SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de outubro de 2017

A PONTE E A VIDA


*Rangel Alves da Costa


A ponte, essa travessia de lado a outro, é a própria vida na sua travessia. Mais que uma analogia, a certeza de que sempre estamos de passagem para algum lugar, de um ponto a outro destino.
Sei que há uma ponte mais adiante ou em qualquer lugar. E ela me espera passar. Há um início e um fim. E uma ponte a divisar. E ela me espera passar. Por que o passo há de seguir na sua direção.
Uma ponte no outro lado do passo, no outro lado do olhar. E ela sempre espera alguém a passar. Não há como voar, cortar caminho ou reinventar o destino quando a ponte foi colocada adiante como única saída.
Não há como voltar atrás perante o destino dado. Assim como o relógio, assim como o calendário, assim como o tempo e o vento, a bússola da existência sempre aponta a ponte como o destino de algum instante. De repente ou depois.
Pensamos viver em terra firme, assentando o passo como donos do mundo, sem a verdade sobre a ponte despertar. Mas ela está diante de todos. E ela me espera passar.
A quem foi dado destino de estar do lado de cá, outro destino lhe aguarda do lado de cá. A única certeza da vida é a existência da ponte. E ela me espera passar.
Vaidades, egoísmos, arrogâncias, soberbas e ostentações pesam demais sobre a ponte. Somente o ser despido em maldade consegue atravessar. E talvez ela me deixe passar.
Não adianta fazer rodeios, fugir, outros caminhos buscar. A ponte existe como um caminho do homem, destino que jamais poderá mudar. E ela me espera passar.
Não conheço a largura nem a extensão, se de madeira ou cimento, se envolta em névoa ou na claridade do sol, mas sei que ela está lá. E ela me espera passar.
A ponte no passo, no caminho, na direção. Ninguém se eterniza onde está, eis que tem de seguir adiante, e a ponte não pode esperar. E ela me espera passar.
Há dois lados separando a ponte, um onde estou agora e outro mais ao longe, aonde terei de chegar. É o outro lado que terei de alcançar. E a ponte me espera passar.
Em tudo há uma ponte, um limite que deve ser ultrapassado. Depois da tristeza o caminho da alegria, depois da solidão alguém encontrar. E a ponte me espera passar.
Mas a ponte não separa apenas a vida da morte, pois também significa vencer as aflições de agora. Vence-se a agonia para o sorriso chegar. E ela me espera passar.
Os objetivos na vida são apenas passos em direção à ponte. Todos se esforçam para vencer os desafios e dificuldades e logo a ela chegar. E ela me espera passar.
O homem vive além-fronteiras. Mas sabe que também pertence ao lado de lá, onde ainda não esteve mas breve estará, após a ponte ultrapassar. E ela me espera passar.
Difícil é ter a certeza da ponte e que dela não se pode fugir, mas ainda assim ter de esperar no lado que está até o instante que ela chamar. E a ponte me espera passar.
Dizem que há um rio debaixo da ponte, dizem também que há um mar. Talvez apenas água corrente para o barco passar. E acima dela todo caminhar. E a ponte me espera passar.
Na ponte está a folha em branco, a página limpa, o papel esquecido. Ninguém chega à ponte permanecendo com a escrita de cá. E ela me espera passar.
Os olhos molhados de lágrima se tornam brilhosos após a ponte. A tristeza, a angústia e desilusão, tornam-se contentamento após o seu limiar. E a ponte me espera passar.
E assim acontece porque a ponte também significa transformação. Ninguém quer ultrapassar a ponte para continuar como está. E ela me espera passar.
Ninguém deseja transformação sem que a mudança seja com boa feição. E dificilmente as coisas mudam continuando no mesmo lugar. E a ponte me espera passar.
A semente lançada é fruto após a ponte. Depois da ponte o outono é primavera. As flores murchas e entristecidas logo começam a brilhar. E a ponte me espera passar.
Difícil de ser avistada, mas a ponte sempre está ao redor. Tantas vezes o homem se aproxima dela se ao menos notar, sem nada desconfiar. Mas ela me espera passar.
O ser humano chega a terra através de uma ponte e também por uma ponte irá retornar. O homem vive e ela permanece a esperar. E ela me espera passar.
A existência é passagem, e não há outro caminho a seguir senão através da ponte. E a vida permite que o chamado da ponte possa se demorar. E ela há de me esperar pra passar.
Não tenho pressa de nada, não corro para desejos alcançar, não dou um passo além nem para amar. Daqui avisto a ponte. Um dia caminharei e até ela chegarei para a travessia. E todos terão o mesmo destino, pela mesma ponte.


Escritor
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Lá no meu sertão...


A linda Bonsucesso, povoação ribeirinha em Poço Redondo, sertão sergipano


Mistérios do amor (Poesia)


Mistérios do amor


Mistério é o amor
que o destino faz amar
quando jamais despertou

misterioso esse amor
que num instante o olhar
reconhece o que desejou

misterioso mistério
se o amor maior do mundo
surge amado num segundo

mistérios de um destino
cujo amor jamais revelado
desperta no peito enamorado.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - sou parente de cangaceiro, e daí?


*Rangel Alves da Costa


Sou parente de cangaceiro, e daí? Minha avó Emeliana era irmã - por parte de pai e de mãe, como se diz no sertão - de Manoel Marques da Silva, mais tarde apelidado como Zabelê no bando de Lampião. Manoel Marques, o Zabelê, era filho de Antônio Marques da Silva e Maria Madalena de Santana, a Mãe Véia. Tio materno de meu pai Alcino Alves Costa era, pois, meu tio-avô. Rapazote ainda, quase na idade de menino, influenciado pelas andanças do bando do Capitão pela região de Poço Redondo, no sertão sergipano, eis que um dia decidiu seguir no rastro dos homens do sol, da lua e da catingueira. Abandonou a família para nunca mais retornar ao lar, ainda que muito andasse em séquito pela região e redondezas. Estava presente na Gruta do Angico quando Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram chacinados perla volante alagoana comandada pelo tenente João Bezerra, porém saiu ileso. Mas desse dia em diante ninguém mais teve notícia de seu paradeiro. Com o nome de pássaro, pois Zabelê é nome de bicho que voa, talvez tivesse voado para uma desconhecida distância. Durante muitos anos seus familiares entrecortaram regiões do país no seu encalço, em busca de seu paradeiro, mas sem jamais reencontrá-lo. Voou, Zabelê voou. Arribou para sempre e nunca mais retornou. Hoje é pássaro somente na história e na recordação. Deixou apenas um irmão e muitas irmãs, dentre as quais minhas tias Mariquinha, Osana, Cordélia, Mãezinha, Conceição e Rosinha, todas já falecidas. Seus parentes de hoje formam um Poço Redondo inteiro.


