SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 29 de abril de 2019

ASSIM ESCREVO



*Rangel Alves da Costa


Escrevo como se orando estivesse. Acendo uma vela no pensamento e vou passando as contas do rosário no meu olhar. Mas nem tudo que escrevo é sagrado. Sou apenas humano!
Escrevo como se sentisse a necessidade de subir a montanha e de lá, do lato mais alto que houver, então gritar em brados o silêncio aprisionado em mim. Mas nunca vou além daqui!
Escrevo como se faltasse somente a escrita do instante para terminar um grande livro. Mas um livro que nunca acaba, pois sempre retorno ao ponto inicial do que já escrevi. Sempre assim!
Escrevo como na pressa de não permitir que o café esfrie de vez. Mas não há café, não há nada. Há, sim, o medo de que não haja café sempre quentinho para me acompanhar na escrita. Imaginário café!
Escrevo como se precisasse calar o barulho do grilo, como se necessitasse afastar o verme rastejante, como se desejasse destruir o monstro escondido em qualquer lugar. Ou eu ou eles. E nunca sei quem vence!
Escrevo como se as palavras estivessem penduradas em varal e a ventania se aproximando. Preciso recolher, preciso acolher, preciso proteger e dar vida ao que desejo escrever.
Escrevo como se tivesse perante uma ventania, uma tempestade, um vendaval. Tudo tão solto e tão disperso, tudo tão entregue à sorte doa caso. As palavras não podem ficar à mercê dos infortúnios!
Escrevo como se somente algumas palavras ainda me restassem. Das muitas que eu já tive, do muito que eu já escrevi, de repente me vejo escasso daquilo que mais aprendi a amar. Por isso a escrita no que ainda me resta!
Escrevo como se catasse grão a grão o que jaz espalhado pelo chão. Escrevo como se colhesse do que na terra vingou, aquilo que ainda sirva como alimento ao espírito e à alma. E aquilo que me venha como alento ante um mundo sem palavras.
Escrevo com sede e com fome. Escrevo faminto e voraz. Escrevo sedento e mortificado pela falta da escrita derramada como salvação. Escrevo com prato e caneca vazios, com boca aberta e estômago fundo e profundo.
Escrevo como o vaga-lume na noite, procurando ser a luz na escuridão. Escrevo como se fosse o pedaço de lua que a nuvem não conseguiu encobrir, e por isso mesmo tenta a todo custo ser a luz maior na pouca luz que ainda há.
Escrevo se estivesse perante o último sopro, perante o último instante, ante o derradeiro agir. Uma pressa medonha que me faz voar, que me faz ser pássaro e horizonte, até que o voo se transforme em pouso forçado.
Escrevo assim. Ou quase assim. Sou levado pelo instante e em determinados momentos escrevo mais. Gosta da escrita na noite, gosto da escrita enquanto chove, gosto da escrita ouvido o silêncio.
E quando não escrevo, então fico me imaginando escrevendo. E é quando escrevo muito mais, pois as ideias surgem de tal forma que eu, acaso tivesse o dom de transportá-las vivas ao papel, não seria somente um escrevinhador, mas sim verdadeiro escritor.
O que verdadeiramente não sou.


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Lá no meu sertão...


Velho Chico - Poesia das águas!



Meu amor está distante (Poesia)



Meu amor está distante


Meu amor está distante
que me venham as asas
que me venha o vento
que me venha tudo
que não seja saudade

meu amor está tão longe
e já não posso correr
e já não posso voar
e já não posso chegar
se não for na saudade

que o meu amor então sinta
a mesma saudade sentida
e sentindo a mesma saudade
surpreenda a minha vida
na brisa de qualquer tarde.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - sertanejando



*Rangel Alves da Costa


SERTANEJANDO... Sertanejar, diga seu moço o que é isso, deixe desse rebuliço, de dizer tão quebradiço. Pois cabra eu vou lhe dizer que sertanejar é viver, e com o sertanejo conviver, na sua terra e no seu chão, apreciando o seu fazer e partilhando seu merecer. Sertanejar é o sertanejo visitar, um abraço apertado lhe dar e com ele prosear. É ser um igual em tudo, sem vaidade ou escudo, sem se mostrar com estudo, levando a simplicidade de um falar quase mudo. É valorizar o sertanejo, no seu pensar e desejo, como se de sua palavra ouvisse um suave realejo. Tomar da xícara um café, reconhecer sua força e fé, respeitar o roló no seu pé. Sertanejar é pegar a estrada, é avistar cada morada e da porteira dizer da chegada. “Bom dia dono da casa, louvado Deus aos pais e à filharada e que me permita a entrada!” Pedir licença pra entrar, num tamborete se assentar e puxar assunto e outro sem ter tempo de arribar. Sou sertanejo e gosto assim de sertanejar. Saio da rua em busca de um melhor caminhar, e pelas estradas sem fim, sempre com o coração a pulsar, sempre com os olhos a se encantar, eis que vou chegando e encontrar um mundo-sertão de amar!


