*Rangel Alves da Costa
Noutros idos, num tempo e modo que essa
juventude de agora sequer já ouviu dizer que existiu, não havia água na
torneira nem reclamação por três dias ou mais dias sem um pingo caindo. Hoje em
dia, basta que a encanação não jorre água a contento e a reclamação toma conta
de tudo. Certamente esquecem realidades muito diferentes de outrora.
Naqueles idos de seca grande, de tanque seco
e nuvens prenhes distantes, água era um verdadeiro luxo. Quando muito, água de
beber somente de carro-tanque, de tanque enferrujado e cano derramando mais do
que servindo aos baldes, aos potes, às latas e até às cuias. Ou a pessoa
colocava tonéis em cima de carroças ou carros-de-bois e seguia em direção a
qualquer córrego, ou tinha de se contentar com o que chegava nos carros-pipa.
O dia da passagem do carro era certeiro, mas
a hora não. Daí que logo cedo longas filas começavam a se formar nas ruas e
pelos arredores das calçadas. Gente de todas as idades e vinda de todos os
lugares, chegando logo cedo para guardar seu lugar na fila. Os vasilhames eram
deixados enfileirados e as pessoas ficavam ao redor proseando. Marcava-se o
local também com pedras e paus, mas tendo que o dono do lugar ficasse à
espreita para não ter sua vaga surrupiada por outra pessoa, como de fato
ocorria.
De vez em quando dava briga, dava
esculhambação, troca de tapa, cabelo arrancado e vestido rasgado. Se uma
cismasse que a outra colocou o balde um pouco mais à frente, então o pé de
briga já estava formado. E era uma festa de xingamentos e descobertas dos
escondidos. “Sua zinha, sua gaiteira, pensa que é o que, sua labisgóia?”. E a
outra: “Safada de uma figa, rampeira, pruquê tem mais de um macho acha que é
mais muié que as outa?”. O clima só esfriava quando o carro despontava.
No dia seguinte era outra briga, outra
discussão das comadres agora inimigas de fogo a sangue. E tudo por causa de uma
lata d’água. Tudo num tempo de sofrimento sem fim. Mulheres envelhecidas e
mocinhas de potes e rodilhas na cabeça, todas seguindo em direção ao tanque.
Água já barrenta, mas não havia outra. Seguiam e voltavam com os potes como se
já tivessem sido moldados ali na cabeça, sem pender ou cair. Uma maestria do
sofrimento, um aprendizado na luta pela sobrevivência.
Chegando em casa, pegar um pano limpo e
colocar na boca do purrão ou do pote maior da cozinha. Dois, três potes. Água
despejada, coada, e assim o de beber do dia a dia daquele povo sertanejo. Água
de beber e de fazer comida. Mas havia a melhor geladeira do mundo: a quartinha,
a moringa. De dia para o outro, no umbral da janela, não havia água melhor de
se beber. Fria no tempo, saborosa demais pela sede tanta.
Quando cheio, o pote logo se enchia também de
umidade pelas laterais. Mesmo que o barro não deixasse vazamentos, ainda assim
era como se o pote estivesse molhado pelas laterais. E tal fato também como
serventia para que se soubesse a quantidade de água ainda existente sem
precisar olhar para o fundo. Acaso a umidade do pote estivesse apenas na
metade, então era a certeza que a quantidade era aquela. Quando já estava
embaixo, no finalzinho, então a necessidade de mais idas aos tanques e açudes
com latas e baldes à cabeça.
O pote era colocado em trempe, um tipo de
forquilha de pau aberta em leque na parte superior, ou mesmo em pequena
construção de barro, de modo a ter o fundo ovalado do pote ajustado ao local
previamente aberto no barro. Um pouco mais acima, na parede também de barro ou
de tijolos, as canecas de alumínio penduradas. Em certas casas, tais canetas
eram tão limpas e tão brilhosas que não se admitia o uso mais de uma vez sem
antes passar por nova limpeza.
Assim também com a moringa, cuja marca d’água
no barro avermelhado, liso, torneado, dizia da quantidade disponível. E nada
melhor que depois de experimentar um pedaço de cocada ou do cansaço pelo
retorno da luta, lançar mão da caneca e despejar a água fria, gostosa,
apetitosa. E depois sentar num tamborete para descansar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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