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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

A LUA DE AGORA


*Rangel Alves da Costa


A lua de agora, noite se segunda-feira, está um tanto escondida perante a noite nublada. Mas ao meu olhar ela está sempre cheia, imensa, belíssima e misteriosa. E também perigosa, segundo os crentes nas interferências lunares.
Creio na magia da lua cheia, no seu imenso poder de atrair, envolver, transformar. Basta um simples olhar para a sua face e algo misterioso surge diante do olhar. E também na mente.
No ser humano, é a mente que mais sofre influência da lua cheia. Como é a mente que irradia todas as forças e propensões pelo corpo, então todo o ser passa a ser submetido ao poder daquela luz imensa.
Tento avistá-la apenas na sua beleza, na sua luminosidade indescritível. E trago tal grandeza para o romantismo que aflora, para a nostalgia que ressurge, para a poesia do instante.
Eis que, indubitavelmente, a lua cheia faz o amante ficar propenso a mais amar, o saudoso a entristecer ainda mais, o poeta a encontrar versos jamais imaginados em outras fases lunares.
Eis que a lua cheia desperta a emoção, sentimentalismo, reencontro. Ninguém é capaz de mirar tamanha esfera dourada e se fazer de forte ou de alheio ao que ela forçosamente transmite.
Eis que ninguém consegue simplesmente mirar a lua cheia e depois retornar o olhar sem trazer na íris todo um mistério indecifrável, toda uma força que poderosamente age pelas entranhas adentro.
Nesta noite não pude, pois numa cidade sem campo aberto ao redor, mas gostaria de ter esperado essa lua do alto duma montanha ou em cima de uma pedra grande. E abrir os braços e erguê-los para o alto como se desejasse abraçar toda a luz.
E conversar com a lua cheia, dialogar com seus segredos e mistérios, me confessar escravizado diante do poder de sua luz. E somente assim conseguir sair de lá sem me deixar levar por aquele clarão. E subir e subir, ou descer e descer...
Fico imaginando quanta ação dessa lua perante homens, animais, águas e todos os elementos da terra. Tenho a máxima certeza que não há um só elemento sobre a terra, um só grão de areia, que naquele momento não estivesse sendo afetado pela força e poder da lua cheia.
Os loucos, coitados, mais enlouquecidos ainda, transtornados e transformados, envoltos no dilema de querer subir a qualquer custo até alcançar o imenso anel. E assim porque atraídos para o amor da lua, para a paixão da lua, para o inexplicável da lua.
Os loucos, pobres coitados, tentando a todo custo fugir daquela luz chamejante, buscando se esconder para não ter de mirar aquilo que se alastra para ferir, machucar, dilacerar a alma.
Mas não consegue, pois nada consegue se esconder ou fugir da lua cheia. Os loucos se amarram a objetos, trancam portas e janelas, correm para esconderijos, mas nada disso surte qualquer efeito. E de repente já estão do lado de fora, com as mãos sobre a cabeça, gritando, já sem forças para evitar que ela os chame ao alto.
Sob o clarão do luar, os apaixonados se ajoelham, os amantes se tornam vorazes, as inocências só pensam em pecar, os pecados afogueiam os corpos, os copos são transbordados, os seres se entregam sem medo.
Nas distâncias das águas os barcos e velas naufragam com a força das ondas, com os movimentos revoltosos dos azuis. Os cais são povoados por seres estranhos, de pessoas que vagueiam perdidas, e todas desejosas de ir beber da luz do luar sobre as águas.
E eu nem sabia mais o que fazer. A noite tão bela, a lua tão cheia, a lua chamando, e fui. Segui até a janela para novamente voltar o olhar para o alto e ver se na lua avistava o eu poeta que já havia sido chamado. E tive que reencontrá-lo lá em cima.


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Lá no meu sertão...


Velho Chico: um rio em minha vida




Voar (Poesia)


Voar


Estou triste sim
estou agoniado
estou desesperado
mas não vou cair
tenho que voar
tenho que seguir
tenho que chegar
mais alto voar

fadiga do tempo
cansaço dos dias
uma dor imensa
terrível aflição
mas não vou cair
tenho que voar
minha paz alcançar
voar e mais voar

não me olhe assim
você me empurrou
mas eu não cai
e já voando segui
para o meu destino
enquanto você fica
no reles do chão
sem ter mais perdão.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - caminho de volta



*Rangel Alves da Costa


Ela disse não e partiu então. Mas já na estrada a saudade danada. Lembrou o beijo e teve desejo. Lembrou o abraço e quis o meu braço. Lembrou o carinho e quis mais um tiquinho. E lembrou-se de nós debaixo dos lençóis. E se fez com asa e voltou pra casa. Do umbral da janela avistei flor mais bela. Com sede chegou e logo me beijou. Não pedi seu perdão e sim seu coração. Com saudade voltou e junto a mim ficou. Na pele a flor, na flor todo o amor. Que venha a lua e depois o sol, a paz da manhã e seu arrebol. Sempre será minha a minha caboclinha. Veio até onde estou e sorriso espalhou. Agora está aqui cheirando a sapoti. E comigo vai ficar cheirando a araçá.


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domingo, 29 de outubro de 2017

