Rangel
Alves da Costa*
Tornou-se
verdadeira raridade encontrar um autêntico sertanejo, caboclo de chão e raiz,
homem cheirando a terra e sol. Mesmo nos rincões mais distantes, onde se
presume que as transformações e os modismos ainda não apareceram para o
desnorteamento de tudo, já não é mais fácil encontrar o homem da terra
preservando suas características, costumes, tradições e cotidianos cheios de
singeleza e simplicidade.
O
sertão em si está todo mudado. Foi-se o tempo de se avistar carroças de burros,
carros-de-bois com animais sob a canga, jumentos e jegues cortando veredas
levando caçuás nos seus lombos. O animal de montaria foi esquecido no pasto,
trocado que foi pela motocicleta. Rarearam-se as vaquejadas, as pega-de-bois,
os aboios e toadas sertões adentro. Também o homem não mais trabalha na terra
como antigamente, plantando milho, mandioca, feijão, melancia e abóbora para
sobreviver. Quase tudo é adquirido na feira ou supermercado.
As
moradias e as pessoas também encurtaram suas distâncias, tanto pela moto como
pelo uso indistinto do telefone celular. Os velhos amigos já não se dispõem a
caminhar para os encontros e proseados debaixo das grandes árvores. Com energia
elétrica em quase todo lugar, as casinholas são iluminadas desde o cair da
noite e a televisão acaba chamando a atenção do mais novo ao mais velho.
Água
de pote e moringa praticamente não existe mais, muito menos colocar a quartinha
na janela para que o açoite do vento refresque o barro e o líquido. Por conta
da televisão, geralmente a noite cai e a beleza do seu instante é totalmente
esquecida pelo sertanejo. Ninguém fica mais do lado de fora para se refrescar,
ouvir os sons da natureza ou apreciar a magia daquele luar imenso se derramando
pelas vastidões.
Muito
difícil encontrar fogão de lenha ou de trempe, plantas medicinais espalhadas
pelos quintais. Aliás, os quintais, de tanta importância na vida interiorana,
perderam sua existência. Nas cidades, logo o muro toma o lugar da cerca de
madeira, e o cimento grosso engole toda raiz da terra. E na área rural, onde os
quintais praticamente se confundiam com a mataria, agora difícil encontrar o
ciscado das galinhas e as marcas de outros animais domésticos.
Recordo
de ter visitado tanto a casinha de barro, erguida no sopapo da argila fincada
no pau entrelaçado de cipó, como aquelas outras de outra maior sustança, e
estas contando até com porta de madeira e alpendre. E também outras no tijolo
avermelhada de olaria, mais de três dependências e quatro águas para garantir
sombreado em todos os lados. Naquele tempo, tais divisões também serviam como
percepção do poder de renda familiar, fazendo conhecer aqueles que eram mais
empobrecidos ou “remediados”.
Pela
feição da moradia, desde a malhada à porta e janela, não era difícil saber o
que poderia ser encontrado lá dentro. A pobreza se apresenta desolada desde o
velho carro de bois abandonado debaixo do umbuzeiro ao que se mostra no
interior das residências. Ainda que o homem da terra jamais se apresente com
feição sofrida diante da situação, a pobreza não pode ser negada perante o
fogão sem panela e a ausência de quase tudo que deveria guarnecer um lar.
Em
outras localidades ainda era possível encontrar móveis antigos de madeira de
lei, cristaleiras, alguma louça e um jarro com flores de plástico sobre a mesa.
Tais móveis não significavam, contudo, qualquer ostentação. Hoje raramente são
encontrados, mas noutros tempos até mesmo as residências pobres possuíam
cristaleiras, oratórios, tudo feito em madeira de lei da própria região. Tais
objetos sumiram quando visitantes começaram a pagar qualquer ninharia por uma
relíquia familiar e revendê-la na cidade a preço alto.
Contudo,
em quaisquer das residências havia objetos que faziam parte da própria vida do sertanejo.
Grãos e sementes guardados em cuias, candeeiros e lamparinas à espera do
anoitecer, selas e arreios e demais objetos do lide do homem, feixes de lenha
no quintal, cestos e caçuás, aiós e embornais, a imagem de santos pelas paredes
e um céu nos oratórios e cantos de quartos. E também, quando em tempo promissor,
o bolo de macaxeira, o doce de leite, a coalhada, o queijo, a melancia e o
melão de roça. Quanta saudade do cuscuz ralado e do café cheiroso batido em
pilão.
Mas
ainda guardo na memória aquele jeito tão autêntico de viver e ser sertanejo. O
homem que amanhece antes do canto do galo e logo após a primeira prece já está
olhando em direção à barra na esperança de chuva. Toma um gole de café com
farinha seca e uma perna de preá e se prepara para a luta. Dependendo do ofício
do dia, deita de lado o aió, carrega no ombro a foice e a enxada, ou sela o
cavalo para arribar no mundo. Após a cancela os caminhos da sobrevivência, ou
por ali mesmo o juntar toco, fazer roçagem, levantar cerca.
O dia
vai terminando mais cedo para o homem de tanta lauta em tanto sol. Já está de
retorno antes das sombras da noite. Depois da cuia d’água sobre o corpo a
xícara de café ou a dose de pinga. Sempre do lado de fora, leva o radinho para
ouvir o violar caipira ou ele mesmo levanta a voz para um aboio dolente. Mais
uma vez mira o horizonte em busca de sinal de chuva. Mas avista apenas a lua
branca que vem surgindo. Tão bela como o sertão, ainda que sofrido demais após
o amanhecer.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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