SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A INATACÁVEL HONRA DE LAMPIÃO E MARIA BONITA (Artigo)

A INATACÁVEL HONRA DE LAMPIÃO E MARIA BONITA

                                       Rangel Alves da Costa*


É um fato verdadeiramente lamentável, absurdo, demasiadamente constrangedor, o que andam querendo fazer com a história brasileira, com os que fincaram na luta seu nome na memória, ao injustificadamente tentar ferir a honra e a imagem de um dos seus personagens mais emblemáticos.
Ora, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, herói para tantos e bandido para muitos, possui lugar primordial na memória social brasileira, quiçá mundial. Figura de proa do fenômeno cangaço, por isso mesmo não pode ser achincalhado, enlameado, destroçado, de forma totalmente descabida, como pretende fazer o autor de um livreto – “Lampião – O Mata-Sete” - cuja intencionalidade maior talvez seja proporcionar qualquer minuto de fama na poltrona do Jô. Talvez não mereça nem sequer um segundo.
Parecendo em comunhão com o antropólogo e ativista gay Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia – que tenta provar a todo custo que os santos foram bichas, todos os personagens da história eram viados e até sua descendência masculina só vestia rosinha -, o juiz aposentado sergipano Pedro Morais quer provar a qualquer custo que Lampião era afeminado, aviadado, bicha. Contudo, sem qualquer prova fecunda e sem o mínimo de seriedade.
E não somente isto, pois seu devaneio vai muito mais além ao afirmar que o bando mais famoso de cangaceiros tinha na dianteira um viado e ao lado uma mulher adúltera, vez que Maria Bonita o traía com pelo menos outro cabra. Ademais, gay, infértil, o Capitão também não poderia ser pai de Expedita Ferreira, a filha que deixou de ser porque Pedro Morais assim quer. Acabando com a prole, acabou também com a ascendência, com a linhagem cangaceira.
E foi por essas e outras que a remanescente familiar ajuizou ação tentando impedir que o tresloucado homem fizesse o lançamento desse seu livreto eivado de covardia, mentira e desonestidade. Considerando Lampião um facínora, Pedro Morais afirma que o cangaceiro Luiz Pedro tanto mantinha relações com homossexuais com o Capitão, como o traía com a sua própria esposa, Maria Bonita.
Desse modo, através do Processo nº 201110701579, o sóbrio magistrado atuante na 7ª Vara Cível da Comarca de Aracaju concedeu medida liminar proibindo o nefasto lançamento do livreto, tecendo, dentre outras as seguintes considerações:
“Expedita Ferreira Nunes...
Alega que é filha única do casal Virgulino Ferreira, conhecido por “Lampião” e de Maria Bonita, e que ao ler a capa do caderno “Cultura” do Jornal Cinform, constatou que de forma grosseira o requerido violou a intimidade e privacidade dos pais da requerente, com afirmações acerca da sexualidade e masculinidade do pai da requerente, como também acerca da conduta moral da mãe da requerente.
Disse que o requerente imputou a seu pai a prática de comportamento homossexual e a sua mãe a prática de comportamento adúltero.
........................................
Pois bem, entre evitar eventual prejuízo financeiro do requerido, com a proibição da publicação do seu livro e evitar ofensa à honra da requerente e de seus pais, deve o judiciário, por óbvio, ficar com a segunda opção e proteger a honra e a intimidade da requerente e seus genitores.
Em relação à proteção da intimidade e da honra da requerente, busco amparo e fundamento nas próprias palavras do requerido constantes da entrevista concedida ao Jornal Cinform, pois o mesmo afirma categoricamente, em várias passagens, que o pai da requerente, conhecido como “Lampião”, era boiola, gay, entre outros adjetivos direcionados a imputar ao mesmo a condição de homossexual.
........................................
Não é de ninguém novidade, a característica de virilidade que sempre se tentou passar da história de vida de Lampião, pai da requerente, tanto é assim que o mote do livro a ser publicado pelo requerido trata exclusivamente desta questão relativa à opção sexual do mesmo.
Tal situação, não teria sequer apelo da imprensa, se o livro tratasse de eventual aventura heterossexual de Lampião, pois são várias as publicações históricas que tratam dessa característica viril do pai da requerente.
Então, percebe-se facilmente que a questão diz respeito exclusivamente à intimidade da requerente e de seus genitores, pois de forma expressa, segundo se infere do texto da entrevista concedida pelo requerido ao Jornal Cinform, o mesmo lança dúvidas, inclusive, a respeito da paternidade da requerente.
Ora, uma simples ação de investigação de paternidade é acobertada pelo manto do segredo da justiça, com muito mais razão deve ser protegida a intimidade da requerente, diante do conteúdo do livro que o requerido pretende publicar.
Ademais, não há como deixar de considerar, que o fato de se tentar passar a ideia de que Lampião era homossexual, constitui-se, em evidente ofensa à honra da requerente, pois qualquer pessoa se sentiria ofendida acaso lhe fosse imputada característica não compatível com a sua história ou até mesmo com os sentimentos pessoais, acerca do comportamento de seus genitores. 
Diante de todas essas considerações e forte no art. 5º, X, da Constituição Federal, DEFIRO A TUTELA ANTECIPADA, para proibir que o requerido publique, veicule, exponha, venda ou doe o livro intitulado “Lampião, o mata sete”, sob pena de multa diária de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) (Aldo de Albuquerque Mello - Juiz de Direito)”.
Logicamente que o invencionista e pretenso historiador, inconformado com a decisão que lhe tirou os holofotes do rosto, recorreu. Contudo, ao tomar conhecimento do caso se observou uma generalizada revolta da sociedade, uma indignação tamanha que mais tarde, acaso o malfadado escrito ganhe as ruas, poderá se ter na porta do escritor uma imensa fogueira jogando pelo ar sua verve verborrágica cheia de aleivosias, calúnias e falsidades.
Patente está e inegavelmente se reconhece que o único intuito do escritor é ferir graciosamente a honra de Lampião, enlamear sua imagem histórica, ferir irreparavelmente a honradez familiar e o laço de consangüinidade, macular deploravelmente a figura da mulher que fez da vida ao lado do seu bem amado, no leito da lua e das durezas da terra, o passo firme na frágil linha do destino.
Qualificar Maria Bonita de adúltera significa deitar por terra o testemunho da história, vez que nem o esposo jamais teria razão para duvidar de sua fidelidade, os outros que viviam ao redor nunca tiveram motivos para macular sua imagem, e todos vivendo em bando, conjuntamente, e apenas a ferina intencionalidade de Pedro Morais para querer afetar o âmago de tão meiga e respeitosa feminilidade.
Contudo, enquanto magistrado de chuteira na porta, Pedro Morais ao menos deveria lembrar que o ser humano, só pelo simples fato de ter vindo à existência, é resguardado por direitos inalienáveis e que a ninguém é dado o direito de afetá-los. E quando o indivíduo desonrado, atingido na sua memória, afetado na linhagem que deixou, já não mais compartilha do mundo de quem o massacra, então é que a necessidade de ser respeitado ser redobra. E a lei é clara:
“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (CF, art. 5º, X).
Ademais, a liberdade de informação e de manifestação do pensamento não constituem direitos absolutos, sendo relativizados quando colidirem com o direito à proteção da honra e da imagem dos indivíduos, bem como ofenderem o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A imagem e a honra de Lampião, Maria Bonita e sua filha Expedita não podem, pelas mãos do escritor, se tornar como coisas de ninguém.
 Dos que partiram, e honradamente partiram, serão lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta. Daí porque a sociedade se sente tão horrorizada com o surgimento de situações como tais, como se a intencionalidade de ferir fosse o alento para alcançar a fama no topo de vento.
A sociedade conhece a história do cangaço, reconhece os feitos desse casal de cangaceiros e por isso mesmo é que mais se desvanece com a exaltação feita à sua memória, como é a que mais se abate e se deprime com essa vergonhosa agressão que lhe traz tanta mácula.
E é por essas e outras que deveria ser permitido ao Capitão o direito de levantar do seu último leito e ter uma conversinha de homem pra homem com esse ex-juiz. Só assim se veria aonde o fundilho suja.