NA HORA DA FÉ MAIOR


*Rangel Alves da Costa


Sertão. O sol já arribou de vez. Sua última labareda avermelhada acabou de abrasar. O pôr do sol já se pôs com seu ninho e tudo. Os horizontes já não estão mais pincelados de fogo e vermelhidão. Agora tudo cinzas e sombras. Tudo amarronzado e nuvioso. É boca da noite.
Boca da noite que no sertão principia o verdadeiro anoitecer. É a partir da boca da noite que chega a escuridão, que faz toda a paisagem se alongar em cores negras, mas que logo serão tingidas pelo dourado da lua.
Um chamado à lua que já desponta faceira. Chega distante, pequenina, devagar, para logo engrandecer como as paisagens sertanejas ao silêncio do anoitecer. Lua imensa, brilhosa, bonita, uma festa lá em riba, uma festa por onde avança sua singela luminosidade.
Não há mais cacarejo de galinha, não há galo azucrinando a vida no poleiro. As festas de quintal e cantos de cerca já cessaram de acontecer. O cachorro repousa num canto. Pela janela aberta o frescor do instante vai ameaçando apagar o candeeiro.
Candeeiro de pouco gás, fumaça escurecida saindo do bico enferrujado, também pouca luz, por isso a porta aberta para a lua entrar com São Jorge e tudo. Mas não há lua maior, não há brilho maior, não há chama maior, que a luz da vela acesa.
Assim que o sino da igreja da memória ecoa - pois há na memória um relógio que nunca se esquece de badalar - eis o instante de Mariazinha caminhar em direção ao seu canto de parede e aí, aos pés do velho oratório, se ajoelhar para a oração de todo dia.
Canto de parede da sala de cipó e barro ou no cantinho do pequeno quarto de dormir, sempre um velho oratório por cima de mesinha rústica ou mesmo tronco de madeira já carcomido de tempo. Aí colocado o céu, a casa de Deus, o portal da salvação de um povo.
Oratórios ainda continuam de maior abnegação religiosa. Atualmente não, mas noutros idos não havia casa que se prezasse que não tivesse uma igrejinha de madeira, de portas e lados envidraçados, guarnecida de santos, fitas e lembranças religiosas, o oratório.
Entre aqueles de fé maior, o oratório constitui verdadeiro templo sagrado, uma moradia santa na vida terrena, um altar para santos e anjos em meio ao lar familiar, um pedestal de madeira onde Deus possui seu trono perante o frágil humano.
Assim, em determinados instantes do dia, principalmente ao alvorecer e ao anoitecer, mas também ao meio-dia, dirigir-se ao oratório e perante ele se ajoelhar é como estar numa igreja, é como estar ao portal do céu, é como estar perante os sagrados mistérios.
Mariazinha, de raiz fincada no beatismo, na devoção religiosa maior, também possuía o seu céu ali num cantinho do quarto pobre de sua humilde moradia. Oratório herdado de sua mãe, e a esta chegado desde sua avó. Naquele pequeno céu a sua relíquia maior.
Céu de madeira e antigas imagens sacras que todo santo dia recebia a visita de Mariazinha. Não saía do quarto ao alvorecer sem antes se ajoelhar aos seus pés, fazer as costumeiras orações, pedir por si mesma e pelos seus, agradecer os préstimos recebidos.
Mas nada igual à visita que fazia quando a boca da noite chegava, depois que o sino da memória anunciasse a hora sagrada, a Ave Maria sertaneja, o ponteiro das seis horas da noite. Era como se a partir desse instante seus passos já não soubessem ir a outro lugar senão perante o altar de seu oratório.
Mariazinha não arreda nunca deste encontro sagrado. Corre de onde estiver para não perder seu mistério de fé. Nada que estiver no fogo de lenha consegue impedir que aquele instante seja mais importante do que tudo na vida. Que queime o toucinho, não o desejo da sagrada presença.
Segue, vai, corre, mas de repente já está dentro do quarto, ajoelhada, contrita, com as mãos entrelaçadas junto ao peito, olhos fechados e boca sussurrando palavras de fé, de repente, ao abrir os olhos, diante de si a face de Deus. Sim, a face de Deus na luz da vela acesa.
Mistério maior dos maiores mistérios. Em toda vela acesa pode ser avistada a face de Deus. Não que o olhar humano assim consiga avistar, mas pelo que os corações humanos conseguem avistar. A face de Deus somente avistada pela inabalável fé através dos olhos do coração.
Mãos que seguram rosários, terços, relicários. Bocas que silenciam e que gritam em silêncio, que apenas sussurram ou dizem as rezas, as orações, os rogos, os pedidos. Mas somente o coração consegue avistar a face de Deus perante a vela chamejante da fé.
Uma face sagrada que é assim avistada por que a fé e a devoção chamam o Senhor para além do olhar, para bem juntinho do coração!


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Lá no meu sertão...


Eu



Com você (Poesia)


Com você

Sem você
quem sou?

já me perguntei
e não respondi

com você
o que sou?

não me perguntei
por que já respondi

mas sem você
o silêncio da dor

que só cura e sara
se você meu amor.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – Sabryna voltou!


*Rangel Alves da Costa


Nos últimos dias, nas redes sociais e nos grupos de discussões e bate-papos, um dos assuntos mais comentados era sobre o sumiço de Sabryna. Desaparecida acerca de uma semana da casa de seus pais no Bairro São José, em Poço Redondo, acabou provocando um enxame de busca de notícias e informações. Postagem com foto sua, perguntas se alguém havia avistado e bela jovem. E de repente as respostas às indagações começaram a ficar desencontradas, causando um alvoroço ainda maior. Uns diziam que ela havia sido avistada numa ou noutra cidade interiorana, outros diziam que ela havia sido vista na própria cidade de Poço Redondo, uns dizendo que ela já havia sido encontrada e já retornado, e ainda outros afirmando que ela tinha sido vista subindo em ônibus às escondidas. Mas a verdade é que Sabryna estava sumida mesma. Aonde ninguém sabia. Nem seus parentes nem seus amigos. Quais os motivos do sumiço de Sabryna, o que a levou a repentinamente desaparecer sem nada dizer, o que fez com que ela tomasse tal decisão? Ninguém sabe. Somente ela. E talvez não interessasse mesmo a ninguém saber. As pessoas têm problemas e procuram fugas. As pessoas de repente querem sumir por alguns dias. As pessoas podem possuir razões mais que suficientes para se ausentar do seio familiar. As pessoas às vezes tomam atitudes inexplicáveis. E somente Sabryna sabe o que a levou a agir assim. Mas ela retornou, Sabrina já está em Poço Redondo e ao lado de sua família. Ou não? Responda Sabryna. Ou não. Você tem todo direito de ficar calada. Somente você se conhece, somente você para conhecer o seu próprio íntimo, suas angústias ou aflições. Mas tenha certeza de uma coisa: sua família chorou, seus amigos choraram. Então, diga: por que fez isso, Sabryna?

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sábado, 28 de outubro de 2017

