouco
pra tanto amar
todo o amor
na imensidão

amor, amor
no coração.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - dois casamentos forçados



*Rangel Alves da Costa


Aqui vão duas histórias de casamentos forçados. A primeira representando a honra familiar de antigamente e a proteção que se dava à pureza de suas moçoilas. A segunda dizendo respeito a uma situação mais escabrosa, vez que cuida das núpcias de Jeremia com a jumenta de Totonho Pitombeira. Vamos à primeira. Pois bem, vai o safado do Cirineu querendo ir além do permitido no namoro. E foi. Como não podia sequer beijar a namora na presença dos pais, vez que o namoro só era permitido em cadeiras na sala, e na vigilância do pai ou da mãe, ele então cismou de dar um basta nisso tudo. E tudo aconteceu nos escondidos do fundo da igreja. Quando a mocinha começou a embuchar, a entojar, a ficar cheia disso e daquilo, a mãe logo sentenciou: Tá grávida! No mesmo instante Cirineu foi trazido puxado pelos cabelos e já no dia seguinte estava ao pé do altar, tendo que a toda hora sentir a presença de duas armas na cintura do pai da buchudinha. Já Jeremia casou foçado por uma besteira que fez. Com tanta mulher na região, caberá aberto e tudo o mais, ele foi se engraçar logo da jumentinha mansa do valentão Totonho Pitombeira. Flagrado em ato indecoroso com a jumenta atrás do tanquinho, logo em seguida teve que desfilar pelas ruas da povoação chamando a jumenta de minha esposa. E tendo que beijar seu focinho de vez em quando.


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terça-feira, 29 de outubro de 2019

O RETRATO DE HUR



*Rangel Alves da Costa


Quem é Hur? Quem deseja saber sobre Hur? Alguém já ouviu falar de Hur? Hur é alguém, ou ao menos deveria ser visto como tal.
Acaso seja visto como pessoa, como humano, Hur não deveria ser reconhecido como tal? Difícil acreditar que alguns - ou muitos - ignoram totalmente a existência de outros.
A verdade é que dificilmente desejam saber sobre Hur. Então, por que o têm como insignificante, quase como um inexistente ou ocultado perante outras situações de vida?
Ora, assim geralmente dizem: quem quer saber de pobre, de carente, daquele que pouco tem a mostrar além de uma roupa velha e esfarrapada, chinelos aos frangalhos ou mesmo de pés descalços?
Por isso que certamente poucos já ouviram falar sobre ele. Na verdade, Hur parece invisível. E tão invisível que mesmo estando adiante é como se nada ali estivesse.
Ninguém gosta de avistar a pobreza, a miséria, a carência de quase tudo. Hur passa e parece que ninguém passou. Só faltam passar por cima, pisar em seus restos, dizer que nada viu.
Quando é avistado, o olhar preconceituoso sempre o desqualifica no mesmo instante. Tudo é feito, tudo é lastimoso, tudo é evitável em Hur. Que coisa mais abjeta de ser vista, talvez digam.
Poucos querem saber da pessoa que há em Hur. Não apenas Hur mais qualquer um que seja pobre, carente, que viva na carência, na miséria, esquecido nas vielas da vida ou nos barracos da insensibilidade.
Quase ninguém o vê semelhante ao próprio homem. Seria doloroso demais aos olhos do preconceito, da discriminação e da intolerância. Qual olhar de riqueza deseja ter de encarar uma realidade tão pobre na pessoa de Hur?
Avistá-lo e reconhecê-lo seria forçoso a imaginar a existência de um coração, de um sentimento, de pessoa dentro daquela imagem. Talvez seja visto apenas como bicho. E logo a indagação: e bicho tem coração?
Quem se preocuparia com o bondoso coração de Hur? Quem tem tempo para saber que Hur sente fome, sede, é carente e possui necessidades?
Será que Hur sofre, chora, sente fome, sente fome? Será que Hur tem sentimentos, ama, deseja, quer? Será que Hur sabe fazer um carinho ou beijar uma boca?
Não. Não. Não. Amar, viver, ter sentimentos, ser grande, tudo isso é coisa de rico. Hur é pobre. E pobre deve ser esquecido em todos os sentidos. E certamente apregoam que pobre não sabe amar, mas apenas estender a mão e pedir.
É melhor nem avistar, não demoram a dizer. Gente pra ser gente e vista como gente tem que estar bem vestido e com aparência de quem tem prato e colher, também não demoram a dizer.
Agora mesmo Hur passou por ali. Você viu? Nem se quisesse poderia vê-lo pessoalmente. Ele está em muitos, em milhares, milhões de desvalidos que agora estão nos escondidos empobrecidos do mundo.


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Lá no meu sertão...