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Silêncio e palavra (Poesia)

Silêncio e palavra



Queria o silêncio
que seja silêncio de pedra
ou apenas um sussuro
feito sussurro de ventania
para que meu grito
que quer romper a pedra
quer quebrar o vento
não se faça agora
não antes que me chegue
a palavra que foi prometida
para ser dita somente
quando subir a montanha
e no silêncio lá do alto
de olhos e boca fechados
deixar o pensamento dizer
“Não preciso de palavra
senão do teu verbo Senhor!”.



Rangel Alves da Costa

terça-feira, 29 de novembro de 2011

COM O DEDO NO GATILHO (Crônica)

COM O DEDO NO GATILHO

                                          Rangel Alves da Costa*


José para os que não sabiam; Zezão para os que conheciam a fama; ou simplesmente Jagunço, bandido maior desalmado, cabra covarde que só mata na tocaiagem.
Recebeu dois dinheiros pra fazer o serviço. Pra ser dois dinheiros tinha de ser bem feito mesmo, pois já estava acostumado a matar por qualquer derréis, qualquer luarado de nica, qualquer vintém ensangüentado.
E se era dois dinheiros então o cabra que ia cair devia ser dos mais importantes, da mesma estirpe e inimigo do coronel, gente usando do mesmo linho branco e fumando do mesmo charuto importado. Haveria de gostar de uma raparigagem francesa também.
Mas quando soube quem ia matar quase dá um revertério da moléstia. O coronel Tiberiano lhe chamou num canto e segredou que no romper do dia Querêncio já devia tá com a cara virada pro chão pedregoso, ferido de morte com um tiro na testa.
O problema se danou ainda mais porque o coronel, já sabendo que todo homem fraqueja quando sabe que o que vai matar é um inocente desvalido, foi logo lhe jogando nas ventas que ou fazia o serviço bem feito, sem pestanejar, ou um cascavel raivoso lhe morderia o calcanhar.
Tava dado o recado. Se não matasse podia ter a certeza de amanhecer estrebuchado, irreconhecível na festa das formigas.
E Zezão saiu da casa grande sem saber o que fazer. Conhecia Querêncio demais, era até seu amigo, homem trabalhador e honesto, que não gostava dessas coisas de violência, pobre Jó, a única riqueza que tinha era seu cercadinho de terra, a mulher lanhada de sol e de tempo e uma filha linda, Lindoca, moça de beleza sem igual por todo esse arriba mundo.
E por que tocaiar o homem pra matar assim, atirando num inocente como se tenta acertar num inimigo feroz? Sobre a valentia do homem, a única coisa que sabia é que tinha expulsado o coronel da porta de casa porque tinha ido até ali oferecer presente a Lindoca.
Então era isso, Lindoca. Matando o pai, certamente fraquejava a família miúda e ficava mais fácil lançar mão da inocência virginal da mocinha. Mas que velho safado o coronel, já pai de ninhada, avô e ainda querendo dizer que tinha fogo entre as pernas pra deitar a bela Lindoca no capinzal.
Mas era o homem ou ele. Então achou melhor esquecer que ao menos o conhecia e foi deitar pra acordar pronto pra fazer o trabalho. Sabia que toda de manhãzinha ele corria pra tirar leite da vaquinha, então era só se amoitar por detrás de um tufo de mataria e apertar o gatilho.
Assim pensado, planejado, e assim feito. Ou quase. Chegou ainda no madrugar perto da tapera do homem, caminhou sorrateiramente pelos arredores até encontrar o melhor lugar e a melhor posição. Achou uma moita graúda por onde ele teria de passar e ficou por ali querendo assuntar no pensamento qualquer outra coisa, menos o que ia ter de fazer dali há pouco.
Como ainda estava escurecido, passou a mão pelos olhos e não quis acreditar quando viu passar um vulto montado a cavalo e em seguida um tiro ser disparado e a miragem cair pelo chão. Em seguida viu como se fosse uma pessoa caminhando tranquilamente e ser alvejado por dois disparos saídos daquela moita de onde estava.
E foram passando outros e outros, sendo atingidos e caindo mortos, ainda que no minuto seguinte não restasse nem sinal de qualquer corpo caído. Por fim, viu claramente um homem passando e de repente se virar para o lado da moita onde estava. Gelou dos pés à cabeça, os dedos enrijeceram, ficou completamente desnorteado, pois teve a certeza de que o indivíduo que o olhava não era outro senão ele mesmo.
E o pior aconteceu na voz que ouviu: “Todos aqueles foram suas vítimas e agora chegou sua hora. Teria coragem de atirar?”. Como pensou duas vezes, no momento seguinte o corpo já estava jogado no chão, sangrando.
E que coisa mais feia ele próprio morto daquele jeito.
Em seguida baixou a cabeça, jogou a arma no tufo da mataria e saiu sem destino, passando por cima de pau e pedra como se andasse em tapete. Totalmente enlouquecido.




