*Rangel Alves da Costa
Morreu. Assim como todo mundo morre ele
morreu. Um homem bom, generoso, dadivoso enquanto viveu. Só lhe restavam as
exéquias.
Num ritual católico, as exéquias são os
préstimos de despedida, são os ritos e as últimas homenagens prestadas ao
defunto. É momento solene onde se pranteia e onde se reconhece em palavras as
qualidades daquele em partida.
No velório perfumado a flores brancas, a
crisântemos e girassóis, envolto em velas chamejantes, lenços molhados e
lágrimas derramadas, olhos e corações apertados pela tão triste despedida. Um
homem bom estava de partida.
Ao fundo da sala, de braços abertos numa cruz
amadeirada, um Cristo cabisbaixo, entristecido, parecia sentindo a mesma dor
daqueles presentes. Amigos e mais amigos, parentes, consanguíneos, raízes
plantadas ao longo de uma vida que ali se despedia.
Com a palavra o vigário: “Que desse corpo que
parte e dessa alma que fica o exemplo de um bom. Um cristão em plenitude,
talvez com o nome escrito nas páginas sagradas. Sim, pois foi na vida um
evangelista pregando o bem e fazendo o bem”.
Com a palavra o confrade: “No teu último
livro, página eterna de um poeta brilhante, talvez antecipasse sua despedida,
meu bom amigo. Eis o que escreveste: Viver, partir, nada mais ser. Ou ser pela
eternidade aquilo que viu, que não se foi na partida e que sempre será, pois
flor fincada em raiz...”.
Enquanto os discursos se alongavam e os
pratos escorriam entre as faces enrubescidas, uma perguntava a outra, baixinho:
“De que ele morreu, estava doente?”. E a outra respondia: “Eu soube apenas que
morreu de tristeza. Depois que pularam o muro e destruíram seu jardim, daí em
diante nunca mais foi o mesmo, foi definhando cada vez mais...”.
Mas a conversa já era bem diferente noutras
bocas e noutros ouvidos: “Morreu enquanto escrevia versos. Estava sentado à
escrivaninha quando lhe veio um colapso fatal. E dizem que pendeu a cabeça bem
em cima do último escrito: por que o outono lhe parecia a própria morte...”.
“Não. Já me contaram diferente. Dizem que ele
morreu ao entardecer e enquanto ouvia um noturno de Chopin. Como se sabe, ele
era apaixonado por música clássica, por Bach, Beethoven, Wagner, Strauss e
muitos outros. Estava com uma taça de vinho à mão quando o noturno tomou os espaços.
Então, embevecido pela canção, lentamente foi caminhando até a janela e diante
aquela luz mágica do poente, apenas pronunciou: Você? e depois a taça
estilhaçou pelo chão. E o homem estava morto”.
“Talvez não. Não acredito que tenha sido
assim. Quem ouviu ele fazendo aquela pergunta, indagando por algo misterioso
surgido além da janela, à sua frente. Por isso creio que não. No meu
entendimento, conhecendo como ele era, morreu apenas por que quis morrer. Os
poetas morrem apenas quando querem morrer. Não todos, mas alguns, escrevem
tanta coisa bonita que passam a ter certeza que são eternos. Então apenas se
desprendem do corpo físico e permanecem nas suas escritas, nos seus versos...”.
Certamente que não houve consenso sobre as
reais causa da morte. Com efeito, ninguém sabia. Viúvo, solitário, convivia
apenas com os seus livros, as suas folhas de papel, os seus versos e seus
pensamentos. Mas tanto faz que tenha morrido de uma forma ou de outra. Na
verdade, foi encontrado sentado, como que adormecido, num velho banco de seu
jardim.
Com a palavra o vizinho de tantos anos: “Ah
meu velho amigo, ainda ontem te avistei caminhando entre as flores. Conversava
com colibris, com as flores, com borboletas e passarinhos. Será que estava se
despedindo de seus melhores amigos?...”.
E de repente, pela janela, borboletas,
colibris e outros passarinhos, entrando em lento voo. E sobre o falecido
planando em despedida.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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