Paixão pela vida vaqueira



Coração traquina (Poesia)



Coração traquina


Brinca não
meu coração
brinca não

quis só amar
e quis demais
virou paixão

não brinque não
meu coração
com a paixão

e depois dela
nada de amor
só perdição.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - o óleo é o ódio que continua sendo derramado



*Rangel Alves da Costa


Sou nordestino. Sou sergipano. E o Nordeste vem sendo secularmente tomado pelo ódio do racismo, do preconceito e da discriminação. E nordestino vem sendo secularmente tratado como raça inferior, como um povo rebaixado, como uma gente de desvalia. Ora, Nordeste e nordestinos são constantemente achincalhados. Até mesmo governantes "paraibanizam", de forma aviltante, toda a nação nordestina. Ora, e por que esse óleo negro e voraz para a vida vem aportar precisamente nas costas nordestinas, poluindo suas águas, manchando os beirais d’água, causando periculosidade a diversas espécies que vivem em suas águas? Simplesmente porque o óleo de agora é o mesmo ódio que vem sendo constantemente derramado. É como se nossas margens fossem monturos, lixões, esgotos para o imprestável que vem de lá fora. Será que a limpeza não seria muito mais agilizada se esse óleo de ódio tivesse alcançado as praias e as margens sulistas? Por lá tudo já seria resolvido. Mas por aqui continuam as sujeiras, as mortandades, as omissões governamentais. E talvez seja para que jamais nos esqueçamos do modo como eles nos veem: uma pegajosa esbórnia.


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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

ROMEIROS DO PADIM CIÇO



*Rangel Alves da Costa


Dá-se o nome de romaria aos grupos de pessoas que viajam em peregrinação aos locais sagrados, guiados pela fé e pela crença, objetivando sempre a demonstração de gratidão religiosa ou a retribuição por graças alcançadas. Romeiros, pois, são tais pessoas que seguem a pé, em animais ou outros meios de transportes, vencendo cansaço e até as dores de enfermidades, para ter-se diante daquilo que reputam como divino ou milagroso. Muitas vezes, a simples presença é como alívio ou cura.
Os objetivos da romaria podem ser diversificados, mas a real penitência sempre se volta para o pagamento de promessas, a alimentação da fé e a demonstração de amor e gratidão ao templo, ao santo ou ao local tido como sagrado. É neste sentido que os romeiros de antigamente faziam quando, neste período do ano, já ao findar o mês de outubro, seguiam em grupos até Juazeiro do Norte, na região do cariri cearense, para louvar a vida, os feitos e os milagres de Cícero Romão Batista, o Padre Cícero Romão, ou simplesmente “Padim Ciço”.
Hoje a ida até Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero e da fé do nordestino, é feita de modo muito mais seguro, ligeiro e através de meios de transporte modernos e confortáveis. É uma viagem qualquer, a passeio, com hora de partida e de chegada, acaso algum contratempo não surja. Muito diferente de antigamente, quando viajar a terra sagrada dos nordestinos significava esforço, sacrifício e extrema abnegação. Somente a fé para chamar e conduzir o sertanejo em meio a tantas atribulações na viagem e estadia.
Nos dias de agora, basta fretar um ônibus de turismo ou tirar da garagem o possante de luxo e seguir viagem. As paradas são poucas, os restaurantes oferecem do bom e do melhor nos instantes de fome, as vias são asfaltadas e as distâncias parecem muito mais encurtadas. Agora imaginem uma viagem longa e cansativa, por muitos trechos de chão batido, em cima de uma caminhonete, rural ou caminhão pau de arara. E num apinhado tão grande de gente que mal dava para abrir a boca para as cantigas e rezas de romaria.
Mas quanto mais sacrifício mais demonstração de amor ao santo padrinho do nordestino e do sertanejo. E assim porque desde muito que o Padim Pade Ciço foi santificado pelo povo, desde muito que a fé em seus milagres está presente na vida de tantos. Mesmo sem o reconhecimento oficial do Vaticano, o Santo do Juazeiro já foi entronizado pela fé de um povo que o devota proteção, cura e desatribulação. Exemplo disso está na sala dos ex-votos onde troncos e membros em madeira, representando as partes curadas, estão expostos como demonstração das graças alcançadas.
Dona Maria havia sido desenganada pela medicina. Com problema tamanho e sem mais jeito a dar pela ciência humana, um dia se ajoelhou perante a imagem do Padim Pade Ciço e, após lágrimas e orações, ao santo pediu intercessão de cura e prometendo que se boa ficasse, a partir daquele ano não faltaria a mais nenhuma romaria. E no mês de outubro lá estava ela subindo num pau de arara e levando consigo a prova da cura em madeira: duas pernas. Desenganada estava, mas o santo nordestino lhe permitiu restabelecer suas forças e ficar curada daquelas dores terríveis que até a impediam de caminhar.
Assim com Sebastião, com Jurema, com Quitéria, com Leontino. Todos curados pela intercessão do Padim Pade Ciço, pelo desejo do santo dos pobres e dos desvalidos. Por isso mesmo que dificilmente há uma casa onde não esteja presente a imagem do milagreiro ou mesmo uma fitinha de fé. E não adianta querer justificar que a cura foi obtida por outros meios. Ora, o povo não quer saber se houve receita e médico, se houve injeção ou comprimido, se houve dieta e cuidado. O que importa mesmo ao povo é a certeza de que através da fé foi atendida pelo Santo de Juazeiro.
Daí que, no passado, tanto sacrifício para pagar promessas, para visitar o túmulo do santo padre, para entrar ajoelhado nas igrejas, para ouvir missas e sermões, para receber a água benta de Juazeiro, para avistar a estátua, para chorar a seus pés. Mais de dia de viagem, levando a devoção no peito e farofa com carne seca no saco de viagem. Mulheres já partindo com lenços na cabeça, vestidos compridos, dinheirinho escondido nas pregas das anáguas, em atitudes que somente a fé e a devoção extremadas podiam justificar.
E de Juazeiro retornar renovadas, espiritualmente fortalecidas, e trazendo sempre uma garrafinha de água benta, meia dúzia de rapaduras e um punhado de fitas. E a promessa de retornar. E a certeza de que o altar nordestino está mesmo em Juazeiro e no pedestal santificado está o Santo Padim.