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Menino cangaceiro (Poesia)

Menino cangaceiro



Caboclo valente
da vida errante
se fez descontente
pra viver retirante

menino cangaceiro
escolheu seu destino
sem ser justiceiro
só bandoleiro menino

caboclo destemido
de escolha incerta
na vida resolvido
a ter alma liberta

menino cangaceiro
filho desse sertão
na luz do candeeiro
encontrar o Lampião

caboclo adolescente
tudo ainda por viver
vinga da dura semente
pra sina de padecer

menino cangaceiro
cadê o menino
fuzil fez o festeiro
destino mais malino

caboclo mais sumido
menino desapareceu
foi fazer a guerra
ninguém sabe se morreu

menino do cangaço
hoje vive na memória
sem régua traçou o traço
e se escondeu na história.



Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: DIA DE CHUVA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: DIA DE CHUVA

                                          Rangel Alves da Costa*


Conto o que me contaram...
Dizem que numa cidadezinha sertaneja, dessas que ficam lá por detrás das montanhas do fim do mundo, vivia um povo tão precisado de chuva para plantar, colher, beber e viver, que depois do período de estiagem todos se preparavam para a grande festa.
Depois de um, dois ou mais anos sem cair na terra uma gota de água sequer, assim que os profetas da chuva anunciavam que a barra havia mostrado um quadrante de nuvens negras, prenhes de trovoada, era o sinal maior e tão esperado para as arrumações, para a festança começar.
Difícil de acreditar, coisa de maluco se podia dizer, mas a verdade é que os preparativos para a festa da chuvarada não envolvia ajeitar os telhados, limpar as cisternas, passar a enxada nos barreiros, preparar as sementes. Nada disso. O povo se preocupava mesmo era com outras coisas.
Não pensem ser invencionice não, mas a grande preocupação do povo era com a vestimenta nova que usaria assim que a chuva começasse a cair. Assim que as nuvens encobrissem o lugarejo cada um morador tinha de estar tomado dos pés à cabeça pela vestimenta mais rica que houvesse.
Assim, tiravam das caixas ou dos embrulhos o vestido novo, a calça nova, o sapato novo, a sandália nova, a saia, camisa, o jaquetão, tudo novo e se paramentavam como se fossem a um grande baile. Cabelos na brilhantina, arrumados cuidadosamente, com perfumes derramados pelo corpo inteiro, tudo na conformidade para o grande evento.
E todos vestidos de roupas brilhosas, engomadas e enfeitados de quinquilharias, assim que os primeiros pingos caíam já abriam as portas e em seguida, com a trovoada já se fazendo volumosa, todos saíam para o meio do tempo, para debaixo das águas, para dançar, pular, rolar pelo chão, se lambuzar, deixar a roupa nova em frangalhos.
E de tanto brincar, cantar, rodar, se rasgavam completamente, quase se despindo ali debaixo da chuvarada. Mas tinha de ser assim, como um ritual onde a roupa nova era oferenda aos deuses da chuva, com a certeza que o tempo bom, com a terra molhada, as plantações e as colheitas fartas, muito mais do que vestimentas poderiam adquirir.
Era a festa da vida, o ritual de agradecimento à chuva que significava tudo.




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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CUSCUZ DA TERRA COM OVOS DE CAPOEIRA (Crônica)

CUSCUZ DA TERRA COM OVOS DE CAPOEIRA

                                      Rangel Alves da Costa*


Ao meu estilo, tenho um amigo que é um inveterado e persistente pesquisador das coisas sertanejas, fatos e causos do homem do campo, bem como tudo que for relacionado a cangaço, coiteiro, volante, jagunço e coronel. Basta ouvir falar sobre qualquer desses assuntos e lá estará o homem anotando, fotografando, filmando, gravando.
Segundo me segredava, gostava mesmo de investigar os fatos o mais próximo possível do ocorrido, no próprio local, da boca de quem testemunhou ou vivenciou. Por isso mesmo vivia viajando pelo sertão, visitando velhos agrestinos, caçando fundamentos para a sua infindável colcha de retalhos da história sertaneja. Igual aos enciclopedistas, pretendia escrever um Tratado Geral e Extensivo Sobre Todos os Acontecimentos, de Vida e de Morte, Ocorridos no Sertão, Desde os Primórdios aos Dias Atuais.
Contudo, um dia insisti para que mostrasse o material já coletado e transposto para o papel e tive a maior decepção. Verdade é que o homem não havia escrito uma linha sequer, não tinha nem dois minutos gravados de conversação com sertanejos, não havia filmagem, fotografia, absolutamente nada. Mas o mais instigante descobri depois: a sua intenção nas viagens era bem outra.
Quando viajava sertão adentro, todo paramentado como pesquisador e agindo como tal, até pagando de vez em quando para obter dados importantes, objetivava exclusivamente encontrar pelas fazendas, moradias empobrecidas, casarões ainda existentes, nas casas de pessoas comuns, o farnel festivo que o fazia sorrir pelos olhos e gargalhar pela boca.
Eis que buscava mesmo, e exclusivamente, a buchada, o sarapatel, o milho assado ou cozido, o bolo de leite ou macaxeira, o autêntico doce de leite, a rapadura, a galinha de capoeira, o café torrado na hora, a carne de bode quentinha, a caça, o leite fresquinho ao amanhecer no curral, a coalhada, a perna de preá assada. Mas principalmente o cuscuz de milho ralado ao amanhecer ou entardecer e os ovos de galinha de capoeira.
E na sobremesa e a toda hora a manga olorosa, docinha e cheirosa, a melancia de vermelhidão infinita, o mamão feito de mel e cor, a jabuticaba inconfundível, a pinha de brancura de nuvem e gostosura de paraíso, o umbu madurinho e doce de se derramar pelo canto da boca, a goiaba roubada do bico do passarinho, a mão cheia de araçá dos deuses, numa gulodice de não acabar mais.
Apaixonado pela comida da terra, pelo autêntico sabor sertanejo, o meu amigo se tornava num verdadeiro mentiroso apenas para alimentar sua gula. Mas, diga-se de passagem, com toda razão, com pleno fundamento pela busca incessante do bem e do melhor, tudo saído da brasa, do fogão de lenha, da chama queimando ao lado e o vapor subindo aquele aroma inconfundível, gostoso demais, que só de cheirar já experimentava. E o safado nunca me convidou para acompanhá-lo nas pesquisas.
Um dia, sem que ele logicamente soubesse, resolvi também fazer esse estudo de campo e entrei sertão adentro com uma fome de saber jamais vista em qualquer outro pesquisador. Mas saber apenas onde ele buscava o seu rico material, colhia tanta fonte para o seu desenfreado paladar e trazia ao corpo e espírito, mais nitidamente ao corpo mais avolumado, tanto prazer pelas coisas da terra.
Acabei constatando a veracidade daqueles argumentos e descobri muito mais. E o que acabei descobrindo fez com que eu mudasse minha pesquisa de sociológica de garfo, colher e faca, para psicológica, de cunho comportamental e de mudanças repentinas nas atitudes dos indivíduos.
E tive que fazer isso porque descobri que é impossível alguém, ao entardecer, sentir pelo ar o cheiro do café torrando e depois borbulhando na chaleira, para não sair correndo, entrar na casa sem pedir licença e implorar por um gole daquela preciosidade negra. E se, uma vez dentro da casa, encontrar na cozinha, sob o fogão de lenha, o cuscuzeiro repleto de cuscuz feito com milho ralado ali mesmo, não pedi em lágrimas ao menos um taquinho, então o indivíduo é capaz de endoidar.
E endoida mesmo. Até hoje o meu amigo está meio perturbado do juízo porque certa feita, já de barriga cheia demais de tudo do bom e do melhor, chegou numa casa e encontrou sobre a mesa o cuscuz mais cheiroso e apetitoso do mundo, tendo ao lado uma estaladeira repleta de ovos fresquinhos de galinha de capoeira, ali mesmo do quintal, amarelados e imensos feitos um sol sobressaindo nas nuvens brancas.
Foi convidado a sentar à mesa e começou a chorar. Não cabia mais nada no seu bucho e ficou traumatizado. Até hoje não pode ouvir falar em cuscuz da terra com ovos de capoeira que fica em tempo de correr. Mas correr atrás, sempre atrás da gostosura.




