Rangel Alves da Costa*
Em uma parte do sertão, aquela mais distante
e onde o progresso voraz ainda não pensou em passar, ainda há uma vida muito
comum, costumeira, singela, até repetitiva demais.
Assim no homem como no bicho e também na
terra. O sol resolve acender noite e dia e assim permanece por anos a fio. A
terra seca e fica esturricada, tendo por cima apenas gravetos e espinhos.
As pedras tomam os espaços das plantas e ao
redor passam a reinar os seres das grandes estiagens. O mandacaru permanece
altaneiro com seus braços abertos em prece e até florando entre os espinhos.
O calango sertanejo vive em correria por cima
da terra em brasa. Num passo e já está em cima da pedra balançando a cabeça de
canto a outro. O preá se protege do sol dentro da loca e aproveita as sombras
do entardecer para arriscar a vida catando e roendo o inexistente.
Mais adiante uma vereda nua, um caminho sem
curva, uma mesmice sem igual. Dificilmente alguém passa caminhando com
espingarda à mão em busca do alimento do dia. Também quase não há mais o que
acertar.
Tal é a paisagem tão conhecida por Tião e
todos os sertanejos que por ali sobrevivem. As moradias são pobres, pequenas
para o grande número de pessoas em cada casa. E lá dentro e ao redor um quase
nada para encontrar.
Tião se atormenta com a estiagem, fica em
tempo de endoidar se lhe falta trabalho que garanta a compra de um fubá de
milho ou quilo de farinha seca. Ele e a mulher podem suportar o ronco das
tripas famintas, mas a filharada não.
Vive com a riqueza do homem da terra. Um pote
sem água, uma moringa vazia, uma panela esperando milagre. Parede de barro com
retrato de família, imagens de santos e torno de pendurar arreios e cordas.
Um quintal sem cerca, duas braçadas de lenha,
um fogo de chão. Galinha ciscando desde muito não existe. Um varal estendido e
duas roupinhas esquecidas no meio do tempo. Não há fruta de pomar nem ovos de
capoeira.
Mais adiante, Severino pinica o fumo de rolo,
recorta a palha seca de milho, embrulha o cigarro e depois passa a língua para
fixar as dobras. Limpa a enxada, amola o facão, ou repete o mesmo de todo dia
esperando que tais objetos logo tenham serventia.
Zulmira procura pelo quintal três ramos de
arruda. É difícil encontrar, mas precisa ao menos dos galhos secos para o benzimento
de Joaninha. A moça chegou chorosa e dizendo que sentia estar carregada por
alguma coisa ruim. Nada dava certo em sua vida, então precisava que a rezadeira
afastasse de vez o mau olhado.
Clemência se vira como pode para colocar
alguma coisa no fogo. Conseguiu comprar um quilo de tripa e bucho na feirinha e
precisa pinicar para juntar na frigideira com o restinho de banha de porco. Bom
mesmo era se tivesse ovos para misturar, mas não tem. Mas a meninada dessa vez
não vai comer a farinha sem mistura.
Numa casa faltou gás pro candeeiro, na outra
não há mais um pingo de sal. Então a vizinhança acorre nesse momento de
precisão. Do mesmo jeito quando a colheita é boa e o feijão de corda é dividido
entre muita gente.
Tibério, conhecedor dos mistérios sertanejos,
sabendo ler na folhagem se a chuva logo voltará, caminha olhando atentamente em
busca de um bom sinal. O sopro do vento e o gemido da folha sinalizam
esperança. É nuvem de chuva que se forma adiante e logo pode arribar até ali.
Mas nem vento nem folha se balançado. Está
tudo parado, como se nada mais acontecesse ou existisse. Assim como o sertão se
sente de vez em quando.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com