*Rangel Alves da Costa
Tinha apenas cinco anos de idade quando, de
repente, ouviu um barulho do lado de fora do barraco onde sua família morava. E
logo os gritos, a correria, o deus nos acuda. Seu pai estava morto a mando do
coronel. Não quis vender a tirinha de terra que fazia confrontação ao
latifúndio, então pagou com a vida.
“Desde o século XVIII, num Nordeste marcado
pelos latifúndios, pelo mandonismo escravocrata e pela submissão do pobre homem
da terra, a força de imposição do senhor se dava não só pela arregimentação à
sua ordem daqueles fiéis serviçais como, e principalmente, pelo capanga, pelo
jagunço e outros ferozes sanguinários. Era um mundo de violência, servilismo e
mortes”.
Depois da morte do pai, sua família foi
enxotada das vizinhas do latifúndio coronelista sem ter direito de levar sequer
um embornal de quinquilharias. Daí em diante seu sofrimento só aumentou.
Vivendo de favor em casebre levantado na terra dos outros, ainda criança passou
a se submeter a verdadeira crueldades. Tinha que trabalhar feito homem feito,
desde o amanhecer, debaixo do sol e da chuva, ora limpando mato com enxadeco
ora se lanhando nos espinhos em busca de bicho desgarrado. Um dia não conseguiu
encontrar a novilha e foi ameaçado pela chibata do feitor.
“As misérias tantas que se alastravam pelo
Nordeste, ao lado dos descontentamentos de alguns pelas perseguições e
opressões dos senhores donos do latifúndio e do mundo, foram semeando não só a
desesperança como a discórdia. Até mesmo os malfeitores expulsos das terras
coronelistas agora se viam sem serventia alguma. Ora, aquele mundo nordestino
era seu, mas as condições de vida não, pois relegados à condição de vermes
imprestáveis. E quando os ódios apimentaram os olhos em fúria, uma raça
violenta já estava pronta para o combate”.
O meninote prometeu ao feitor a morte certa
acaso aquela chibata caísse sobre seus ombros. Mas o troco recaiu sobre sua
irmã, que foi estuprada e morta pelo mesmo covarde capataz. Sua mãe não
suportou a dor e da vida despediu-se entre gritos espantosos. Não lhe restando
mais nada, ele pegou a estrada e desandou pelo mundo. Já estava homem feito
quando colocou a última mão de barro num casebre de beira de estrada. E ali
arranchado depois de ter ganhado uma tarefa de terras de seu patrão. Quando
este se mudou, então logo chegou forasteiro rodeado de capangas e se dizendo
dono daquilo tudo.
“Os temerários, com sangue no olho e arma de
todo lado, já não estão apenas sob as ordens do latifundiário, do poderoso.
Agora estavam agrupados dentre eles mesmos, fazendo valer suas valentias não só
pela paga do serviço como contra as tantas injustiças que faziam vítimas palmo
a palmo daqueles sertões. Homens sem rumo e sem destino tomavam as estradas,
rumavam pelos matos, aparecendo somente quando os reclamos sertanejos exigissem
ou para espalhar o medo e o terror perante seus antigos algozes”.
O casebre se desfez ao chão como brinquedo de
barro. Ele foi amarrado, foi açoitado e lanhado no corpo inteiro. Por três
vezes teve a ponta da arma na sua testa. Fechou os olhos e se fez pronto para
morrer. Até era melhor morrer do que passar por tamanha situação. Mas enquanto
estava de olhos fechados, por dentro, com as forças que lhe restavam, jurava
que se dali saísse com vida iria vingar cada gemido calado e cada grito
silenciado. Iria ser cangaceiro, se prometeu.
“O século XVIII terminava e o XIX já
despontava com chefes de grupos ou bandos reunidos com o nome de cangaceiros.
Mas somente o século XX viu surgir o maior dos cangaceiros. Cangaceiro por carregar
a canga da desvalia humana, por carregar nas costas o sofrimento das
injustiças, por ter sobre seu corpo os fardos da opressão. Nomes como José
Gomes Cabeleira, Lucas da Feira, Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino, Sinhô
Pereira, Virgulino Lampião e Corisco, este o último chefe de bando. Homens
destemidos, arregimentando outros homens, não em busca de motivações para a
luta, mas para combater o mal que os poderes e poderosos já haviam disseminado
pelos sertões”.
Então, ainda amarrado, com o sangue já secado
das feridas abertas, ele viu um urubu se aproximar. Em seguida veio um gavião.
Tudo carnicento. Teria seus olhos furados e seu corpo pinicado se num impulso
de última força não tivesse conseguido se soltar da corda. Saiu rastejante e se
escondeu na mata. Bebeu da água da folha e comeu a própria folha. Quando teve
forças logo buscou tomar seu destino. Foi ser cangaceiro.
“Ninguém nasceu para ser cangaceiro. Ninguém
cresceu para ser cangaceiro. Ninguém se tornou cangaceiro por achar maravilhosa
aquela vida entre espinhos e carrascais, sob constante ameaça dos mosquetões.
Foi o Estado e suas forças de poder que fizeram surgir o cangaço e o
cangaceiro”. Inclusive ele.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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