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Que venham os frutos (Poesia)

Que venham os frutos



Saia sossegado pelos campos
olhe com atenção o que a terra
silenciosamente esconde
e veja que o pé de melancia
corre feito cobra pelos sulcos
até encontrar a sombra
de uma folhagem qualquer
onde possa se esconder e vingar
do mesmo modo é com a abóbora
cujo talo parecendo cipó
se prende ao umbigo do bago
e deixa a germinação escondida
sem que ninguém imagine
que debaixo daquela ramagem
existe um fruto ganhando corpo
e esses talos feito cipós virgens
num esverdeamento cor de sangue
que corre nas veias das plantas
são iguais ao cordão umbilical
prendendo o corpo da natureza
ao útero prenhe de vida
que faz brotar na terra o pão
comido na mesa do próprio chão
ou retalhado no prato do irmão.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: OS MENTIROSOS

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: OS MENTIROSOS

                                          Rangel Alves da Costa*


Conto o que me contaram...
Dizem que numa terra distante, muito distante ou logo ali, a fama que mais corria era sobre o jeito diferente de ser do seu povo.
Era verdadeiramente uma gente destrambelhada, prodigiosa no inventar, amiga da fofoca, da pouca verdade e do compromisso com a inverdade. Por ali ninguém acreditava em nada do que o outro dizia, pois cada palavra dita vinha pincelada de caraminhola, aumentando infinitamente ou diminuindo demais.
Para se ter uma ideia, um caçador de preá havia avistado uma onça novinha, com pouco tempo de nascida mesmo, lá pelos cafundós da mata fechada, mas chegou à cidade correndo pra dizer que todos se preparassem para enfrentar a verdadeira fera que estava rondando a cidade.
E disse que era uma onça, dessas pintadas e perigosas demais, que ao abrir a boca pra urrar parecia a boca de um tubarão branco pronto para o ataque. Coisa imensa, terrível demais.
Um artesão deu razão ao caçador e disse também ter visto aquele feroz animal e bem no seu quintal, querendo pular a cerca. De tão grande era a onça pintada de toda cor que nem todo tipo de garrote tinha o seu tamanho. E se benzia ao contar tal proeza.
Foi quando o oleiro chegou e disse que os dois falavam a verdade, mas que a onça avistada por ele, já querendo entrar nas ruas da cidade, era duas ou três vezes maior e sua boca aberta dava pra engolir um homem inteiro. De um urro que deu soltou um bafo tão quente que tocou fogo, num incêndio terrível, de todas as roupas que estavam num varal.
Em seguida uma alvoroçada moradora se danou a dizer que pelo jeito se aquela onça quisesse ia acabar com a cidade inteira, ia comer todo mundo e ainda ficar com fome. Então o caçador logo disse que nem se preocupasse que já estava preparando a arma pra esperar ela na boca da noite.
E arrumou um canhão aonde? Foi a pergunta feita pelo sacristão. E completou dizendo que pelo tamanho da bicha tinha de ser um canhão do exército ianque, pois do contrário todos seriam churrasquinho.
Mas era um pouquinho menor, disse o caçador. Sim, também vi que era menor, apenas uma onça um pouco crescida, disse o outro. Acho que me enganei, pois a bicha não era mesmo desse tamanhão todo não. E foram baixando, baixando, até se contentar em compará-la a um gatinho.




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domingo, 27 de novembro de 2011

APRENDENDO EM TUDO (Crônica)

