*Rangel Alves da Costa
Ontem pela manhã recebi umas fotografias de
Erionésia e Quitéria, amigas de Bonsucesso, povoação ribeirinha às margens do
Rio São Francisco, no município sergipano de Poço Redondo, alto sertão do
estado. Bonsucesso é historicamente famosa pelo casarão colonial imponente que
está assentado num alto defronte ao rio, construído por escravos e cujas
paredes possuem cerca de um metro de largura. Também pela cerca de pedras ao
fundo do casarão, toda levantada no sacrifício do açoite e do sangue negro.
Entretanto, o reconhecimento de Bonsucesso se
aperfeiçoa muito mais pela sua história e pela sua beleza enquanto típica
povoação ribeirinha. Nascida nas beiradas do rio, toda a sua existência sempre esteve
enraizada nas águas do Velho Chico. De suas águas toda a vida de um povo, toda
a sobrevivência e toda a alegria de viver. Num tempo de águas muitas, de rio
grande, largo, tomadas de peixes, as embarcações aportavam felizes na certeza
de que na manhã seguinte as redes seriam jogadas para a coleta farta. Pelo rio
passava toda uma vida e, tanto na chegada como na partida, o deleite de se navegar
em meio a serras suntuosas e outras belezas paisagísticas.
Contudo, o rio largo, o grande São Francisco,
o Velho Chico declamado nos versos pujantes de um dia, foi perdendo seu viço e
sua flor. Como alguém que vai definhando pela doença, a cada dia se esvaindo
mais, assim o grande Opará se prostrando no leito. O velho ribeirinho, mestre
no conhecimento e na sabedoria aldeã, logo sentiu que tempos difíceis, muito
difíceis, estavam chegando com o definhamento do rio. E mais uma vez lançava o
olhar pelas distâncias das curvas d’água e confirmava aquela ausência do muito
que se tinha no passado. E dizia a si mesmo que não foram as estradas
sertanejas que fizeram desaparecer as grandes embarcações, mas a própria
estrada do rio que já não dava passagem.
O rio já se mostrava magro, estreito, raso,
mais pedregoso. O doente em situação ainda mais calamitosa. Nenhuma grande
embarcação conseguia vencer aquele leito já sem força e sem fundura. Canoas e
barcos ainda conseguiam passagem, mas em viagens em busca do nada. Os peixes
ribeirinhos, até mesmo as piabas, já haviam escasseado de tal modo que era
espanto maior quando nas locas das pedras era encontrado um peixe grande. E o
velho beiradeiro, acostumado a se encantar com o seu rio imenso e rico, passou
a sofrer pela situação deprimente então avistada. Mas o pior logo aconteceria.
Então repito o que ontem escrevi e postei
como aflição e alerta: “Difícil demais acreditar que algum dia isso pudesse
acontecer, mas em Bonsucesso, nas ribeiras poço-redondenses do Velho Chico, a
secura do leito do rio é tão grande que agora serve de estrada como se fosse um
caminho sertanejo qualquer. No último dia 04, quando Frei Enoque celebrou missa
na Ilha Belmonte, após os reparos na sua igrejinha, a comunidade religiosa de
Bonsucesso sequer precisou de barco ou canoa para a travessia, bastando que
caminhasse até lá. Como se pode observar nas fotos abaixo, as pessoas
simplesmente andando pelo meio daquilo que noutros tempos foi de volumoso
caudal, um rio imenso, bonito, percurso para todos os tipos e tamanhos de
embarcações. A foto do garoto Otávio, filho da amiga Erionésia, em meio ao rio,
lançando o seu olhar entristecido sobre os seus restos, melancólica e
poeticamente expressa toda a dolorosa realidade. E se um jovem nessa idade sente
por dentro toda a angústia de avistar um rio tão belo em tão lamentável
situação, que se imagine o sentimento dos ribeirinhos de mais idade,
principalmente os mais envelhecidos, perante o que hoje avistam e se recordam
de ter avistado. Um contraste que angustia, entristece, atormenta. E o mais
doloroso é saber que não há grandes esperanças que modifiquem tão triste
realidade. Não haverá dilúvio que inunde tudo se é a sede capitalista humana
que tudo bebe e tudo seca, que mata um rio em nome do falso progresso”.
Hoje em dia, como visto, é possível fazer a
travessia pelo leito do rio seco. Um dia, no passado bíblico, as águas foram
abertas por Deus para a travessia de seu Filho ante a perseguição das hordas
inimigas. Agora é o próprio homem que abre as águas. Não para salvação do seu
nem do próximo, mas para a destruição da vida desta e das futuras gerações.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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