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domingo, 28 de abril de 2019

FILHOS DAS ÁGUAS



*Rangel Alves da Costa


Ao longe, pela curva do rio, o beiradeiro avista o passo das águas. Ela já passou, desde muito que já passou, mas são aquelas novas avistadas que provocam encantamento. Mas por que assim?
Ora, o Rio São Francisco de agora já não é o Velho Chico de outros tempos nem do passado mais distante. Sua feição é outra, sua face é bem outra daqueles idos de pujança e ribeirinha grandeza.
O ribeirinho espanta-se, alegremente espanta-se pelo simples fato de mais uma vez ele estar despontando além da curva e lentamente passando perante olhares de preces e gratidão. “O rio não morreu não, ainda vem, ainda está vivo!”. Diz o beiradeiro extasiado de comoção.
Em Bonsucesso, povoação ribeirinha e sertaneja de Poço Redondo, nos sertões sergipanos, talvez esse espanto bom seja maior que noutras ribeiras mais acima e mais abaixo. E somente pelo fato da devoção sem igual do seu povo pelo rio.
Sim, as águas são de todos, mas parecem surgidas de nascentes do povo de Bonsucesso. As águas são franciscanas, são ribeirinhas, nos espelhos molhados e resplandecentes do Velho Chico em Bonsucesso. Bom sucesso, Bonsucesso!
Que tenha bom sucesso no viver às margens deste rio que se alonga como veia de vida! Assim se dizia nos velhos tempos e quando nem as carrancas apareciam nas proas para amedrontar e dar sumiço aos espíritos ruins das águas.
Os tempos eram de nascedouros das aldeias ribeirinhas, das vilas de pescadores, das comunidades aos pés das correntezas. O rio correndo e escorrendo ainda virgem de leito, de pujança de vida, de caudal grandioso.
Pelas ribeiras acima, aqueles antigos habitantes no convívio com as águas, com os seres do rio, com dias de fartura e de simplicidade. Barco pequeno tinha medo de tanta água ao redor. Canoa pequena logo cuidava de respeitar cada curva adiante.
Em tudo uma imensidão remansosa, parecendo mansamente suave por cima e de segredos e desconhecidos por baixo. Os peixes chuviscavam, dançavam, pulavam. As redes lançadas sempre voltavam em cardume.
O ribeirinho feliz imaginava que teria o rio assim para a vida inteira. Muita gente pensou ser assim também. Pensou até que começou a perceber estranhezas naquela fartura de águas.
Aos poucos, toda aquela imensidão começou a estreitar. Num passo e noutro, de repente o rio parecia emagrecido, mais fraquejado, doente. Então os olhos já não podiam negar: o Velho Chico já ossudo, raquítico, ele mesmo faminto e sedento.
Perante as situações de esvaimento e tristeza nas águas rasas, e acaso as lágrimas ribeirinhas derramadas pudessem, certamente as gotas de aflição escorreriam e lá embaixo e se juntariam às outras águas.
Outro dia, a ribeirinha Erionésia Correia postou uma fotografia de seu filho caminhando pelo leito seco em direção a uma ilha mais adiante. O menino, como se não estivesse acreditando naquilo que via e pisava, então lançava um olhar desalentado e entristecido.
Os tempos passaram e o menino continua convivendo com o rio e de vez em quando muito mais feliz quando as águas vão chegando muitas e o leito novamente se enche de vida. Quando isso acontece, então o filho de Erionésia chama os seus amiguinhos e juntos brincam nos beirais com seus barquinhos.
Ao redor, outros barcos maiores aportados. Um retrato da infância e da meninice ribeirinha ensaiando a vida no seu próprio mundo, e na esperança que as águas fartas passando mais adiante ainda possam ser avistadas mais tarde.
Quando aqueles barquinhos se transformarem em barcos grandes e canoas potentes e os meninos se tornarem em ribeirinhos felizes, então terá valido a pena esperar pela salvação. Talvez assim aconteça.
Quem sabe as forças da natureza salvando o rio e também o futuro de muitos que ainda estejam vivendo e convivendo com suas ribeiras. Que o rio seja salvo, que tenha bom sucesso, ou Bonsucesso!