APRENDENDO EM TUDO

                              Rangel Alves da Costa*


É costumeiro se ouvir que as melhores lições se aprendem em casa e que, portanto, o berço familiar é a melhor escola. Da porta pra fora o mundo é quem ensina tudo e, nas suas linhas tortas, muito mais do que qualquer universidade.
Contudo, mesmo que se considere o valor que possui o conhecimento escolar adquirido, num percurso de datas, fatos e acontecimentos, ainda assim nada se compara, por exemplo, com o saber que se acumula numa simples meia hora de conversa com um velho homem do campo.
Até os professores e estudantes sabem disso, pois muitas das pesquisas só alcançam validade científica com a denominada pesquisa de campo. E isto nada mais é do que o contato com o fenômeno para conhecer realmente suas causas e consequencias.
No centro de pesquisa surgem apenas norteamentos, hipóteses e objetivos de conhecimento. Mas é no contato direto com a população, conhecendo a fundo aquilo que interessa, que se torna possível o conhecimento verdadeiro. Isto porque a verdade está no que é visto e vivenciado e não naquilo que é apenas objetos de suposições.
O laboratório diz que aquela terra não é boa para plantar tal cultura. Mas o teimoso do sertanejo plantou e parece que tudo dá nela e sem rejeição alguma. Daí surgir a necessidade de o pesquisador seguir até lá e tentar descobrir quais são os segredos que aquele rude homem guarda para que aquilo aconteça.
Do mesmo modo, a meteorologia acadêmica diz que não vai chover durante o ano inteiro. Mas o teimoso sertanejo diz que vai chover sim, e muito, verdadeira trovoada, e isto porque olhou o espelho da barra, observou o comportamento das folhagens, viu como os matos estão se balançando.
Daí não ser possível, a bem do verdadeiro conhecimento, abdicar desses professores simples, humildes, inesperadamente encontrados por todos os lugares. Quanto doutorado existe na velha parteira, no caçador, no oleiro, na fateira, no menino que corre no descampado, na velha senhora que nunca entrou numa escola, no matuto analfabeto de pai e mãe, como se diz por lá.
Fora as lendas, crendices e superstições, que estão arraigadas no povo como verdades incontestes, mesmo que o estranho saiba que tudo não passa de uma forma de perpetuar aquela cultura, tudo o mais que é dito e ensinado na vida corriqueira está sempre envolto de grande conhecimento. Basta ver quantas doenças são salvas com apenas um pé de mastruz de quintal.
Se um doutor me disser uma coisa até que posso acreditar, mas se a mesma coisa me for revelada por um sertanejo nunca mais haverei de duvidar. Eis que a sabedoria popular não se baseia na experimentação laboratorial, em cálculos ou teorias, mas sim no convívio com o objeto do conhecimento. E se disser que vai chover trovoada pode esperar que não durará muito para a chuvarada cair.
Menino me diz que sempre tem cobra por perto de umbuzeiro carregado ao amanhecer, que rolinha não faz o seu ninho muito embaixo por causa das serpentes famintas, que mamão ou goiaba já mordido de passarinho não faz mal nenhum, que nem toda madeira serve pra fazer pião, que nem toda bola de gude alcança a mesma velocidade.
Maria me diz que me diz que leite com melancia não faz mal nenhum, que água de moringa dormida ao sereno é um santo remédio para gripe nova, que o chá feito com ervas de quintal não pode ser muito forte nem muito fraco, sob pena de não fazer qualquer efeito, que se o pano de prato secar no varal em menos de dez minutos é porque o tempo está pra chover.
João me diz que cavalo agitado é porque tem coisa estranha por perto, que se o animal não quiser de jeito nenhum seguir adiante numa estrada é porque tem cobra esperando pra dar o bote, que onde não passa revoada de passarinho é porque por perto não tem uma gota d’água, que bicho não uiva por cima dos morros se não houver lua cheia.
Aprendo também, e talvez muito mais, com esse povo, que é o meu povo, porque acredito mais no conhecimento construído no cotidiano do que na ciência forjada.



Poeta e cronista
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Abandono (Poesia)

Abandono



Uma tapera
ripado caindo
barro sumindo
janela despedaçada
porta deitada ao chão
ossos de cachorro morto
ventania soprando lá dentro
zunindo na boca do pote
sufocando o gargalo da moringa
o tamborete está cheio de tempo
a mesa velha repleta de solidão
as cinzas ainda estão espalhadas
pelo fogão de lenha e pelo chão
um pano velho passa voando
logo atrá vem uma folha seca
como é a porta da frente
eis o retrato da porta de trás
parecendo que há anos
nenhum pé de gente
passou por ali
para visitar a saudade
e partir.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O MENINO E SUA AVÓ

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O MENINO E SUA AVÓ

                                          Rangel Alves da Costa*


Conto o que me contaram...
Dizem que numa terra nua, lugar hoje entristecido e tão verdejante num tempo distante, um garotinho morava com os seus numa casinha de herança familiar.
A avó, apontando com a mão por todos os lados, dizia apenas que tudo ali havia sido muito diferente do que era agora.
Mas um dia, num entardecer dolentemente sertanejo, o menino sentou no colo da velha senhora e perguntou pela baraúna enorme, com cerca de cinco metros de largura, bem ali nas barrancas do riachinho.
A avó olhou assustada para o neto e não respondeu nada. Afinal, aquele moleque não podia saber que um dia existiu naquele local a bendita árvore. Há mais de quinze anos havia sido derrubada.
Noutra tarde, de chuviscar e tristeza, o menino sentou por cima da avó e perguntou pelo pé de umbuzeiro, sempre carregado, que ficava ali pertinho do curral das pedras. A avó deixou uma lágrima cair pelo canto do olho e não respondeu nada.
Numa noite, apenas um anoitecer sertanejo sem os encantamentos de antes, sentados num banco na malhada, o menino atrevido perguntou se o fogo-corredor não aparecia mais por ali porque não tinha mais mata pra se esconder. E a avó ficava cada vez mais desesperada.
E noutros e noutros dias, o menino apontava em determinadas direções e perguntava cadê a serra que estava ali, cadê a mata da onça que ninguém via mais, cadê a casa do velho do mundo que ficava bem lá dentro do coração da floresta.
E a avó então teve de perguntar por que ele falava tanto nessas coisas do passado e como ele sabia dessas coisas de um tempo muito distante.
E o menino enfim respondeu que era seu avô que lhe contava tudo. E naquele momento ele estava bem ali vestindo um gibão e selando um cavalo pra ir vaqueirar a lua mais bonita da noite.
Pra presentear sua bela senhora...




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sábado, 26 de novembro de 2011

MATUTO NA MODERNAGEM (Crônica)