VÍBORA DO RABO SAFADO


*Rangel Alves da Costa


A pior espécie das peçonhentas, certamente assim ela é. Víbora astuta, venenosa, traiçoeira, vil, ardilosa, a pior espécie de cobra ruim. E também uma serpente vulgar, safada, prostituta, de rabo sempre pronto a ser cortejado. Para depois envenenar e dizimar sua presa.
Como é própria de toda cobra ruim, de toda víbora perigosa e peçonhenta, sempre se mostra a mais afável, a mais inocente, a mais pura do mundo. Mas em tudo o jogo da artimanha e ludibriação, em cada gesto sedutor apenas a expectativa para dar o golpe certeiro e fatal.
Comparando os reinos animais. Acaso mulher, a víbora seria uma deslavada e barata prostituta, acaso travestida de gente a serpente seria a perfeição da falsidade, da traição e da desonestidade, acaso vestida em pele humana e feminina a peçonhenta seria aquela vagabunda cujo maior prazer na vida é atrair para sugar aquilo que lhe interessa como vítima.
Cobra ruim por que age em surdina, na espreita, pelos escondidos. Cobra da pior espécie por que se reveste de animal inofensivo para atrair sua vítima e depois ferir o calcanhar e a vida. Cobra maléfica por que quando mais veneno produz mais vai resguardando para soltar aos pouquinhos assim que alcança o calcanhar desejado.
Cobra da perdição por que depois que seu olhar frio e calculista avista e persegue não haverá mais salvação a ninguém. Cobra suja e asquerosa mas que se reveste de brilho e perfume para se transformar em atrativa beleza. Cobra pecadora, imoral, lasciva, banal. Por onde anda sorrateira, espalhando sonsice e docilidade, sempre um rastro imundo e lamacento.
Cobra ruim e puta ruim. Víbora peçonhenta e quenga da mais asquerosa espécie. Cobra adulterina, traiçoeira, maléfica. Víbora ruim e prostituta ruim. Mostra-se como a mais bela de todas, como a mais atraente de todas, como a mais fascinante de todas, mas no seu interior de cascavel apenas a reles e nojenta vulgaridade, apenas a fria e asquerosa vulgaridade.
Uma puta na pele de cobra. Uma rampeira por dentro da víbora. Uma devassa e libertina fazendo de tudo para esconder as venenosas escamas. Uma pérfida e infiel se passando como exemplo de virtude, caráter e honestidade. A vulgaridade rastejante querendo erguer uma honra inexistente. Uma lasciva de cabaré querendo se mostrar como dotada de fidelidades.
Uma puta ruim, desprezível e vulgar, na pele de cobra. Uma rampeira ruim, abjeta e lodacenta, por dentro daquela escama repelente camuflada de perfeição. Ou uma cobra que se perdeu na estrada em busca de favores e favorecimentos. Ou uma víbora safado cujo rabo foi entregue de vez às traições mais adulterinas já praticadas em devassos escondidos.
Conheço alguém assim. Conheci muito bem alguém assim. Uma vadia que se passa por mocinha, uma meretriz que se passa por inocente, uma Messalina que ainda quer se passar como a mais virtuosa das mulheres. Puta barata, puta de qualquer um, puta pelo gosto da putaria, e ainda, perante a sociedade, querendo ser vista como honrada e respeitada.
Mas engana qualquer um. A cobra bonita e suave em seu estado de perfeição. A víbora mais peçonhenta em seu estado de maior fingimento. Aquele que a avista logo quer se aproximar, logo deseja tocar sua pele, sentir seu perfume, abraçar, beijar e tudo o mais. E ela, por ser fria e maliciosa, vai apenas deixando que a futura vítima se achegue mais.
Uma víbora que deixa ser possuída muitas vezes e de todas as formas. Uma cobra venenosa que ama como a mais perfeita das amantes. Uma viperina que esconde a língua bifurcada para mostrar somente os lábios apetitosos e o corpo mis que sedoso. Mas que sobre si não carrega senão a frieza mais devoradora da falsidade.
E depois, depois de se deixar seduzir, então passa a agir ao seu modo de cobra ruim e puta safada. Envenena, tira da vítima tudo o que pode, e depois o esvai em corpo, alma e bolso. E sorrindo, apenas segue adiante em busca da próxima vítima, balançando o rabo, chamando quem o deseja ter.


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Lá no meu sertão...


Singela morada



Todas as cores (Poesia)


Todas as cores


Eu tinha um azul
e fiz um mar

eu tinha um rosa
e fiz uma flor

eu tinha um carmim
e fiz um lábio

eu tinha um lilás
e fiz uma boca

eu tinha uma boca
e beijei a tinta

e me derramei
em mil cores

de amor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – as três solteironas


*Rangel Alves da Costa


Zuzu, Demunda e Mirinalda, eis os nomes das três solteironas que de vez em quando, ao entardecer refrescado pela aragem, sentavam-se em cadeiras de balanços na calçada. Toda vez era assim. Todas chegavam desejosas de falar de homem, de macho, de safadezas, mas cada uma se mantinha desconfiada esperando que a outra começasse. Até que uma dizia: “Só passa muié. Tô cheia de vê muié em minha frente. Preferia avistar uma cabra, um cabrito...”. Ao que a outra cortava para falar: “Deixe de conversê. Você queria mermo era ver macho passando. Deseja avistar macho passano e ainda vem com essa história de cabrito, de cabra, de jumento...”. A palavra jumento acabaria causando verdadeiro enrubescimento entre as demais, conforme constatado pelas palavras da terceira: “Cabrito, melhor cabrito, jumento não. Vixe só em pensar!” E começou a se abanar. Mas eis que de repente ao longe vai surgindo um moço bonito, elegante, todo perfumado, pronto para ser paquerado. Quando mais se aproximava mais as solteironas se desesperavam, mudavam do vermelho ao lilás, só faltavam dar piripaquis. Contudo, o mais estranho é que cada uma procurava fingir mais que a outra toda aquela aflição. Mas quando o rapaz foi passando bem defronte as três, aproximando-se um pouco mais e se preparando para dar-lhes um cumprimento de boa tarde, somente avistou a maior estranheza do mundo. As três estavam desmaiadas.

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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