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Lá no meu sertão...



Sertão e seu fruto





Liberdade (Poesia)



Liberdade


Pedi ao coração
a minha liberdade
e ele me negou

não queria sofrer
na prisão do amor

pedi ao coração
pra ser livre e amar
e ele desdenhou

precisei sofrer
e me libertar pela dor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - milagre de mãe



*Rangel Alves da Costa


Fico imaginando o que Maria faz quando amanhece e procura pela despensa alguma coisa e nada encontra. Fico imaginando o que Maria faz quando a hora avança e ela não encontra um resto de fubá de milho ou um pouquinho de farinha. Fico imaginando o que Maria faz quando ouve o barulho dos filhos levantando e que logo estarão ali já famintos. Fico imaginando o que Maria quando o menino chega e diz que está com fome, quando o outro começa a chorar, e ainda o outro, o menorzinho, começa a colocar na boca o barro da parede. Fico imaginando o que Maria faz quando sabe que tem de oferecer algum alimento, que os meninos precisam de qualquer coisa, mas nem umas duas bolachas encontra pela cozinha. Fico imaginando o que Maria faz quando o tempo vai passando, a fome aumentando e ela sem nada poder fazer. Fico imaginando o que Maria faz, qual o milagre que Maria faz, ao molhar o seu dedo nas lágrimas que vão caindo de seus olhos e depois molhar a boca de cada filho. E todo choro e toda fome desaparecer. Milagre de mãe, milagre de mãe...


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domingo, 27 de outubro de 2019

