Rangel Alves da Costa*
O convívio com os deuses nem sempre foi
pacífico ao longo dos tempos. Parece sempre ter havido um relacionamento muito
mais conturbado do que se imagina. Se por um lado o ser humano confiava sua
existência à ação das forças superiores, e para atrair proteção se lançava a
práticas extremas, por outro lado tais divindades sempre se mostraram exigentes
nas oferendas feitas em seu nome, deixando demonstrar que não se davam por
satisfeitos com quaisquer rogos ou preces.
A verdade é que a história da humanidade está
repleta de deuses sedentos de sangue e de outros sacrifícios hoje tidos como
cruéis. De um lado, por simbolizar a vida e a expiação do pecado; e de outro,
por ser poderoso fluído da vida terrena transformado em seiva da divindade, o
sangue humano e do animal sempre foi o escolhido para abundar no cálice ritual
continuamente ofertado aos seres espirituais. O problema é que os deuses não se
contentavam com outro brinde. E tinham uma sede descomunal.
Os antigos – e até os modernos perante
diversos rituais – acreditavam que somente oferecendo holocaustos chamavam a
atenção das divindades para os seus anseios, aplacavam suas fúrias e os
tornavam agradecidos pelas intercessões. Procuravam, assim, nos rituais
esparramados de sangue, confirmar suas crenças e devotamentos. Acreditavam que o
sangue jorrado confirmava o pacto entre o terreno e o divino, entre a fé e o
sobrenatural. Ora, o deus deveria reconhecer que aqueles gestos extremos
mereciam ser recompensados.
Mas será que os deuses, na concepção de seres
míticos e sobrenaturais e idealizados como benfeitores e protetores,
necessitavam de sangue derramado, de sacrifícios cruéis, imolações e atitudes
humanas degradantes, para agir perante seus protegidos? Exigir isso do seu
séquito de adoradores não transmudaria a feição de um deus do bem, da paz e da
bondade, para um deus perverso e desumano? A justificativa de limpeza
espiritual através do sangue não contradiz o pecado de matar para ser perdoado?
Somente no mundo das crenças o sangue pela
morte pode significar redenção. Mas assim acontecia, e partindo dos exemplos
dados pelos seguidores da divindade maior. A moderna concepção de divindade
aponta para uma contradição religiosa extremada, mas naqueles idos tudo parecia
se justificar para a sobrevivência em meio ao temor, ao pecado e ao
sobrenatural. De repente
traduzia-se que um sacrifício deveria ser praticado como exigência divina e
assim se fazia. E desse modo inocentes e animais eram colocados diante da
lâmina afiada.
Os sacrifícios em nome da divindade não
foram, contudo, prerrogativas apenas de povos pagãos, mas também dos povos
bíblicos. A Bíblia está repleta de exemplos de sangue derramado como oferenda
de invocação ou como agradecimento pela ação. Mas principalmente para remissão
dos pecados. Acreditava-se no seu poder de purificação, que o sangue ofertado
seria um pacto com a divindade. E por isso mesmo estaria perdoado todo aquele
que fizesse do sacrifício uma prova de veneração.
Em Gênesis 8:20, Noé toma animais e aves
limpas para oferecer em holocausto. Em Levítico 4:3-4, Moisés diz aos
israelitas que seus pecados serão perdoados com o oferecimento de sacrifícios.
E não com o sacrifício de um animal qualquer, mas de preferência novinho e saudável.
E para ser degolado perante o altar. O livro sagrado está repleto de situações
assim, onde o sangue da morte servia para salvação de almas, pois lavava as
impurezas, e para lembrar o próprio sacrifício de Cristo.
Não se discute aqui o mérito ritualístico, a
justificativa religiosa de então para que assim acontecesse. A crença do povo
se sustenta em razões tão espirituais e pessoais que se torna improvável dizer
do acerto ou não dos meios utilizados para a confirmação da fé e do pacto com a
divindade. Mas não se pode negar que é difícil conceber que fosse preferível
ter o sangue derramado a se contentar com preces, súplicas e veneração. Em
obediência ao desejo sagrado, o povo encharcava de vermelho o que hoje o
cristão venera na eucaristia e no respeito aos mandamentos.
Observa-se, pois, que o sangue possuía
significação especial para os povos antigos. Não era apenas o líquido vermelho
que circulava nas veias e artérias, mas a própria sorte da existência. Através
do sangue se penitenciava para obter redenção. Sacrificar para o sangue se
derramar significava ter os pecados remidos. E se os seguidores de Deus se
utilizavam de sacrifícios para sua proteção, então logicamente que outros povos
se viram no direito de dar continuidade aos rituais, mesmo que tivessem crenças
politeístas, com deuses desde o sol ao pedaço de pau.
Entre os incas, maias e astecas, por exemplo,
o sacrifício de seres humanos era de normalidade cotidiana. Acreditava-se que
as pestes, as longas estiagens, as catástrofes naturais e tudo que ameaçasse a
existência do povo, eram provocadas pelas fúrias dos deuses. Então ofereciam
sangue humano como forma de aplacar as cóleras divinas e se fazerem merecedores
de suas dádivas. Nos constantes rituais, principalmente crianças e jovens saudáveis
eram deitados na pedra de expiação e seus corações arrancados. Ainda pulsando
eram erguidos em direção ao sol e aos astros.
Atualmente, o sangue animal – e até humano -
ainda é jorrado em muitos rituais. Mas as leis e o próprio homem buscam
preservá-lo de todos os tipos de sacrifícios. E o que era devoção aos deuses se
tornou um crime. Hoje é a lei penal que diz os limites da fé.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário