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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 80

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 80

                                          Rangel Alves da Costa*


Desde que havia chegado ao tribunal para receber a investidura maior, o futuro desembargador, que já vinha se sentindo perseguido e fustigado por forças ocultas, se viu ainda mais tomado de temores, pavores e outros medos. Eis que tinha certeza que estavam lhe seguindo, tentando distorcer seu pensamento, interferir negativamente nas suas ações.
Por baixo das vestimentas talares, suntuosos paramentos e outras insígnias mais da judicatura, levava um colar pendurado cheio de quinquilharias da lavra de um pai de santo famoso no metiê dos endinheirados. Num bolso um punhado de areia que adquiriu por uma fortuna pensando que era mesmo originária da terra santa; no outro um vidrinho das águas do Rio Jordão, que na verdade era de goteira de chuva. Havia esquecido de levar um rosário ou crucifixo, mas não esqueceu da arma automática pequenina que não tirava da cintura.
Desse modo, fazendo de um tudo para deixar de ser perseguido por aquela força estranha e misteriosa, assim que o orador terminou sua saudação e convidou-o a fazer uso da palavra, o homem se dirigiu ao local, e ao segurar o microfone ouviu ao seu lado uma voz dizendo que não se esquecesse de nada. Olhou, como não viu ninguém, temeu por tudo na vida, mas buscou encorajamento para seguir em frente.
E dizendo dentre outras coisas sobre o quanto estava gratificado pelo reconhecimento daqueles ilustres desembargadores indicando-o por merecimento na investidura daquela máxima e dignificante missão, e que faria o possível para levar ao tribunal toda a sua experiência adquirida ao longo de muitos anos na magistratura. Tencionava conseguir tal intento por sempre ter honrado com galhardia o mister que lhe fora divinamente confiado. No objetivo maior de fazer máxima justiça nos seus julgamentos, sempre se pautou pela ética, pela responsabilidade, pela honradez e probidade, pelo respeito às partes. E isto porque sempre teve por base a premissa de que o juiz, ao ter a nobre função de instruir e julgar as causas que lhe foram entregues deve fazê-lo de forma a engrandecer, dignificar a Justiça, e não diminuí-la, desacreditá-la. Neste sentido é que sempre procurou agir com imparcialidade, eqüidistante dos interesses da contenda, tratando os atos processuais com isenção de ânimo para decidir e visando à necessária paz social. E, acima de tudo, mantendo sempre uma conduta ética, conforme a moral pública, sem deslizes que pudessem macular a sua toga.
Olhando para o público, sentindo-se um tanto quanto envergonhado pela certeza que a maioria dos presentes estava se esforçando o máximo para não sorrir, zombar, gracejar do que dizia. Até ele mesmo sabia ser tudo mentira. Começou a vermelhar e a perder o controle do que queria dizer quando a voz soprou-lhe novamente dizendo que agora deixasse de embuste e conversa fiada e dissesse logo a verdade.
E então, já fora de si, o ilustre desembargador prosseguiu:
“A honra que me eleva e orgulha é a mesma honra que caracteriza esse judiciário, envolvendo todos os seus membros, desde os desembargadores aos magistrados. Sou o espelho disso tudo e como tal digo, sem medo de errar, que tudo isso aqui é um mar de lama, um poço de corrupção, um balde de justiça infecta e contagiosa. É, em tudo, a mais pura injustiça. Atire a primeira pedra um togado ou de beca que já não tenha se corrompido, vendido sua alma ao diabo por uma moeda podre, vendido sentença por uma ninharia. Digo ninharia porque milhões não representam nada nesse comércio nojento que é feito aqui dentro, nos fóruns, nas varas, nos gabinetes, nos estacionamentos, nos escondidos. Sou corrupto ao extremo, vendi sentenças, fiz inocente ser condenado, mudei o direito a meu bel-prazer, fiz as coisas mais abomináveis utilizando-se das prerrogativas e das competências da minha função. Fiz lá onde atuei e continuarei fazendo aqui também, pois a maioria desses que fazem esta corte e as demais de primeiro grau não passa de aproveitadores, comerciantes do direito dos outros, verdadeiros larápios agindo em nome da lei...”
O espanto dos presentes era tamanho diante do que o homem dizia que todos se olhavam abismados, boquiabertos, sem saber o que dizer e nem compreender nada do que se passava. Desembargador futucava desembargador, juiz dava beliscão em juiz, um olha para o outro cheio de constrangimento e espanto, e quem era de cor clara ficou vermelho, quem era escuro amarelou, que era moreno claro começou a suar frio e a tremer. Mas o ilustre desembargador continuava:
“Aqui, dentre todos que estão presentes, seria fácil apontar no dedo quem é honesto e quem é corrupto, quem é honrado e quem é ladrão, quem vive à custa do esforço do trabalho e quem vive das maracutaias e desonestidades. Daqui a pouco vou começar a dar nome aos bois...”.
E nesse instante foi gente saindo de fininho, baixando a cabeça e quase fugindo de cócoras do lugar. Ninguém sorria ou mostrava aspecto normal, mas apenas um desespero desenfreado, um medo terrível, uma dor de barriga medonha. Próximo ao orador, no alto da tribuna, o corregedor, que já havia praticamente se desfeito das vestes diante de tanto comichão que sentia, beliscou no braço do presidente e disse-lhe alguma coisa urgente ao ouvido. O velho homem, que já não suportava tanta aflição, levantou o braço em direção a um ponto ao fundo do auditório.
Enquanto a segurança se preparava para se dirigir por trás até a tribuna, o ilustre homem dizia suas últimas palavras:
“Saibam todos que aqui nesse tribunal nunca houve nem jamais haverá santo. O mais honrado certamente se desonra por acobertar o que sabe dos seus colegas. Não somente aqui como em todo lugar, nos fóruns, nos palácios, nas tribunas. Aqui, por exemplo, o safado do desembargador...”.
Não conseguiu dizer o resto porque o corregedor deu um pulo e tapou-lhe a boca com a mão, enquanto o velho presidente gritava para que os homens da segurança segurassem o homem, amordaçassem se fosse preciso e o retirasse ele dali. Mas quando este viu os homens se aproximando sacou da arma e deu um tiro para o alto.
Quem desmaiou somente depois sentiria na pele a enxurrada de gente gritando desesperada, correndo sem direção, empurrando um ao outro, passando por cima de tudo e principalmente de quem havia caído. Num instante, em menos de dois minutos, o auditório estava quase esvaziado, ouvindo-se somente os gritos alucinados mais adiante nas outras dependências.
O velho presidente do tribunal, ao lado do esbaforido corregedor, foi encontrado desmaiado debaixo da bancada de mármore. Enquanto isso o ilustre quase-desembargador se debatia convulsivamente amarrado pelas mãos e pelos pés, já estando também devidamente com a boca lacrada por esparadrapo. Estava completamente enlouquecido.

                                                   continua...







Poeta e cronista
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