PÁSSAROS QUE CANTAM TRISTES



*Rangel Alves da Costa


Os gorjeios e os madrigais são poesias nas vozes passarinheiras. O canto de um passarinho é melodia que faz festa no coração, que desperta sentimentos e faz pulsar sensações amorosas. O belo canto do uirapuru, do sabiá, do canário e de tantos outros pássaros seresteiros debaixo da lua ou do entardecer sobre a copa das árvores grandes. Mas nem todos possuem cantos maviosos, melodicamente confortantes. Até mesmo pássaros de cantos alegres passam a trinar tristezas. Sons lamentosos, aflitivos, agonizantes, quase macabros, assim como uma Mãe-da-lua, um Urutau, uma Acauã. Chora Acauã, chora Acauã...
E assim por que os pássaros também sofrem perdas, sentem saudades, agonizam. E assim por que os pássaros também lamentam os adeuses, as partidas, as despedidas. E talvez chorem rios, desaguem mares de dores. Humanos pássaros, pássaros humanizados ao sofrimento. E todos nós lamentosos dos ninhos, das verdades ou incertezas da vida, e voando até o cume das árvores. Mirando os horizontes e cantando a dor, trinando as angústias e aflições. E sob as penas as penas, e sob as asas as asas, e no canto o canto que implora um voo perante novos horizontes.
Qual motivo possui um João de Barro para cantar alegre? Acaso confirmada a lenda, não haveria motivo algum para que o seu canto fosse outro senão o de dor. Dor da perda, da traição, do sacrifício vão, do não reconhecimento, do amor devotado e não retribuído. No João de Barro a história de um trágico amor, ou de uma tragédia amorosa. Amante, enamorado, apaixonado por sua passarinha, por sua Maria de Barro, tudo faz para lhe dar conforto e segurança, e para tal lança-se ao esforço e sacrifício de construir um belo lar. Catando barro lamacento no chão, ou amolecendo o barro com a própria saliva, vai levando os pequenos tufos e, lá no alto, unindo argila em argila, para dar forma e vida à sua casinha. Ora, precisa oferecer o melhor à sua amada.
Mesmo com a companheira já dentro do ninho, ele sabe que precisa fazer mais, oferecer vida melhor. Além das paredes externas vai construindo varanda, sala e quarto, e tudo na perfeição de engenharia humana. Quem avista sua casa, logo imagina ser apenas uma entrada com um interior oco, sem nenhuma divisão, mas não, pois lá dentro tudo em seu devido lugar. E assim, depois de tanto esmero, de tanto voo e luta, a sua casinha enfim fica pronta, e João de Barro esperançoso fica de ser retribuído com mais e mais amor.
Contudo, o inesperado acontece. Como se humanizada estivesse, vez que o ser humano sempre propenso às traições amorosas, eis que a Maria de Barro passa a desconhecer o amor devotado por João de Barro e começa a traí-lo. É a música João de Barro, de autoria de Muibo Cury e Teddy Vieira, que melhor traduz essa história triste de um trágico e passarinheiro amor:
“O João de Barro pra ser feliz como eu, certo dia resolveu arranjar uma companheira. No vai-e-vem, com o barro da biquinha ele fez sua casinha lá no galho da paineira. Toda manhã, o pedreiro da floresta cantava fazendo festa pra aquela quem tanto amava. Mas quando ele ia buscar o raminho para construir seu ninho o seu amor lhe enganava. Mas neste mundo o mal feito é descoberto, João de Barro viu de perto sua esperança perdida. Cego de dor, trancou a porta da morada deixando lá a sua amada presa pro resto da vida. Que semelhança entre o nosso fadário, só que eu fiz o contrario do que o João de Barro fez. Nosso Senhor me deu força nessa hora, a ingrata eu pus pra fora, por onde anda eu não sei”.
Diz a letra: “Toda manhã, o pedreiro da floresta cantava fazendo festa pra aquela quem tanto amava”. Isso mesmo, “cantava”. Cantava para, de repente, transmudar um canto de alegria em uma melodia sofrida e angustiada. Assim como aconteceu com o João de Barro, num repente o canto de todo passarinho - e também o cantar humano -, pode se transformar em agonizante lamento. Como ecoa a canção do sofrimento, da traição, da desesperança, da dor? Como ecoa a melodia da tristeza, da lágrima, do sentimento indescritível da perda? A fúnebre melodia da alma. A harmonia desarmonizada de um espírito dilacerado.
E quando assim acontece, a copa da árvore é o mesmo quarto fechado, o galho mais alto que houver é o travesseiro mais molhado que houver. Uma canção ao avesso, pois apenas lamento. Assim como uma Mãe-da-lua, que apenas chora.


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Lá no meu sertão...


No ribeirinho sertão...



Na casa de minha avó (Poesia)



Na casa de minha avó


A casa era de pouca luz, um tanto escurecida
mas quando eu entrava tudo parecia iluminado
a chama da vela acesa na mesinha do oratório
e aquele semblante de luz na face de minha avó
seus olhos brilhavam mil sóis perante a oração
e suas mãos passando a contas do velho rosário
pareciam acendendo fogueiras de fé e devoção

tudo aquilo me parecia estranho e cativante
minha avó ajoelhada perante a vela e os santos
dialogando sua reza e sua fé perante os céus
e eu querendo apenas algum vintém ou tostão
para comprar balas de mel e bolas de gude
até que ela se benzia e logo olhava de lado
estendendo a mão para alegria do meu coração.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - um lobo falou comigo



*Rangel Alves da Costa


Parece estranho ou até impossível de acontecer, mas um lobo falou comigo. Tudo aconteceu assim. Numa noite dessas, eu estava tão triste e tão dilacerado por dentro, tão cheio de dúvidas sobre se valeria a pena amanhecer, a ponto de ter ideias suicidas. De repente ouvi um uivo de lobo, daqueles uivos mais tristes e agonizantes que possam existir. Mais um uivo, mais outro e outro. A cada uivo a dor do lobo parecia aumentada. Então eu disse a mim mesmo que aquele uivo do lobo era o meu uivo, que aquele lobo uivava a minha dor. Mas também me veio a certeza que não era a primeira vez que eu ouvia aquele lobo uivando. E se ele uivava noite após noite era porque não tinha sucumbido do sofrimento. Então, ao invés do uivo em seguida ouvi o próprio lobo falando comigo. Chegará uma noite que não mais ouvirá minha dor ecoando na noite. E certamente não será porque me findei de vez, mas sim porque consegui vencer minhas angústias e aflições, pois tudo passa, tudo se transforma...