A GRANDE FAMÍLIA DO ALTO DE JOÃO PAULO


*Rangel Alves da Costa


Ao cair da tarde, quando o sol já vai descambando além, então as famílias colocam suas cadeiras nas calçadas e debaixo dos pés de pau para receberem os sopros da brisa sertaneja. Assim no Alto de João Paulo, assim por todo lugar nos arredores da cidade sertaneja de Poço Redondo.
Mas ali no Alto há uma magia diferente, um encantamento diferente, um berço de profunda e reconhecida grandeza. Avista-se a casa de João Paulo, agora moradia de familiares. Avista-se a casa onde morou Adília por muitos anos. Sim, a mesma ex-cangaceira Adília e seu jeito pacato, simples e humilde de ser. Lar de Maximino, lar de tantas outras inquebrantáveis raízes e troncos ainda hoje portentosos.
O Alto de João Paulo, ainda que hoje o progresso tenha insistido de dar-lhe outra feição, pode até já ter sido mudado pelos arredores, mas não no âmago de sua nascente, naquela fileira de casas, unidas como de mãos de dadas, que vem desde a antiga casa de Seu Galego Ferreiro até se alongar já pela estrada que vai descendo para o riachinho. E se vivo estivesse, por essa hora João Paulo gritaria de sua porta ou de sua calçada para quem passasse adiante: Aonde vai, cabra?
Parece mesmo que o Alto de João Paulo preserva para si o que mais adiante não se preserva mais. Enquanto outras povoações, arruados e comunidades, logo se transformam com o passar dos anos e a chegada de qualquer progresso, o povo do Alto cuida que seu mundo não perca feição nem se desintegre pelo novo. Mesmo estando tão próximo à sede municipal, bastado caminhar cerca de um quilômetro e atravessar uma passagem molhada, nada do que acontece na cidade possui consequências no outro lado do riachinho que a tudo separa.
Casas pequenas, que outrora foram no barro e cipó, ganharam paredes de tijolos sem perder a essência ou até mesmo o tamanho. Casas com dois ou três quartos, varanda e cozinha, apenas. Mas de quintal sempre grande e indo sempre confrontar já com os arbustos ralos e as catingueiras miúdas de mais adiante. Alguma cria de quintal, como galinha e porco, e bichos de estimação, como cachorros e gatos. E vez por outra - e de modo diferente da constância de antigamente - alguma planta medicinal num canto de cerca.
As pessoas do Alto de João Paulo são todas simples, amigueiras, acolhedoras dos visitantes. Não negam qualquer diálogo nem proseado sobre suas histórias passadas, raízes familiares e causos que chegam à cidade já quase como lendários. E ali um celeiro de grandes histórias e grandes acontecimentos. Mesmo sendo uma comunidade pequena, dificilmente se encontra localidade interiorana com maior livro aberto e recheado de acontecidos, principalmente acerca de seus filhos famosos no passado.
Famosos no passado e em tempos mais recentes. No passado do Alto, as marcas e os marcos de uma meninada e juventude propensas aos passos do bando de Lampião. Com efeito, dos trinta e quatro cangaceiros de Poço Redondo que adentraram no bando de Lampião, muitos nasceram e conviveram ali. Adília, que seguiu o cangaço como companheira de Canário, era daquela comunidade, bem como seu irmão João Mulatinho, que no bando recebeu o apelido de Delicado. Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro (Du, Gumercindo e Antônio), filhos de Paulo Braz São Mateus e irmãos da famosa cangaceira Sila, eram também do Alto.
O próprio João Paulo era irmão daqueles quatro cangaceiros. E irmãos de João Paulo e destes eram os vaqueiros Humberto e Abdias. Assim, na família Braz o alargamento de raízes que ora se alongaram para o cangaço ora para os trabalhos da vaqueirama, do cuidado com os bichos e outros afazeres sertanejos. Mas também da comunidade do Alto uma raça de exímios caçadores, lavradores e mestres nos ofícios da sobrevivência. É, pois, a expansão dessas raízes que ainda subsiste na pequena povoação e se sempre no orgulho e no prazer da história e da simplicidade do viver.
A bem dizer, toda a comunidade do Alto está unida por alguma relação de parentesco. Muitos são os irmãos, filhos e sobrinhos, em linhagens que se comungam em outros parentescos antigos, que ali permanecem como troncos fincados para a eternidade. Daí que ao entardecer, quando muitos colocam seus bancos e cadeiras pelos sombreados das calçadas e debaixo do pé de pau, não se avista apenas uma vizinhança, mas uma verdadeira família.


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Lá no meu sertão...


Lindo Por do Sol - Assentamento Queimada Grande, Poço Redondo/SE




Uma receita de amor (Poesia)


Uma receita de amor


Tudo tão simples
a mesma receita
o mesmo cuidado
o mesmo carinho
apenas com outro
modo de fazer

o abraço afetuoso
ao invés do forno
o doce da palavra
ao invés do açúcar
e ao sentir o sabor
descobrir que é amor

e saborear o afeto
e alimentar o desejo
e dividir para dois
na vontade de mais
de mais doce sabor
de mais desse amor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - gente por força de Deus


*Rangel Alves da Costa


Há uma gente que só sobrevive como gente pela força de Deus. Há uma gente que só amanhece e anoitece pela força de Deus. Há uma g ente que só fala, sorri e encontra ânimo para lutar pela força de Deus. Há uma gente que só encontra razão pra viver pela força de Deus. Há uma gente que só continua existindo pela força de Deus. Há uma gente que somente suporta as agruras e as angústias do dia a dia pela força de Deus. Há uma gente que somente se diz gente e vive como gente pela força de Deus. Pela força de Deus por que sobrevivendo pela incontida fé em Deus. Uma gente que é pobre, carente, sofrido, desvalido de tudo, mas de imensa riqueza na fé, na perseverança, na religiosidade, na comunhão com o sagrado, na esperança por dias melhores. Não é fácil vive em contínuo desemprego. Não é fácil viver mendigando pelas ruas. Não é fácil acordar e deitar sem o pão para saciar a fome. Não é fácil estar doente e não ter remédio, não poder comprar remédio. Não é fácil ouvir o filho chorando querendo comida. Não é fácil viver ameaçado em barraco de lona. Não é fácil viver nos escombros e ainda pensar que possui moradia. Não é fácil a roupa em frangalhos, os pés descalços, a imundície forçada. Não é fácil viver assim. Mas há muita gente que vive assim. E somente suporta viver assim por força da fé em Deus.

Escritor
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quinta-feira, 26 de outubro de 2017