MATUTO NA MODERNAGEM

                                  Rangel Alves da Costa*


Seria até constrangedor o cabra da capital ou entendido da leitura chegar pro verdadeiro matuto, o autêntico caipira das distâncias sertanejas e perguntar-lhe alguma coisa sobre novas tecnologias, progresso científico, informática, métodos progressivos de otimização do trabalho e da produção.
Muitas vezes constrangedor para os dois lados, pois o que se acha sabido e pergunta apenas no intuito de ofender, fala somente por ter ouvido falar, por ouvir dizer, sem realmente saber qualquer conceito que o valha. Mas no seu silêncio envergonhado, muitas vezes de cabeça baixa, o matuto convive diariamente com muito mais tecnologia do que se imagina.
Ora, desde que o mundo é mundo, como gostam de dizer, as tecnologias são utilizadas no dia a dia. Mesmo sem uma formulação acabada sobre as técnicas utilizadas, verdade é que o simples gesto de friccionar madeira para fazer surgir o fogo, os instrumentos de pedra utilizados para fazer armas de caça, as armadilhas que criavam para caça animais, os arcos, as flechas, enfim, todo aquele aparato tão útil para a sobrevivência era pura tecnologia.
As garruchas e espingardas utilizadas antigamente na caça e proteção aos poucos foram se tornando em rifles e outras armas modernas; a machadinha de pedra dos tempos idos deram lugar à lâminas cortantes e afiadas; os cumbucos e cuias foram perdendo uso quando do surgimento das vasilhas, panelas e canecas; o velho fogão a lenha, de trempe e com pedras e gravetos por baixo, foi cedendo lugar para a comodidade do fogão a gás.
Assim, no mundo sertanejo e por todos os lugares, dos mais atrasados aos mais desenvolvidos, tudo que se tem hoje como tecnologia é apenas um aperfeiçoamento daquilo que ao longo do tempo foi sendo construído. Basta lembrar que o poder de cura através das ervas medicinais não foi descoberto primeiro em laboratório, mas sim nos quintais das casas sertanejas e nas matarias ao redor.
Nem em todos os lugares se usa mais, pois até nos grotões mais inacessíveis o progresso já está presente em muitos aspectos, mas não é difícil de se avistar ainda um amplo leque de tecnologias ditas atrasadas sendo ainda eficientemente utilizadas. Daí a persistência do carro-de-boi, da utilização do arado puxado por animais ou conduzidos por mãos humanas no preparo da terra para o plantio, as coivaras para queimar a mataria e deixar os campos limpos – e devastados e empobrecidos – para a plantação.
Daí também ser possível avistar o próprio sertanejo mexendo na sua fornalha para forjar o ferro e transformar em pás, enxadas e enxadecos; mexendo o barro da beira do riacho para transformá-lo em telhas e tijolos na olaria; as mãos geralmente femininas e calejadas revirando e amassando o barro marrom e pegajoso para daí em diante ganhar forma o pote, a panela, o prato, a cuia, a moringa, e muitos outros instrumentos ainda existentes nas cozinhas sertanejas.
O café gostoso e cheiroso foi batido no velho pilão herdado de um parente escravo; a moringa continua sendo a melhor geladeira em muitos lugares aonde ainda não chegou energia; as carnes salgadas que se estendem nos varais não perderão nem o sabor nem a qualidade ainda que fiquem semanas inteiras estendidas nos varais pelos quintais; a farmácia sortida de tudo está bem ali no quintal, com mastruz, erva cidreira e manjericão e muito mais.
Contudo, com a chegada dos benefícios da energia elétrica tudo deu um salto que, em muitos lugares, leva até ao empobrecimento das relações. As famílias praticamente não sentam mais diante da casa em noites de luas bonitas para conversar. Há sempre uma televisão, em ferro de engomar novo, um rádio a energia. Em muitos lugares as antenas enfeiam as paisagens, os animais foram relegados e as motonetas se tornaram moda. Os motores são ouvidos a todo instante, um carro sai de onde se guardava os sacos de milho e feijão.
E de repente o telefone celular toca e logo se ouve: “Alô cumpade, inté tomei um susto com esse bicho e quase num acerto a boca dele falar...”.




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Dentro da moldura (Poesia)

Dentro da moldura


Esqueceram a paisagem
na fotografia da minha namorada
não pintaram o fundo
da tela com a minha namorada
deixaram em fundo branco
o desenho da minha namorada
não enxergo nenhum cenário
emoldurando a minha namorada
talvez um jardim ou arvoredo
talvez um rio ou um mar
talvez um sol ou uma lua
talvez em tudo minha namorada
tanto faz que tivessem esquecido
de colocar um céu ao redor
ou um horizonte de azul e revoada
tanto faz porque a minha namorada
seguiu por uma estrada escondida
dentro da pintura ou fotografia
e só retornará para buscar
o sorriso triste que esqueceu.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: NO TEMPO DA INOCÊNCIA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: NO TEMPO DA INOCÊNCIA

                                     Rangel Alves da Costa*


Conto o que me contaram...
Por mais difícil que seja acreditar, mas houve um tempo que era tido como tempo da inocência.
Menino malino se escondia nas moitas perto do riachinho para ver a mocinha tomando banho de roupa e tudo. Que cena inesquecível, o vestido colado ao corpo molhado, acentuando suas curvas, causando arrepios.
Para ver a mulher nua só depois de casado e uns dez dias depois, pois antes disso devia se contentar em tocar a pele na escuridão da noite, procurando a geografia do corpo num verdadeiro trabalho de arqueologia.
Namorar sempre foi bom demais, mas naquele tempo dava um trabalho danado, principalmente porque os dois tinham de se contentar em apenas dizer que estavam juntos, porém sem o beijo, sem o abraço mais apertado, sem as malícias das mãos e pensamentos.
Namorar só se fosse na presença do pai ou da mãe da mocinha. Colocavam-se duas cadeiras na varanda, e sentada em outra um pouco mais afastada ficava a senhora olhando pelo canto do olho, fingindo que cochilava para pigarrear se sentisse uma mão boba procurando a perna do outro.
Naquele tempo, no tempo da inocência, os presentinhos eram bem mais simples e muito mais significativos. Podia ser uma cuia de araçá, uma mão de milho verde, uma melancia, um buquê de flores do campo, três metros infestados de chita colorida, um perfume Toque de Amor ou Carisma.
Mulher gostava de ler revista de artista, de cantores do rádio, de novelas em fotografias. Aliás, nunca mais vi revista com novela em fotografia, mostrando passo a passo o desenrolar de uma impossível paixão, para no final se ter sempre que foram felizes para sempre.
Certa feita, como já não tinha mais o que fazer para vencer aquela barreira do coraçãozinho endurecido, o rapaz comprou um rádio de pilha e mandou entregar na casa dela, com um bilhete dizendo que se possível ouvisse ao sábado tal programa. Sem saber o que aconteceria, ela chorou ao ouvir o locutor oferecendo “uma página musical de um coração apaixonado para sua bem amada”.
E disse o nome dela e o dele. E foram felizes para sempre...