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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

AMOR CONFESSO



*Rangel Alves da Costa


Talvez em algum poema a revelação: e depois do encontro o olhar, depois do olhar o desejo, depois do desejo o abraço, depois do abraço a chama, depois da chama a cama...
Ou ainda: entre dois, o que parece muro se transforma em véu, o que parece pedra se transforma em flor, o que parece escudo se transforma em pele. E após a pele os segredos revelados...
Tudo parte da intimidade, do ser e do fazer entre dois, entre paredes e chaves, entre escuros e silêncios, mas que de repente grita do outro lado, entre os dois, com voz somente pelos dois ouvida.
Tudo no mais íntimo da intimidade. E esta, a intimidade entre dois, só cabe aos dois, isso é verdade. A ninguém é dado o direito de conhecer o que se passa na íntima privacidade de dois.
Contudo, vou revelar. E vou revelar por que não acho nada demais que os outros saibam o que se passa ou o que fazemos enquanto estamos juntinhos.
Vou revelar por que não é nada além da normalidade daquilo que os casais ou enamorados fazem quando estão juntinhos em dois, e somente em dois.
E vou revelar ainda por que não há mesmo nada a esconder. Certamente de que não são instantes tão esdrúxulos e absurdos que não possam ser conhecidos pelos demais.
Pois bem. Não se assuste nem se espante. Não avermelhe nem se tome de calores antes de ler o que vai escrito. Mas, como dito, são apenas revelações de uma intimidade.
A gente faz o que todo mundo faz: silenciar. Mas é um silêncio tão voz e tão palavra, tão verbo e tão pronúncia, que surge até grito. Mas é neste silêncio que tudo começa a acontecer.
A gente, silenciosamente, olha no olho um do outro. A gente namora pelo olhar, a gente se encanta avistando um ao outro, a gente se apaixona assim. Tudo silenciosamente e belo.
Mas de repente o silêncio irrompe e chama a palavra. Ora, não poderia ser diferente. De tanto se mirar e se encantar, de tanto se avistar e se querer, a gente passa a ter vontade de traduzir tudo isso em palavras.
Então a gente faz o que todo casal faz (ou deveria fazer): conversar. Mas nada sobre o aumento da gasolina ou do botijão de gás, nada de falar sobre o preço do remédio, da conta de luz ou do absurdo que está a feira. Não.
E não por que não é momento - entre dois, num quarto fechado, juntinhos na cama - de se falar sobre problemas, indignações ou absurdos. O momento chama, pede e até exige outro tipo de diálogo.
Então imaginem. Qual a palavra que chega após avistar aquele olhar, após se encantar com a beleza, após ter dentro de si toda a imensa felicidade por poder partilhar da presença e do amor do outro?
E não seria uma palavra qualquer. Mas antes de qualquer dizer, a leve aproximação, o toque, o carinho, o afeto, o afago. E como é bom sentir o pelo, a pele, a flor do corpo, a maciez da presença, o cheiro, o calor, o queimor.
O que dizer, então, após sentir o outro como se dentro do próprio corpo, do próprio coração. “Meu amor, como eu te amo!”. “Meu amor, amor como eu te amo!”. “Meu amor, como eu te amo”. “E amo e amo...”.
E numa boca ou noutra, numa voz que é apenas sussurro, continuar falando: “Eu te tenho e tens a mim. Somos dois em apenas um. E amo-te cada vez mais como um desejo de adolescente apaixonado. E que assim continuemos como dois que procuram o primeiro beijo. Então me beije!...”.
E então a gente faz o que todo apaixonado faz: beijar. Mas não qualquer beijo. Ora, beijar é uma arte, é um ofício da alma, é quase um dom espiritual. Beijar não é sugar. Beijar é sentir, é fruir, é trazer do outro lábio a asa que falta para o imenso voo.
As bocas se aproximam, mas os lábios ainda não. Na hora do beijo, os lábios nunca precisam ter pressa. Apenas chegar tão lentamente que a respiração ofegante vai chamando o outro lábio. Então se aproxima um pouco mais, levemente se toca, suavemente se roça, docemente diz: estou aqui, sou teu.
E depois do beijo talvez não haja mais consciência para qualquer revelação. Tudo fome, tudo desejo, tudo vontade. Uma avidez desmedida pelo querer. Mas ainda assim apenas amor na sua perfeição de amar.
E depois de tudo ainda mais amar. Mesmo que ame sozinho, amor imenso será.


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Lá no meu sertão...


Do silêncio...



Princesa (Poesia)



Princesa


Olhei no olhar
com olhar de amor
toquei sua face
acariciei o seu corpo
e ela se fez mais carente

alisei seus cabelos
fiz dengo e cafuné
deitei sua cabeço
no meu peito nu
e ela se fez tão amada

e ela sonhou acordada
que era princesa
e era.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – limpe o lixo



*Rangel Alves da Costa


Pra falar do lixo dos outros, primeiro limpe o lixo que se acumula no espírito, na alma, nos escondidos do ser. A roupa é nova, bonita, um luxo só, mas tudo está feio do outro lado dos panos. As aparências enganam. E enganam mesmo, e muito. Não adianta roupa de grife se o espírito é rasgado, é molambo, é impuro. Não adianta brinco e pingente dourados se o brilho está apenas em quem imagina a riqueza. Vive-se primeiro para o conforto espiritual e depois para outros confortos de vida. E nada mais confortante que a leveza, a plumagem da alma em voo. Asas não levantam voo nem saem do chão quando aparentam leveza e estão sobrecarregadas de pesos escondidos. E há muita coisa pesada que impede qualquer proveito de paz. A arrogância, a ganância, o egoísmo, a soberba, a mentira, a falsidade. Tudo é lixo que vai se acumulando e, ao invés de abrir caminhos, vai afundando mais e mais a pessoa.