OS RIFLES


*Rangel Alves da Costa


Todos se exaurem das tratativas de tocaias e mortes. Todos se cansam das estratégias de vingança. Todos se enfadam de tantas ordens dadas e de tantas ordens recebidas. Mas os rifles não.
Os rifles têm de estar continuamente em sentinela, em vigília constante, de boca aberta e olhos atentos. Os rifles não repousam senão ao lado de mãos embrutecidas e dedos vorazes para apertar seus gatilhos.
Coronel Teovegildo diz ter suas razões para manter matadores dia e noite a seu dispor. Ou faz assim ou os inimigos chegam primeiro e fazem jorrar pelo terno de linho branco o sangue muito mais da desonra do que da morte.
Coronel Fenelon diz ter seus motivos para manter tantos jagunços e pistoleiros prontos tanto para o ataque como para a defesa. As inimizades semeadas agora tendem a vingar um mundo de revides sobre si e sua família. Todos estão jurados de morte certa.
Coronel Sá de Quaranta diz ter justificativas mais que suficientes para viver rodeado de homens ramados até os dentes. Os seus desafetos rodeiam seus latifúndios como urubus buscando carniça pra se fartar. Gaviões e carcarás povoam seus terríveis pesadelos.
Há, num mundo assim, um império de rifles, de vinditas de sangue, de desmedidas violências. Cada coronel quer, através das armas e do terror, impor-se sobre o outro a qualquer custo. É o preço do mando, da honra e do poder.
Preço do mando, da honra e do poder, mas também uma doença com feição incurável pelos latifúndios e posses das distâncias nordestinas. Males crônicos que vingam nos casarões e sobrados e se estendem pela terra tingida da vermelhidão putrefata da violência.
Os motivos? São muitos. Cabidos e descabidos, justificados e aberrantes. Mas quem há de falar em justa motivação quando o coronel quer, a todo custo, não só fazer prosperar seu império de poder como dizimar todo aquele igualmente poderoso que se mostra como pedra na botina?
Rixas históricas, confrontos quase épicos senão vergonhosos para a história a ser contada. E os livros com o dever de abrir suas páginas para situações verdadeiramente escabrosas das lutas entre coronéis e suas tropas de desalmados. Bala zunindo, os rifles sedentos de sangue, covas rasas ou carcaças deixadas pelos bicos afiados.
Na conflagração das guerras de poder e honra, não somente os coronéis são personagens principais. Os sobrenomes familiares se envolvem de tal modo nas desavenças que a morte de qualquer é sempre motivo para a deflagração de revides intermináveis.
Assim, se um familiar do Coronel Teovegildo é tocaiado e morto, que não se espere apenas o pranto. Daí em diante terá início uma caçada sem fim aos algozes. É a honra familiar berrando, gritando, bravejando terror.
Se um parente do Coronel Fenelon ou do Coronel Sá Quaranta tomba pelo cuspe do rifle dos homens de qualquer outro coronel, logo o mundo parece que vai acabar. E o sangue vai respingando em irmão, em primo, em afilhado, até em amigo. E as cruzes vão se somando nas guerras familiares.
Vinditas antigas, de raízes as mais distantes. Guerras se muitas vezes se iniciaram pela disputa de terras, pelas espertas demarcações, pelas invasões premeditadas. O acinte de um é logo traduzido pelo outro como um chamamento ao duelo. Mas mesmo os dois desafetos tombando, as rixas repassam para os sobrenomes familiares.
Por isso mesmo que historicamente as famílias permanecem em vingança após vingança. O troco pela morte de um se dá pela morte de outro, ou mais de um, da outra família. Mesmo quem com menos violência nos dias recentes, ainda perduram os ódios, os confrontos e a cusparada dos rifles. Tiro após tiro, bala após bala, morte após morte, assim o mundo medonho e doentio da honra e do poder familiar coronelista.
Em tal configuração, os rifles nunca descansam, nunca adormecem, nunca são deixados esquecidos num canto. Igualmente, agora travestidos de matadores de aluguel, os antigos jagunços continuam em alerta ao recebimento de ordens. Basta que um serviço tenha de ser feito, então a tocaia é logo preparada, a emboscada é colocada em ação.
Jagunço é bicho desalmado. Mão fria e traiçoeira, impiedoso aperto de gatilho. Não há gente diante de sua mira, apenas um bicho qualquer que merece morrer. Não é diferente com os matadores de hoje. A covardia é sempre a mesma, a violência é sempre a mesma, o cuspe da arma nunca muda nesse mundo bárbaro e atroz.
Por isso mesmo que os senhores do sangue e do mando lançam mão de pessoas tão bestiais para os seus intentos igualmente bestiais. Como o jagunço ou o matador não respeita senão ao mandante e ao gatilho, o que se tem a devastação de famílias inteiras pela boca dos rifles, pelos canos famintos de sangue.
Os rifles de outrora são os mesmos rifles de hoje, ainda que em nome de outras armas ainda mais potentes. Mas a situação é a mesma. Apenas cuspir fogo para a desgraça alheia, para o último gemido de vidas entrelaçadas pelas sangrentas vinditas.


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Lá no meu sertão...


Sabe, às vezes sou como Zezé, aquele menino do pé de laranja lima. Tenho medo demais de perder meu melhor amigo: meu pé de silêncio!




Sobre noites e manhãs (Poesia)


Sobre noites e manhãs


Deitei na minha rede de toda noite
e então fiquei pensando e pensando

tirei um punhal abrasado do meu peito
apaguei um velho caderno de saudades

uma lágrima quis insistir em aparecer
e deixei que ela molhasse todo o travesseiro

lavei nas pedras da noite toda a dor sentida
e toda mágoa e angústia ainda aguardadas

quando meu último soluço silenciou
já não havia gatos miando o breu da escuridão

ainda assim me levantei e peguei o caderno
para tentar uma poesia talvez de renascimento

e então escrevi que havia um menino
que perdeu seu bola e foi brincar com a lua

e nunca mais se iludiu com as coisas terrenas
nem com bolas que somem nem pessoas vazias

e depois disso quis também todo o céu estrelado
pois sabia que o seu lugar era além do reles chão.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - ao fundo do poço


*Rangel Alves da Costa


A situação do brasileiro está lamentável. Nunca o povo foi empobrecendo tão rapidamente. E mais: achincalhado, zombado, ferido na sua dignidade. Ontem mesmo, quarta-feira, houve mais um episódio desse processo de empobrecimento do brasileiro, daquele assalariado, humilde trabalhador, tantas vezes desempregado. Como dito, ontem mais uma prova da gastança do governo para se manter no poder a todo custo. A cada nova denúncia e o gasto sem fim do dinheiro público, de valores que deveriam ser revertidos em favor da população através de obras, assistência, saúde, segurança, moradia, etc. Mas não, milhões, bilhões, tudo fatiado entre alguns parlamentares. Com os cofres públicos vazios, então a conta vai para aquele que já está de esmola: o povo pobre. Daí os aumentos de tudo, de impostos, taxas, tributos, medicamentos, de meios essenciais de sobrevivência. Todo dia um novo aumento do gás de cozinha, todo dia um novo aumento na tarifa da energia, todo dia a feira vai ficando mais cara. E o pior é que tende a ficar muito mais. Os milhões gastos para rejeitar à nova denúncia logo serão cobrados do povo. É este, o povo, que sempre arca com as mazelas e os desmandos de um governo que se compraz em atirar todos à lama, ao fundo do poço.