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Lá no meu sertão...



O mandacaru é meu. O espinho é meu. O fruto vermelho é meu. A flor que ao anoitecer surgirá também é minha. Ora, o sertão é meu. Todo meu. O filho da terra não pode negar a grandeza que tem, por isso que é tudo meu!



Mar de amar (Poesia)



Mar de amar


Depois do olhar
e depois que vi seu mar
nunca mais terra firme
apenas singrar por amar

e nas vagas azuis do mar
com brisas e gaivotas
surgidas no seu olhar
seguir sem querem voltar

que amor é este
nascido num olhar de mar
na imensidão do amor navegar
e fazer da vida um mar de amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - pedra da sela: uma história de amor e tristeza



*Rangel Alves da Costa


Num riacho ladeando a cidade de Poço Redondo, no sertão sergipano, há uma pedra conhecida por Pedra da Sela (aparência realmente de uma sela grande e toda talhada na pedra), cuja história é um grito de amor e tristeza, e pode ser descrita assim: Dizem que no passado, por amor a uma donzela, um apaixonado cavaleiro pintava o futuro em aquarela. Fazia planos e tinha sonhos com aquela flor tão singela, não pensava noutra coisa senão na sua donzela. Mas eis que ela, prometida a um ricaço, não podia atender ao amor que era dela. Um dia ela foi levada e que cena mais triste aquela, pois ela chorando sua sina e ele na dor que flagela. Então ele atordoado, pôs num alazão uma sela, e partiu em disparada pulando até cancela, queria alcançar a amada e voltar trazendo ela. Mas ao passar pelo riacho, na pressa e sem cautela, foi abraçado pelas águas que turbilhavam em panela, e então foi afundando na morte que tristemente desvela. E o cavaleiro sumiu indo buscar sua donzela, e quando as águas baixam surge nas pedras uma sela.