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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

EXPERIMENTE O SERTÃO



*Rangel Alves da Costa


Experimente viver o sertão que há em você. Experimente caminhar pelas estradas de terra batida e chão nu, e se admirar com as flores do campo, com o alaranjado da flor da jurubeba e o encanto da florada do mandacaru.
Experimente o sertão que é sua casa e lar.  Experimente avistar o por do sol de uma porteira nas distâncias matutas. Experimente sentir pulsando no coração o seu berço de nascimento.
Experimente tomar água de moringa, matar a sede em caneca limpinha pendurada na parede de barro, sentir o cheiro oloroso do café fervendo em fogo de chão. Experimente viver e ter o que é seu.
Experimente uma varanda com rede armada e um radinho de pilha cantarolando “de que me adianta viver na cidade se a felicidade não me acompanhar...”. Ou ainda: “eu vim embora e na hora cantou um passarinho, porque eu vim sozinho, eu a viola e Deus...”.
Experimente sair da cidade e ir mais adiante, pelas curvas de matos rasteiros e catingueiras ladeadas de mandacarus e xiquexiques. Experimente ser tomado, envolvido e abraçado, pelo entardecer sertanejo, e olhando os horizontes em cores abençoadas benzer-se de comoção.
Experimente fechar a porta de casa e tomar as portas do mundo-sertão. Experimente bater à porta da casinha de beiral de estrada e prosear com Seu João e Dona Maria, oferecer uma bala a Tiquinho e um pirulito a Lurdinha.
Experimente o orgulho bom de ser sertanejo. Experimente estender a mão à mão calejada, abraçar o amigo reencontrado e falar sua língua sem invenção no falar. Experimente ser o sertanejo que há em você e não o outro que insiste em lhe tirar a feição sertaneja.
Experimente sentar no tamborete e ouvir e contar histórias, causos e proseados. Experimente ser você mesmo no sertão que é todo seu. Experimente andejar por aí, como um São Francisco sertanejo e conversar com o bicho do mato, com a pedra, com o passarinho.
Experimente amar seu sertão. Experimente avistar sua terra com os olhos da sabedoria, vendo sentido em tudo e em tudo sentindo uma razão de ser e de existir. Experimente o amor de um filho que ama a semente da qual foi brotado.
Experimente conhecer, conviver, viver, sentir e dizer: Eu amo e tenho orgulho de ser sertanejo!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Em Bonsucesso, Poço Redondo/SE, a Cruz Sagrada do Povo Ribeirinho!





As palavras (Poesia)



As palavras


De repente as palavras surgem
sem precisar de som ou voz
surgem como imagens na memória
daquilo que nunca foi falado
surgem como pensamentos
daquilo que não foi vivenciado

são as palavras assim
que você vai precisar ouvir
pois não deu nenhuma atenção
ao que tanto eu tinha a lhe dizer
quando eu abri a boca e silenciei
por não querer ouvir que amo você.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - tempo perdido



*Rangel Alves da Costa


UMA LIÇÃO - De repente, olhar pra trás e avistar pedaços de um tempo perdido. E imaginar que assim não deveria ter acontecido. Mas nada de se culpar pelo erro cometido. A gente sempre faz, um tanto despercebido, achando que faz o certo perante o tempo vivido. Estende a mão, entrega-se assim desmedido. Faz o bem, e quer fazer mais que o merecido. Quanto mais faz mais se torna desmerecido, pelo que fez e por todo acontecido. Depois é que chega a certeza daquele tempo perdido, quanto tudo o que foi feito chega como açoite atrevido, ferindo o peito e a alma em achincalhe revestido. Resta aprender a lição daquele que foi atingido: dar a lança para o bem e com a lança do mal ser ferido!


Escritor
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quarta-feira, 23 de outubro de 2019

POÇO REDONDO, ETERNO AMOR!