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quarta-feira, 25 de outubro de 2017

FILOZINHA


*Rangel Alves da Costa


Filomena da Anunciação, mais conhecida como Filozinha, eis o nome de minha namorada. Nunca vi mulher tão bonita nem por onde alumia o sol nem por onde clareia a lua.
Mocinha na idade de flor, um favo de mel na colmeia desse mundão sertanejo. Cabelos lisos de índia tapuia, pele bronzeada de jambo ou dourada de urucum. Uma bela paisagem desenha em cima de uma mulher.
Minha indiazinha é sertaneja, matuta, cabocla, uma flor campestre que de repente chegou ao meu olhar. Chegou e logo apaixonei. Ela ainda não sabe não, ainda não sabe que sou seu namorado, mas já faz alguns dias que namoro com ela.
E ela ainda não sabe por um só motivo: o pai dela. Com efeito, andando pelos matos, pelas estradas e arredores como sempre faço, resolvi me alongar mais um pouco e ir bater à porta de um famoso vaqueiro.
E vaqueiro afamado, cabra valente tanto na pega do boi como em qualquer outra situação. De pouca conversa, quem o avista logo teme a fama de valentia. Eis que chegando, depois de bater à porta tomei um susto danado. Fui recebido como o maior dos amigos.
Contudo, no primeiro passo que dei depois da porta, mais espantado fiquei. Meio escondida atrás de uma cortina, como quem queria avistar o visitante, aquela mocinha mais linda do mundo. Não acreditei no que vi.
O pai dela conversava e conversava e eu caçando aquele rosto por todo lugar. Pedi um pouco d’água sem estar com sede, na esperança que fosse ela quem trouxesse a moringa. E foi ela mesma.
Toda sem jeito, envergonhada, com roupa de chita e chinelo de dedo, tudo fez para encobrir seu olhar com os cabelos. Mas vi que me olhava. E muito. Então logo me apaixonei. Perguntei ao vaqueiro se era sua filha, então tive de ouvir:
“É minha fia e minha fia vai ser pra sempre. Num nasceu nem pra namorar nem pra casar. E o cabra que se enxerir por aqui eu faço dele um restim no outro dia”. Que absurdo, pensei. Mas já estava apaixonado e apaixonado continuei.
Quase todos os dias eu volto lá para namorar. Mas namorar sem que ela sequer saiba. Pra namorar sozinho, intimamente, apenas pelo desejo e pelo olhar. Um namoro inventado apenas pela vontade de namorar.
Sei que ela me olha, sei que ela me quer. Se não fosse aquela valentia do pai eu já ia pedir sua mão e tudo mais. Só tem um porém. Ela só me olha, mas nunca abriu a boca para dizer um tantinho assim.
E tenho medo de mais de qualquer dia chegar perto dela e ouvir o que nunca desejaria. Algo assim como um silêncio silencioso demais, profundo e duradouro, talvez eternizado na sua voz.
Mas ainda assim não desistirei. Jamais desistirei. Ela é minha namorada e sempre será. Mesmo sem a palavra, mesmo sem qualquer toque, mesmo sem qualquer beijo, ela sempre será minha namorada.
Amar assim é difícil demais. Mas não deixa de ser amor. Quando o coração resolve por conta própria encontrar seu sorriso, então não há mais o que fazer. Será sempre amor, mesmo que as esperanças sejam como folhas ao vento.
Mas amo minha Filozinha. Quem sabe se ela também não me ama. E se na escrita do destino estiver, não haverá pai nem qualquer coisa que impeça de no seu dedo chegar um anel dourado de sol e de lua.

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Lá no meu sertão...


Com meu lindo Levy




Assim tão lua e sol (Poesia)


Assim tão lua e sol


Venha-me
assim tão lua nua
ou assim em véu
que se desprende
em paraíso e céu

e vou-me
assim apenas sol
em fogo e chama
desde o arrebol
para queimar a cama.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - o fim do mundo


*Rangel Alves da Costa


O mundo vai chegar ao fim. Mas não será um fim de mundo por guerra nuclear ou por qualquer acontecimento de indescritíveis proporções. Não será um fim do mundo conforme anunciado nas profecias nem o fim apocalíptico da Bíblia. Também não será fim do mundo por nada que venha dizimar todo tipo de vida na terra. Será o fim do mundo humano mesmo, causado e provocado pelo próprio homem. E assim por que o homem caminha para sua autodestruição. Destruição moral, ética, comportamental. Destruição pela tecnologia, pelo desmedido avanço, pelo novo que assustadoramente surge. Destruição pela desumanização do homem e pela ascensão do individualismo. O homem como lobo do homem e nada mais que reste para ser preservado. Ora, o mundo de agora caminho para imoralidades em todos os sentidos. O tempo presente não está conseguindo mais limites para o certo e o errado. As relações familiares sucumbiram, os amores foram devastados, as harmonias perderam seu sentido de existência. O homem não é mais homem, mas apenas o conceito, a marca, o modismo, a imposição. O homem não tem mais escolhas, regras ou impedimentos. Tudo é absurdamente permitido. O corpo como banalidade, o sexo como banalidade, o viver na banalidade. Muito do agora já possui tão negativa feição. Então que se imagine daqui a cem anos, duzentos ou mais. Tudo caminhando para o seu fim, eis que nada mais terá sentido ou razão de existir.

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terça-feira, 24 de outubro de 2017

VIDAS SÃO VARAIS AO VENTO


*Rangel Alves da Costa


Para muitos, os varais são apenas arames, cordames, nylons ou fios estendidos nos quintais ou muros, onde são colocadas e estendidas as roupas e outras peças de pano para secar ao sopro do vento.
Para muitos, os varais são apenas fios alongados entre vigas, árvores ou varas, adormecidos dia e noite à espera que cheguem com roupas molhadas ou encharcadas. Ali estendidas, firmes em pegadores, as roupas e os panos vão perdendo suas umidades até novamente estarem prontas ao uso.
Para muitos, os varais são apenas isso. Nada mais que isso. Um objeto qualquer que serve para secagem de tecidos. Apenas fios estendidos entre vigas. Ou apenas qualquer coisa cuja utilidade é tão despercebida quanto os demais objetos que guarnecem os muros, os quintais, os lados residenciais.
Para outros, contudo, os varais são como poesias escritas no olhar. Aqueles panos estendidos, aquelas roupas molhadas e lentamente secando, aqueles tecidos encharcados que vão ficando leves, aquelas camisas e calças, vestidos e saias, que de repente começam a querer esvoaçar, são como processos de aprisionamento e liberdade.
Para estes, aqueles que avistam muito além dos panos estendidos, os varais sintetizam a própria existência. Quando os ventos sopram e os gotejamentos molhados começam a cessar, quando e rigidez ganha contornos de brandura, quando as roupas já não estão apenas estendidas e se mostram como soltas, então a reflexão acerca daquele instante em que o ser humano sai de seu encharcamento interior e se impulsiona de asas abertas.
Nas vigas e paus que sustentam os varais, ou mesmo nos fios estendidos, geralmente pousam e repousam os passarinhos. Quando não estão tomados de roupas e em instantes em que os quintais e os muros estão silenciosos e calmos, são os pássaros que ali chegam para a mesma idealização dos varais como instrumentos de fuga e de liberdade. Depois do voo, ali repousam por instantes, refletem sobre os passos seguintes, e depois levantam voo pelos horizontes.
Há quem aviste os varais como algo com vida própria. E não será errôneo pensar assim. Ao longe, avistando as roupas estendidas, de repente o olhar se espanta pelos braços abertos, pelas calças querendo andar, pelos vestidos e saias querendo pular, pelas sensações de que ali existem pessoas e que desejam o seu mundo. E quando a ventania chega mais forte e uma camisa se desprende dos pegadores, no alto, em pleno voo, é como se as mãos dessem adeus.
Essa humanização do varal sempre provoca lágrimas, tristezas e sofrimentos. Essa sensação de que no varal estão estendidas vidas, sempre provoca saudades, angústias, desolações. Ora, qual a sensação de uma pessoa que após lavar e estender a roupa de um ente querido já partido para o além, de repente passa a sentir que a roupa se move e que os braços se abrem avidamente, que deseja ser tocada, abraçada, sentida, reencontrada?
Mas, acima de tudo, vidas, as nossas vidas, são como varais ao vento. Vez por outra sentimos que precisamos nos lavar e nos esfregar com água e sabão, por dentro, no âmago, para afastar aflições que persistem acontecer, e depois nos estender em varais para o necessário renascimento. Outras vezes, ante as lágrimas que insistem em cair, perante os prantos que persistem em brotar, diante dos rios e mares que surgem na face, sentimos que precisamos nos refazer, enxugando as dores e os sofrimentos em varais.
Há, ali no quintal, um solitário varal. Abro a porta da cozinha e sigo em direção ao cercado. Como não posso me erguer e ali me estender com roupa e tudo, simplesmente tiro de mim todos os panos e no varal os estendo. Mas para que faço isso? Meus olhos me avistam leve, solto, querendo esvoaçar. Talvez ali a minha liberdade maior ainda não conseguida e o imenso desejo de querer voar. Voar. Voar!