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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A CRIANÇA MORTA (Crônica)

A CRIANÇA MORTA

                                   Rangel Alves da Costa*


Em texto anterior teci algumas considerações sobre a força expressiva contida na pintura A Menina Doente, de Edvard Munch, ressaltando a utilização de cores sombrias, em certos momentos quase enegrecidas, para tratar sobre a dor e o sofrimento de uma mãe ao lado de sua filha gravemente enferma.
Não por sequência ou busca de aprimoramento do antes analisado, mas hoje me volto para uma situação muito parecida com a descrita por Munch, porém agora sob outras vertentes expressivas e com uma motivação artística ainda mais forte, pois cuidarei do que me representa o quadro Criança Morta, de autoria de Portinari.
Criança Morta é um óleo sobre tela de 1944, da Série Retirantes, do paulista de Brodowski Cândido Portinari. Talvez não se faça necessário resumir o que continua representando a obra desse genial pintor na arte plástica brasileira e mundial. Por mais que a maioria do povo tupiniquim insista em desconhecer ou desvalorizar a arte, a cultura e a tradição, dificilmente alguém diria não conhecer ao menos alguma pintura portinariana.
Contudo, pessoas existem que jamais ouviram falar no pintor e, no entanto, ainda hoje representam os modelos vivos que um dia foram retratados. A Série Retirantes não pode ser tida apenas como uma contextualização artística, mas sim como um cenário onde se pode avistar pessoas tão conhecidas de todos, paisagens que ainda hoje continuam as mesmas, gestos e feições que infelizmente ainda não mudaram. Como o próprio artista afirmou: “Os retirantes vêm vindo com troxas e embrulhos. Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos. Doloridos como fagulhas de carvão aceso”.
E isto porque a Série Retirantes é uma fotografia dolorosamente fria, contundente, realística do Nordeste brasileiro, dos sertanejos que padecem pelas longas estiagens, das secas inclementes que assolam as terras áridas, da magrez estampada na pele, nos ossos sobressaindo na cara e até nos olhos. Num fundo cinzento e feio, pois não há como expressar noutras cores a feiúra da morte, da miséria extrema, do desalento e desencantamento, está o sertão e o seu povo, o destino, o caminho sem esperança do nordestino tangido pelas desventuras do tempo.
Quem nunca foi ao sertão, quem não conhece como é a vida por lá em época de sequidão, até que pode dizer que ali está apenas uma visão metafórica do artista sobre o sofrimento. Será? Ainda hoje, por mais que as bolsas famílias da vida queiram disfarçar realidades, encontra-se a menina morta nos braços da mãe que, ao lado de parte da família, é apenas mais uma lágrima escorrida. Isso mesmo, Criança Morta, a mesma criança desfalecida da pintura, ainda pode ser encontrada nas veredas sertanejas.
E na tela se vê a terra marrom-avermelhada, cor do massapé sertanejo, a mãe esquálida pranteando a criança morta que se estende em seus braços, uma figura entristecida um pouco mais atrás, que pode ser do pai ou avó, certamente martirizando-se pela impotência diante da situação, os irmãos aflitos e de olhos espanando as dores do sofrimento. A mãe, desesperadamente curvada sobre a criancinha, não mostra a face nem a feição de tristeza. Mas precisaria? Ao fundo avista-se um plano enegrecido, uma paisagem escurecida que não é de nuvem carregada, mas do sofrimento que se alonga em tudo.
Analisando a pintura portinariana, assim se expressou Larissa Gusmão Seixas (“A criança morta” - http://lgseixas.wordpress.com/2009/10/08/a-crianca-morta/): “(...) O quadro, como muitas outras obras do criador, tem um ar melancólico e retrata a morte de uma criança esquálida nos braços da sua família que chora por sua perda. Quase todos os personagens da obra estão com os olhos cheios de água, os pais da criança têm as cabeças e os ombros baixos – como se derrotados, a irmã mais velha tem um lenço na cabeça e a mais nova segura a cabeça do moribundo. Apenas o filho caçula não chora, por não ter idade suficiente para entender a morte. A cena acontece num crepúsculo e são utilizadas cores frias, acentuando a tristeza da ocasião. No local nada mais existe além da família e uma galinha semi-viva. Eles estão no meio de um deserto, há apenas um horizonte de terra seca e pedregulhos. Um lugar onde não se tem a mínima condição de sobrevivência. A família é exemplo de uma vida de miséria no sertão brasileiro. É impossível não se sentir sensibilizado com a imagem, pois além de a pobreza da família ser completamente visível – todos estão com as vestes sujas, descalços e subnutridos, eles possuem um semblante entristecedor de pessoas esquecidas pelo mundo, que passam necessidade sem nenhuma intervenção externa”.
Tem razão a resenhista, pois a primeira ideia que se tem ao se visualizar a tela é a de uma dor desmedida. Aos olhos de quem apenas imagina tanta dor e aflição, felizmente haverá o alento de se ter aquilo apenas como uma pintura. E sendo arte, talvez o artista pudesse fazer a criança renascer em outra tela. Contudo, e se os olhos que enxergam a tela são os mesmos que já avistaram, pisaram, sentiram aquela paisagem de perto e, de certa forma, também já choraram pela morte de uma desvalida criança sertaneja, não haverá como não dizer que na  tela está realidade e na vida estão as pinturas e desenhos sem artista.
Sou daquele mesmo sertão nordestino retratado pelo artista, caminhei pelos seus caminhos e avistei cenários de morte. Não vi famílias carregando seus mortos pelas estradas, mas vi a morte rondando tudo, vi o depauperamento por trás de cada perto e janela; ouvi o choro de crianças. E depois não ouvi mais nada. Será? Não voltei no dia seguinte pela mesma estrada.



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Milagres terrenos (Poesia)

Milagres terrenos



Meu grandioso Deus
resguarda-me na precisão
ampara-me na decisão
noutro estágio da devoção
pois no mundo terreno
sou dono do imenso poder
de fazer grandes milagres
sem me fechar em igrejas
me ajoelhar pelos cantos
sem jurar o que não farei
bastando simplesmente
lembrar da missão humana
sobre a terra e a vida
trazer na pura consciência
e no pensamento cristão
que tudo que se faça de bom
no mundo tomado por maldade
cercado pela vil desumanidade
será um imenso milagre
coisas estranhamente simples
como o milagre do amor verdadeiro
o milagre de perdoar o próximo
o milagre de se reconhecer humano
e por isso piedosamente ser
o maior milagre da vida.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A VOZ DO VENTO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A VOZ DO VENTO