*Rangel Alves da Costa


Poço Redondo, meu amor! Um dito sem falsidade, escrito na mais pura verdade, de um filho do sertão que canta sua terra em louvor. Poço Redondo, meu amor, no meu coração ecoou!
E como é grande, como é imenso, o meu amor por você. Ter no peito a identidade, pulsando nordestinidade, e filho de uma irmandade que se chama sertaneja, desde os matos à cidade.
Filho de Poço Redondo, filho da crença e da fé. Menino do Gado Manso, do Riacho Jacaré, das Beiradas do Tanque Velho, de Dona Lídia o café, da lavadeira Mariá e de tanta Maria e José.
O parque da Festa de Agosto e no alto-falante a canção, a meninada brincando com alegria e animação. Seu João Retratista preparando o tripé pra foto não escurecer, enquanto o mercado é lavado pro baile do Embalo D.
Um tempo de saudade. Charisma e Toque de Amor, Tabu e Topaze. Calça boca de sino, espelho e pente no bolso, uma dança agarradinho. Enquanto o globo girava o casal se abraçava querendo ir pro escurinho.
Coisa boa é recordar. Não havia noites mais animadas que os noturnos do lugar. As praças repletas de gente, e todo mundo contente e querendo ir pra Discoteca dançar. Ou se encostar na janela de Dom e se danar a namorar.
Não vou desatinar meu destino de ter nascido nordestino, pois isso orgulho maior e coisa que mais estimo. Orgulho de ser sertanejo, da flor do mandacaru no meu beijo, do vaga-lume o seu relampejo.
Orgulho do meu Poço Redondo, onde nasci e não escondo e vou sua história compondo. Não há orgulho maior de ter a lua e ter o sol, da terra nua e seu arrebol, vida minha e vida sua, floridas igual girassol.
Orgulho do meu sertão, do Padim Ciço e Lampião, de Alcino e Zé de Julião, de todo Zé e todo João. Relembro o tempo antigo do casebre como abrigo, do vaqueiro e seu perigo, da seca maior castigo.
Orgulho na vereda matuta, da mataria sem ter fruta, mas não faltando a labuta. Lua maior sem igual, a passarada em madrigal, no céu o melhor sinal. Pelos campos a boniteza, a vida maior beleza, de um povo humilde a riqueza.
Porta aberta ao madrugar, pra barra do céu logo olhar, e nos olhos a esperança e o temor de não trovejar. Sou de um sertão de humildade, de pobreza sem maldade, no homem a sinceridade, no viver a honestidade. Homens de mãos calejadas, de faces de sol enrugadas, de alpercatas e pegadas, nas sinas e nas estradas.
Nos tempos de antigamente, potes na cabeça e rodilhas, cabelos presos em presilhas, roupas de chitas em barrilhas, em tudo as maravilhas. Moringa na janela da tarde, em tudo uma saudade, doce de cocada de frade e a gostosura em alarde.
Quixaba nos escondidos da mata, araçá trazido em lata, araticum juntado em cascata, vida doce e tão pacata. Panela de barro no chão, graveto para o fogão, e por riba do tição o toicinho em queimação.
Comer em prato de estanho, coisa que é hoje estranho, mas que nas mesas humildes era luxo sem tamanho. Ouvir o sino tocar, e logo a beata a rezar, Marizete leva o santo e na voz o seu belo cantar, pela rua em procissão, pela estrada em maior devoção, a religiosidade de um povo na sua santa missão.
Cavaleiros e cavalhadas, pegas-de-boi e vaquejadas, festas de mato e caçadas, saudades pelas estradas. Nas calçadas mais antigas, os proseados de amigas, falando se santas e raparigas, dos milagres e das intrigas.
Nas tardes de bordadeiras com suas mãos tão ligeiras, traçando os bilros nas beiras, assim aquelas vidas rendeiras. Ralar o milho em quintal, ovos na gordura animal, colocar tudo na mesa e ter o de comer sem igual.
Assim a vida de um povo tão renegado no novo, mas por tudo ainda louvo e só de pensar me comovo. Pois sou de um sertão assim, de um tempo do sem-fim, e mesmo que tudo em trampolim, nada se faz tão ruim. Acredito no sertão, pois amo este meu chão, é como uma fé chamejante bem dentro do coração.
Pois este filho de Alcino, que um dia foi tão menino, traz no seu figurino a feição ensolarada de sertanejo genuíno. E ama tanto o seu chão que canta em verso em canção, a vida desse seu povo que tem na moradia o sertão.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Retrato em preto e branco...



Corpo nu (Poesia)



Corpo nu


Fome
sede
solidão
sem o teu
corpo nu
no meu corpo

mas o teu
corpo nu
se tua nudez
fosse minha
não era prato
não era copo

o teu corpo
assim nu
se me vier
virá apenas
como corpo
de uma mulher
que amo.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - saudade



*Rangel Alves da Costa


Um dia eu sentei nos beirais molhados do Velho Chico em Curralinho, e no silêncio e na solidão que eu estava sequer imaginei como seria bom retornar outras vezes. Ali meditei, ali refleti, ali dialoguei dentro de mim. Eu parecia distanciado e vazio, mas assim não estava. Eu apenas estava saindo de mim para que as paisagens e os arredores conduzissem meus pensamentos. E que bom estar assim, assim afastado das urbanas ilusões, das falsidades do asfalto, dos egoísmos por todo lugar. E que bom conviver com momentos assim, assim com olhos voltados às águas passando, aos meninos brincando, aos barcos ancorados adiante. Que bom avistar a curva do rio, as águas lentamente seguindo adiante e tudo novamente passar desse jeito, num perfeição sem pressa e sem fuga. A vida deveria ser assim também. E agora, já passados dois anos desse momento mágico, eu cada vez mais sinto a necessidade de retornar ao silêncio das águas. Sinto-me cada vez tomado de saudades. Saudade do silêncio, da paz, da reflexão, do reencontro comigo mesmo. Saudade de sentar comigo mesmo e comigo dialogar, e a eu dizer: Procure viver mais o seu mundo e não o mundo dilacerado dos outros!