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Lá no meu sertão...


Nas águas que ainda restam



Ei você! (Poesia)


Ei você!


Ei você
que desapareceu
sem desaparecer
que foi embora
sem sair lá fora
ei você...

cadê você?
juntinho a mim
e afastada assim
diz que terminou
e nada acabou
cadê você?

tenho a dizer
o que sou eu
está no peito teu
e em mim está
sem nada afastar
saiba você

ei você
cadê você?


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - o amor


*Rangel Alves da Costa


O AMOR - Caminhando sozinho, cheguei à fundura do tanque, lancei minha mão no visgo da lama, então decidi: quero amar o barro, quero viver com o barro. Apenas o barro, a argila, o limo visguento da lama. Pois do barro faço uma moringa que junta minha água. Do barro faço uma caneca para matar minha sede. Do barro faço um prato para o meu dia a dia. E posso até fazer uma mulher de barro. Que bom que tudo fosse assim. A gente cria, a gente molda e depois cuida para não cair e despedaçar. O amor. 

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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

ÁGUA DE POTE


*Rangel Alves da Costa


Noutros idos, num tempo e modo que essa juventude de agora sequer já ouviu dizer que existiu, não havia água na torneira nem reclamação por três dias ou mais dias sem um pingo caindo. Hoje em dia, basta que a encanação não jorre água a contento e a reclamação toma conta de tudo. Certamente esquecem realidades muito diferentes de outrora.
Naqueles idos de seca grande, de tanque seco e nuvens prenhes distantes, água era um verdadeiro luxo. Quando muito, água de beber somente de carro-tanque, de tanque enferrujado e cano derramando mais do que servindo aos baldes, aos potes, às latas e até às cuias. Ou a pessoa colocava tonéis em cima de carroças ou carros-de-bois e seguia em direção a qualquer córrego, ou tinha de se contentar com o que chegava nos carros-pipa.
O dia da passagem do carro era certeiro, mas a hora não. Daí que logo cedo longas filas começavam a se formar nas ruas e pelos arredores das calçadas. Gente de todas as idades e vinda de todos os lugares, chegando logo cedo para guardar seu lugar na fila. Os vasilhames eram deixados enfileirados e as pessoas ficavam ao redor proseando. Marcava-se o local também com pedras e paus, mas tendo que o dono do lugar ficasse à espreita para não ter sua vaga surrupiada por outra pessoa, como de fato ocorria.
De vez em quando dava briga, dava esculhambação, troca de tapa, cabelo arrancado e vestido rasgado. Se uma cismasse que a outra colocou o balde um pouco mais à frente, então o pé de briga já estava formado. E era uma festa de xingamentos e descobertas dos escondidos. “Sua zinha, sua gaiteira, pensa que é o que, sua labisgóia?”. E a outra: “Safada de uma figa, rampeira, pruquê tem mais de um macho acha que é mais muié que as outa?”. O clima só esfriava quando o carro despontava.
No dia seguinte era outra briga, outra discussão das comadres agora inimigas de fogo a sangue. E tudo por causa de uma lata d’água. Tudo num tempo de sofrimento sem fim. Mulheres envelhecidas e mocinhas de potes e rodilhas na cabeça, todas seguindo em direção ao tanque. Água já barrenta, mas não havia outra. Seguiam e voltavam com os potes como se já tivessem sido moldados ali na cabeça, sem pender ou cair. Uma maestria do sofrimento, um aprendizado na luta pela sobrevivência.
Chegando em casa, pegar um pano limpo e colocar na boca do purrão ou do pote maior da cozinha. Dois, três potes. Água despejada, coada, e assim o de beber do dia a dia daquele povo sertanejo. Água de beber e de fazer comida. Mas havia a melhor geladeira do mundo: a quartinha, a moringa. De dia para o outro, no umbral da janela, não havia água melhor de se beber. Fria no tempo, saborosa demais pela sede tanta.
Quando cheio, o pote logo se enchia também de umidade pelas laterais. Mesmo que o barro não deixasse vazamentos, ainda assim era como se o pote estivesse molhado pelas laterais. E tal fato também como serventia para que se soubesse a quantidade de água ainda existente sem precisar olhar para o fundo. Acaso a umidade do pote estivesse apenas na metade, então era a certeza que a quantidade era aquela. Quando já estava embaixo, no finalzinho, então a necessidade de mais idas aos tanques e açudes com latas e baldes à cabeça.
O pote era colocado em trempe, um tipo de forquilha de pau aberta em leque na parte superior, ou mesmo em pequena construção de barro, de modo a ter o fundo ovalado do pote ajustado ao local previamente aberto no barro. Um pouco mais acima, na parede também de barro ou de tijolos, as canecas de alumínio penduradas. Em certas casas, tais canetas eram tão limpas e tão brilhosas que não se admitia o uso mais de uma vez sem antes passar por nova limpeza.
Assim também com a moringa, cuja marca d’água no barro avermelhado, liso, torneado, dizia da quantidade disponível. E nada melhor que depois de experimentar um pedaço de cocada ou do cansaço pelo retorno da luta, lançar mão da caneca e despejar a água fria, gostosa, apetitosa. E depois sentar num tamborete para descansar.


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