SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

MEMÓRIAS DE ESPINHO E FLOR


Rangel Alves da Costa*


Não sei o tempo de vida das cactáceas, muito menos do mandacaru. Mas sei que uma planta que suporta e vence a voracidade da seca grande possui longa e duradoura existência. Com efeito, quando a estiagem cai de vez sobre o sertão e tudo começa a acinzentar, encurvar e definhar de vez, com as ossadas e restos se amontoando pelas paisagens, o mandacaru continuará esbelto e imponente, de braços erguidos em direção às alturas do céu e do sol.
Mesmo que não reste nenhuma folha seca nas catingueiras, aroeiras e baraúnas; mesmo que não nenhum bicho seja mais avistado, que o preá tenha sumido de vez e o calango já não suba nas pontas de pedras para avistar a destruição; e mesmo que o sol cortante vá ferindo sua pele já amarronzada e vá fraquejando seus espinhos, ainda assim o mandacaru continuará suportando toda a aflição da estiagem. E, como verdadeiro milagre, ainda fazendo brotar um florido contrastante com tudo que se apresenta ao redor. Mirradinha, porém flor. E flor do mandacaru!
O mandacaru não é apenas a planta símbolo do sertão como carrega em si muitos mitos, lendas e curiosidades. Relatam que testemunhou a chegada dos primeiros desbravadores do sertão sergipano. Após aportarem nas beiradas do Velho Chico, com rebanhos ou apenas carregando poucos pertences no matulão, aqueles verdadeiros bandeirantes dos carrascais nordestinos deram início à caminhada civilizatória. Em meio ao desconhecido, vencendo a mataria e os perigos da terra hostil, foram desbravando aquelas vastidões inóspitas até fincarem suas raízes nas primeiras choupanas. Daí o início de tudo, do nada ao quase nada que se tem hoje na maior parte da região. E o mandacaru já estava lá, avistando tudo, pressentindo como seria dali em diante.
O mandacaru avistou ao longe, cortando aquelas trilhas de espinho e pedra, o passo lento de um povo diferente. Não que fosse de feição desconhecida, pois todos carregando no rosto e no corpo as marcas tão conhecidas do sertanejo. Contudo, o que diferenciava era o jeito no vestir, no olhar brilhoso além da normalidade da gente do lugar, mas principalmente no canto suplicante que ecoava como verdadeiro lamento. Porém nada igual ao homem que seguia à frente daquele povo. Um senhor alto, esguio, barbudo, vestido com uma bata escura que descia até o calcanhar e levando à mão um cajado longo e fino. De vez em quando fincava a vara na terra e se voltava para seus seguidores, instante em que elevava a voz com palavras recolhidas na memória do mandacaru: Não cansem, não tenham sede nem fome, pois caminham pelos caminhos da salvação. E salvos seremos de todas as injustiças do mundo, em nome do Senhor Nosso Pai. Era Antônio, o Conselheiro, que acabou construindo uma igrejinha de pedra não muito distante do lugar do mandacaru.
Ainda hoje a cactácea guarda no seu tronco magro o sinal de uma dor jamais esquecida. Uma bala disparada de dentro dos escondidos do mato – por isso mesmo jamais soube de qual arma saída nem do seu atirador – acabou varando sua carne e indo parar num tronco de catingueira. Mas sabia que haveria de ser assim, pois fazendo moradia bem no lugar de passagem de cangaceiros e volantes, uma gente que não parava de guerrear entre si. Por diversas vezes havia avistado a cangaceirada se amoitando pelos arredores, sempre de arma em punho e pronta para o enfrentamento do inimigo. Diferente dos cangaceiros, que rondavam a região quase sem arredar pé da mataria, os soldados da volante preferiam seguir pelas veredas abertas, pelos caminhos afastados das pontas de espinhos e dos dentes das cascavéis.
Mas certa feita estranhou quando o bando cangaceiro despontou lá na curva e veio caminhando na paisagem aberta. Estavam apressados, é verdade, mas ainda assim conseguiu ouvir bem quando Lampião disse: Sei que vocês estão cansados. Sei do estropiamento de todos, pois num á fácil caminhar daquelas distâncias do Raso da Catarina até aqui. Se lá parecia um deserto de pedra quente de lascar e perigoso demais, bem sei que não é fácil caminhar pela caatinga seca e espinhenta e tendo ainda que enfrentar o inimigo a qualquer momento. Tá tudo quieto, parado, mas ninguém duvide se um cabra da peste cuspir fogo de dentro do tufo dos mato. Por isso que precisamo botar o solado pra caminhar e chegar logo no Angico. Lá na gruta, na beira do rio, todo mundo vai ter tempo de se refazer do sofrimento e se preparar pro próximo passo. E de lá, depois do descanso merecido, só mesmo Deus pra apontar nosso destino.
Dias depois o mandacaru ouviu de dois caçadores de passagem aquilo que demorou a acreditar: Lampião e boa parte daquelas pessoas haviam sido encontrados e mortos pela polícia volante do Tenente João Bezerra, depois de atravessar o rio na escuridão da madrugada, a partir das beiradas de Piranhas, nas Alagoas. Após ouvir tal relato, e até hoje não sabe o porquê, mas entristeceu tanto que não restou uma só flor. As flores que haviam brotado no alto dos braços, amareladas, viçosas e bonitas, foram definhando como o próprio sertão nos seus instantes de sofrimento maior. E foi a primeira vez que um mandacaru chorou pela morte de alguém. Difícil de acreditar, mas Lampião mereceu sua lágrima.
Até hoje o mandacaru está lá na beira da estrada. Ninguém sabe sua idade, pois parecendo eterno. Mas já nem parece com aquele de outros tempos. Seus braços ossudos parecem não mais implorar qualquer coisa. Também não floresce mais nem se defende com seus espinhos cortantes. Apenas chora o seu sertão. Ou do que dele fizeram.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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