Escritor
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terça-feira, 22 de outubro de 2019

FAZENDA CORURIPE, UM POUCO DE SUA HISTÓRIA


*Rangel Alves da Costa


Distando cerca de três quilômetros da cidade de Poço Redondo, no Sertão Sergipano do São Francisco, e seguindo pela Estrada Histórica Antônio Conselheiro, atual denominação da Estrada de Curralinho, no lado esquerdo de quem vai, logo se avista uma placa indicando o Marco de Canário, sinalização indicando que ali foi território marcante da história do cangaço pelos sertões sergipanos. Ali é o portal de entrada da antiga e histórica Fazenda Coruripe.
Adiante, logo após um colchete, as reminiscências da famosa propriedade começam a ser avistadas, conforme se verá mais adiante. Coruripe é uma derivação da língua tupi, da expressão “kururype”, que significa "no rio dos sapos". Sua formação vem da junção do termo “kururu” (sapo), “y” (rio) e “pe” (em). Com efeito, nos tempos idos, quando as águas do sertão eram mais volumosas e a vegetação nativa muito mais proeminente, com caatinga fechada e cactáceas por todo lugar, um riacho com sapos cururus entrecortava suas terras.
No interior da propriedade ainda pode ser encontrado um leito seco de riacho que, no passado, escorria em meio aos lajedos e outras formações pedregosas. Atualmente, aproveitando as pedras ao redor, uma pequena barragem foi construída para estocar as águas que vão surgindo em épocas de trovoadas. Os cururus não existem mais, mas a grande Cururipe continua existindo.
Atualmente, ainda indivisa entre os herdeiros de Seu Odon, seu último proprietário, possui, além da antiga sede, outras construções antigas e mais recentes. A casa da antiga sede, já totalmente abandonada, vive à mercê do tempo e da visita do vento pela porta principal sempre aberta. As paredes de barro, ainda que firmes em alguns lugares, em outros já desabando e deixando passagens abertas. O interior praticamente é de escombros, com restos de velhos utensílios espalhados pelos cantos e por todo lugar. Um pilão com as duas bocas carcomidas, restos de cestos, forquilhas, pedaços de pau, instrumentos no trato da terra.
Desde muito sem uso para moradia, atualmente serve apenas como local para que os herdeiros deixem ali algum instrumento de trabalho. Um cachorro, contudo, sempre está por ali, guardião do tempo e das páginas amareladas da história. Ao lado da antiga sede outra construção antiga, também de barro e cujas paredes e telhado já estão desabando. Neste local funcionava a igualmente famosa Casa de Farinha da Fazenda Coruripe. Debaixo do telhado prestes a desabar e defronte de um arremedo de parede ainda em pé, os restos dos instrumentos que no passado tanto produziram a boa farinha. A velha moedeira, a prensa, o tacho já quase comido pela ferrugem, a roda.
Tais equipamentos, de modo a não serem devorados pela voracidade do tempo, foram doados pelo herdeiro Ailton ao Memorial Alcino Alves Costa, na cidade de Poço Redondo e para lá já transportados. Contudo, a importância histórica do Coruripe continua tão viva quanto imorredoura. Ninguém jamais conseguirá rasgar sua página histórica tão rica e grandiosa. Dentre de seus cercados e por cima de sua terra, pelos arredores da casa velha e mais adiante, uma parte da escrita do próprio Poço Redondo.
A Fazenda Coruripe já passou por muitos e afamados donos. Já foi propriedade de Julião do Nascimento, pai de José Francisco do Nascimento, o mesmo Zé de Julião e Cajazeira (quando cangaceiro no bando de Lampião). Com a morte do velho Julião, por herança passou a ser do filho Zé de Julião, sendo repassada depois a outros proprietários.
Foi nas terras do Coruripe que o cangaceiro Canário, filho de Poço Redondo e companheiro da também cangaceira e poço-redondense Adília, perdeu usa vida, traído e morto pelo cangaceiro Penedinho, em 1938. Baleado nas proximidades da casa velha da fazenda, num lajedos que ladeiam o antigo riachinho, depois de decapitado por Zé Rufino, reconhecido caçador de cangaceiros e mais ainda de suas riquezas (que para o local se dirigiu em busca de dinheiro e ouro porventura existentes). Teve os seus restos sepultados um pouco mais adiante, debaixo de um umbuzeiro que, ainda em pé, segue como testemunho vivo daqueles terríveis tempos.
Assim, um pouco da história da Fazenda Coruripe. Nos seus quadrantes, desde a casa velha à antiga casa de farinha, passando pela presença cangaceira e as atrocidades ali cometidas, tudo na grafia inapagável da história sertaneja, e bem ali, bem ao lado da cidade de Poço Redondo.


Escritor
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