Rangel Alves da Costa*
Velho amigo, amigo velho, bom dia, boa tarde,
boa noite. Não sei se agora debaixo de lua ou de sol, mas sei que diante da
face de Deus sertanejo.
Desde muito que o tamarineiro não houve nosso
proseado ao entardecer. Debaixo daquele sombreado e nossa voz matuta falando da
vida e da sina, do tempo e do destino, dizendo sobre a planta e o bicho.
Nosso amigo Zequias enviou-me missiva outro
dia. Cartinha rabiscada por algum parente, certamente, vez que nosso bom homem
só aprendeu a ler no livro do tempo e escrever por cima da terra. Mas não há
ninguém mais culto por todo o sertão. Um verdadeiro mestre no ofício da
sobrevivência.
Fiquei muito triste com o que relatou, e por
isso mesmo preciso que me confirme o tamanho da dor retratada. E quem dera
apenas uma dor de passagem, assim como um espinho na sola do pé, mas um
sofrimento duradouro e difícil de ser combatido. Eis, amigo, que a dor descrita
se espalha e aflige o sertão inteiro.
Queria não acreditar no amigo Zequias, mas
impossível diante da lucidez de suas palavras tronchas. Acaso seja mesmo
verdade o que descreve, então o nosso sertão parece estar com os dias contados,
bem perto do fim.
Mas não imagine que o sertão irá sumir
debaixo do chão, mas é outra terra que vai acabar encobrindo o nosso rincão. E
de tudo aquilo que desde muito aprendemos a amar e cativar, muito pouco restará
como sombras da pujança de um dia, de nossas raízes e nossos antepassados.
Acredito no Zequias, mesmo me estraçalhando
por dentro não posso deixar de acreditar. Mas parece coisa do outro mundo. Faz
pouco tempo que peguei a estrada e tudo por aí já parece transformado em outro
mundo. Pelo que disse, só mesmo a lua e o sol sertanejo continuam vindo e
voltando como antigamente, sendo no dia a dia o que sempre foram. Mas o resto.
Dói-me acreditar, velho amigo, que até o
autêntico matuto, o verdadeiro caboclo sertanejo, está se deixando conduzir
pela modernidade. Disso ninguém foge, sei bem disso, mas também não se deve
renegar sua condição nem relegar ao esquecimento a cultura sertaneja, sua
história e suas tradições.
Fiquei sabendo que quase ninguém mais se dá o
trabalho de ir buscar o animal no cercado, colocar sela e fazer montaria.
Cavalo, burro, jegue e jumento estão sendo praticamente abandonados quando se
trata de pegar estrada e ir de canto a outro. Não se ouve mais relincho pelas
veredas, não se descansa mais debaixo de umbuzeiro, pois tudo agora no lombo da
motocicleta.
Zequias me disse tudo, e coisas realmente de
espantar. Disse que por aí tem gente que tange vaca em cima da moto, que entra
na mataria montado na máquina e que sequer se lembra de matar a fome e a sede
do jumentinho esquecido nos descampados do mundo. Mas não pode faltar de jeito
nenhum a comida gordurosa da motocicleta.
Então, velho amigo, fico aqui me perguntando
se não chegará o dia de vaquejada sem cavalo, de pega de boi sem cavalo, de
corrida de mourão sem o animal. E seria a visão mais triste avistar uma
cavalhada sem aqueles cavalos enfeitados e os honrados cavalheiros empunhando
suas lanças com majestade indescritível.
Zequias falou-me de tudo, ou quase tudo. Relatou-me
que o sertão está cada vez mais quente e os riachinhos cada vez mais secos. E
também que quase não há mais mataria, não se avista mais aquelas árvores
portentosas se sobressaindo ao lado das catingueiras e tufos espinhentos.
Segundo ele, nem ao amanhecer nem ao
entardecer se ouve mais um só canto passarinheiro. Sumiram as rolinhas
fogo-pagô, os canários, os cabeças, os azulões, os coleirinhos, as sabiás.
Ninguém avista mais uma seriema, uma nambu ou codorna. Até o preá, que é bicho
mais da terra que qualquer outro, sumiu de vez daquele chão.
Também pudera amigo, não poderia ser
diferente. Onde não há mato não pode haver bicho, onde não há planta na beira
de riacho não há como a água se segurar, onde só há devastação tudo dizimado
estará.
A verdade, amigo, é que passarinho precisa da
copa das árvores para fazer seu ninho, precisa de galhagens para pousar depois
do voo, precisa das flores para se alimentar. E como pode sobreviver num lugar
que praticamente virou deserto? O mesmo se diga com os outros bichos que
precisam dos tufos de mato, da fonte para matar a sede, da natureza para
sobreviver.
Zequias me disse muito mais, mas vou ficando
por aqui. Quem dera chegar por aí e ainda poder ouvir um aboio, uma toada
dolente, uma cantoria matuta. Sei que o fole silencia mais que abre o berreiro
e também que quase não há mais salão de arrasta-pé. E os pífanos de noites de
leilão emudeceram de vez. Tudo de fazer chorar.
Falei demais, não sei, porém falaria muito
mais se essa saudade no meu peito não chuvarasse nos olhos. E agora choro, uma
tempestade. Ainda assim sinto no rosto o sol em chamas do meu sertão. Mas
qualquer dia ainda terei sua lua.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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