                                     Rangel Alves da Costa*


Conto o que me contaram...
Dizem que num lugar bem distante, uma aldeia aonde ninguém chegava ou saía, o linguajar do povo era tão resumido que nenhuma palavra nova era falada, inventada ou ouvida há mais de quinhentos anos.
Aquele humilde povo parecia acostumado demais apenas com o “bom dia”, “com licença”, “por favor”, muito obrigado”, “que Deus lhe abençoe”, “que a paz esteja convosco”. Quando muito se falava em “tarde de missa celebrada por anjos”, “noite de ninar boneca de pano”, “um manjar das frutas do pomar do Senhor”.
Todo mundo sabia o que era amor, amar, querer, paixão, namoro, tristeza, angústia, solidão, dor, alegria, felicidade, abandono, porém todo mundo vivia silenciosamente tais sentimentos. Não precisava falar nada a ninguém, pois cada um já entendia o outro pela feição e pelo olhar.
Mas uma tarde dessas revoada, eis que desponta um menino correndo pela ruazinha da aldeia, gritando euforicamente, com gestos esvoaçantes que pareciam coisa do outro mundo. O velho pescador correu para junto dele, a velha rezadeira quase se ajoelha a seus pés, a beata começou a se benzer dizendo que enfim ouviria a voz da inocência.
Com todos eufóricos para saber o que se passava, o que ele tinha visto para estar desse jeito, o garotinho apenas apontou para os lados do alto da montanha e disse que tinha ouvido a voz do vento. E disse mais: “Quem estiver achando que é minha mentira pode ir lá em cima da montanha e ouvir a voz do vento”.
Espantados, todos perguntaram o que o vento havia dito. Então ele disse que havia sido uma coisa muito importante, mas que não diria não, pois quem quisesse ouvir tais palavras que fosse lá onde ele estava.
O padre foi e voltou ainda mais tomado de religiosidade; a beata retornou chorando de se acabar; a mocinha linda mostrava a face mais rosada que havia; o doidinho de pedra chegou atirando folha seca no ar; o velho pescador mostrava um largo sorriso no rosto.
Assim que retornaram, o menino chamou-os na beira do rio e perguntou a cada um o quais as palavras ouvidas. Mas o estranho é que ninguém sabia realmente expressar o que tinha ouvido. Então o padre propôs que o menino dissesse o que tinha escutado pra ver se coincidia com o que os outros pensavam em dizer e não conseguiam.
Então o menino disse: “Ora, o vento soprando diz a palavra que eu quero ouvir. Como não tem voz, ouço o que quero na minha mente. O senhor, padre, por exemplo, veio de espírito elevado porque ouviu a voz de Deus, não foi mesmo?”.



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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

INIMIGAS DE FOGO A SANGUE (Crônica)

INIMIGAS DE FOGO A SANGUE

                                                 Rangel Alves da Costa*


As duas nasceram na mesma cidadezinha, brincaram e cresceram juntas, e por isso mesmo ninguém era doido falar mal de uma pra outra não defendê-la, atacando e logo chamando a ofensora de mentirosa, salafrária, safada. Se falasse da amiga, se preparasse para ouvir.
Assim, era uma amizade que parecia eterna, com ninguém dessa terra que conseguisse separá-las. Mas conseguiram. Por uma verdadeira besteira, mas conseguiram. E não foi gente não, mas apenas um sonho. Um sonho mesmo, desses que as pessoas adormecem e têm de vez em quando.
Fato é que o tempo passava e nada de nenhuma das duas conseguir namorado. A situação já estava ficando tão preocupante que chegavam a acender velas para todos os santos, fazer promessas para o santo casamenteiro, que é Santo Antonio, e não perder uma tarde sentadas na praça, de livrinho qualquer na mão, mas com os olhos passeando em busca de solitários, e muitas vezes nem tanto.
As táticas que passaram a usar eram realmente inusitadas. Enquanto uma escrevia versos apaixonados e pagava a um garotinho para entregá-los ao pretendido, a outra fazia compotas e mais compotas de doces, colocando-os em pequenos vasilhames e enviando como presentes despretensiosos para os moços bonitos.
E não somente isso, pois uma achou de quase todo mês fazer aniversário – e sempre com uma idade bem abaixo da que tinha – e mandar convite apenas para que um escolhido desse a honra de comparecer à sua casa para tomar um licor e apreciar quitutes especialmente preparados pelas mãos de fada.
Já a outra inventou de pagar a uma vizinha fofoqueira para que ficasse espalhando pela cidade que ela estava namorando com esse ou aquele. A intenção era que alguma dessas mentiras se tornasse verdade. E só mandava inventar a tal história com homem bonito.
Mas não foi nada disso que conseguiu abalar a amizade das duas, que continuava firme na dor da solteirice, na desilusão amorosa e no coração solitário. Como já afirmado, o que causou a desavença toda foi um sonho. Melhor dizendo, os sonhos, pois o sonho de cada uma quase provoca uma terceira guerra mundial.
Tudo começou quando uma, logo ao amanhecer, foi até a casa da outra contar sobre um sonho maravilhoso que tivera, e segundo o seu livreto de desvendamento de quimeras, só poderia ser sinal de que um grande e verdadeiro amor estaria batendo à porta. E disse que havia sonhado com um homem lindo, alto, moreno, musculoso, de olhos azuis.
E foi quando a outra perguntou se o tal homem do sonho era solteiro, pois também havia sonhado com um homem lindo, alto, louro, todo malhado e ainda por cima solteiro. E disse que o seu livrinho indicava amor na certa e pra casamento, pois o rapaz do sonho era solteiro. E o da outra não...
Despediram-se já um pouco diferentes, um tanto enraivecidas. E no dia seguinte, mais cedo ainda, a sonhadora retornou à casa da agora quase desafeta para dizer que o mesmo sonho tinha vindo novamente só pra dizer que o rapaz era solteiro e que estava apaixonado por uma moça com o mesmo nome dela. Mandou um beijo no sonho e até tentou soprar calor no seu cangote.
E por que a ex-amiga foi dizer isso? No mesmo instante a outra retrucou e disse que sonho que valia era o dela porque já vinha com o nome do rapaz e tudo, como tinha acontecido naquela madrugada, e que no próximo sonhar ele já ia marcar um encontro mais íntimo. E depois, para total espanto, chamou a outra de falsificadora de sonhos e de mulher pesadelo.
O tempo fechou de uma forma que foi preciso vizinhos acorrendo para evitar o pior. Uma chamava a outra de lambisgóia, tribufú e bacalhau seco; enquanto a outra esculhambava chamando de moça velha desesperada, tacho sem fundo e rampeira. E muito mais coisas impublicáveis, cabeludas mesmas.
Desse dia em diante nem na porta de uma a outra passava. Mas coitadas, nem uma nem outra conseguia um sonho sequer, pois passava a noite inteirinha com a insônia própria das que ficam se abanando de um lado para o outro tentando baixar o fogo da solteirice e da encalhação.




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