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sábado, 27 de abril de 2019

AINDA SOBRE O CORONÉ PAFÔNCIO CABROEIRA



*Rangel Alves da Costa


Até fizeram inimizade comigo pelo que escrevi sobre o Coroné Pafôncio Cabroeira. Uns disseram que eu teria de ter dito mais, de destripar o cabra de vez e contar tudo daquela malvadeza em pessoa. Outros até juraram me tocaiar, me emboscar, fazer o mesmo que o coroné tanto mandava fazer. Mas não retiro nem ponto nem vírgula do que escrevi. E taí a prova.
Digo e repito tudo novamente. Na certeza de haver gente ruim no mundo, também a certeza de que nunca houve uma pessoa tão ruim igual ao tal do Coroné Pafôncio Cabroeira. A ruindade em pessoa, como se dizia na região de seu feudo e mando.
Um fi da gota serena, dizia um. Uma imundiça das braba, asseverava outro. E mais adjetivos tão mirabolantes emoldurando um quadro verdadeiramente dantesco: um homem nascido para ser a arrogância em pessoa, a brutalidade em forma de gente, tudo o que não presta num só ser humano. Humano? Ora, muita gente assegurava que não.
A Velha Tinhó muita sabia da vida do renegado, como dizia. Segundo a centenária rezadeira, desde que veio ao mundo aquele homem logo se mostrou a nojeira humana que mais tarde seria. A primeira coisa que fez foi dar uma mordida tão grande no peito da mãe que arrancou-lhe o tampo. Como, se criança de pouco tempo nascida? Explica-se.
Como verdadeira aberração, o menino já nasceu com dentes. E afiados. Porém, o mais estranho ainda era que no lugar da língua tinha uma coisa fina e dividida, bifurcada igualmente a língua de cobra, que se estendia horripilante além da boca. Não chorava. O que fazia era sibilar igual serpente.
Uma aberração do outro aquele que mais tarde se tornaria no Coroné Pafôncio Cabroeira. Dizia ainda a Velha Tinhó que o meninote nunca brincava igual a outras crianças de sua idade. Comprazia-se mesmo em arrancar cabeça de calango, em furar olho de preá, em amarrar o rabo do gato ao rabo do cachorro. E depois açoitar.
Certa feita que arranjou uma desavença com um de sua idade e que fez foi morder o calcanhar do menino. Dois dias depois este morreu todo arroxeado, envenenado. Chegou ao ponto de ninguém da região sequer passar perto de sua casa. Todos temiam suas atrocidades. Acertou uma pedrada com baleadeira no jumento montado pelo padre Minervino, que o bicho caiu já despedido de tudo. E por cima do sacristão.
Ao invés de socorrer o sacristão, o endiabrado Pafôncio colocou cansanção dentro de sua batina. O pobre do homem tanto se remexia como gritava por socorro, até que encontrou força para empurrar o jumento e saiu correndo desesperado. Até hoje ninguém sabe o seu paradeiro. Enquanto isso, o terrível menino sibilava com sua língua de cobra ruim. E planejando mais maldade, mais aporrinhação na vida de cada um que pudesse alcançar.
Filho único, seus pais desapareceram misteriosamente. Segundo dizem, ao invés de entristecido pelo ocorrido, o que se viu foi um Pafôncio já rapazote até sorrindo. E foi por isso que Totonho Chibanga logo sentenciou: Aquela cobra ruim deu conta dos pais. Eles num sumiro não, sumiro cum eles. E só pode ter sido o coisa ruim.
Depois disso se mostrou até outro homem. Mostrava-se trabalhador, sempre progredindo na terra e aumentando seu chão. Mas uma coisa continuava atiçando a curiosidade de todo mundo. É que Pafôncio nunca falava, sequer abria a boca. Ninguém sabia, mas ele próprio havia cortado a língua viperina, de cobra peçonhenta.
Queria ser outro homem, imaginando até que no lugar daquela aberração surgiria uma língua igual a de todo mundo. Mas nada disso aconteceu e ele simplesmente resolveu não mais abrir a boca. Daí então, aquele que já carregava em si a maldade do mundo, sentiu-se cada vez mais reprimido, dolorido por dentro. E tudo isso descarregou no lombo dos outros.
Já era grande latifundiário, senhor de meio mundo de terras, quando começou a exasperar todo o aprisionado dentro de si. Em suas mãos, trabalhando em suas terras, o ser humano era bicho. Como não abria a boca pra gritar, ou dava chibatada ou ferroada no lombo. Pobre do trabalhador tendo de suportar tudo isso.
Mas suportava para não morrer de fome naquele mundo sem nada. Suportava para não ser pior, pois sabia que corria até risco de morte se retrucasse, sem ao menos pensasse em dar o troco. O patrão era grande, era forte, era poderoso, era coronel.
O troco, contudo, foi dado um dia. Tonico Pilica amolou a faca e só esperou que o seu algoz chegasse de chibata à mão e a lançasse sobre seu lombo. E Pilica chamou a presa à lâmina afiada. Fez um trabalho mal feito e ficou esperando. O homem chegou já soltando fogo pelas ventas. Assim que levantou a chibata recebeu uma pontada. Depois mais outra e mais outra. Ali mesmo se findou.
Nenhum urubu apareceu para comer da carniça. Nenhum carnicento quis provar daquele resto imundo até na morte. Depois disso e até agora o lugar se tornou mal-assombrado. Depois do anoitecer então. Até mesmo de longe se ouve grunhidos seguidos de terríveis gemidos, como se alguém estivesse sendo ferozmente chibatado. O mal pagando ali mesmo pelos seus pecados.
Vai-te pra lá coisa ruim, desgrameira.


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Lá no meu sertão...


Uma canoa no Memorial Alcino Alves costa, em Poço Redondo, sertão sergipano



Amor de açúcar e sal (Poesia)



Amor de açúcar e sal


Sem sofrer e chorar
não é amar

sem saudade e dor
não há amor

sem tristeza e pesar
não há gostar

sem lágrima de padecer
não há querer

o amor também ama
na aflição que inflama

toda amar real
traz o açúcar e o sal.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – pelos sertões do sertão



*Rangel Alves da Costa


Hoje, sábado, foi um dia de seguir e andar pelos sertões do sertão. Era pouco mais das nove da amanhã quando eu e mais três amigos resolvemos sair da cidade da cidade em direção aos arredores mais distantes. Percorrendo estrada de chão, entre solavancos e areais, começamos a avistar aqueles retratos emoldurados no sertão verdadeiro. Casinhas de cipó e barro, casebres toscos, pessoas quase se escondendo ante nossa passagem, mas também moradores felizes, alegres e contentes, ante a nossa parada para um proseado. Porteiras e cancelas abertas, feições sertanejas se aproximando. Uma humildade que gosta de receber, de oferecer um tamborete para sentar, de perguntar se quer uma caneca d’agua. Parando aqui e acolá e seguimos adiante. Curva após curva, adentramos em veredas cangaceiras, em marcos onde a história ainda se faz tão viva como se ainda estivéssemos na presença de cangaceiros, volantes e coiteiros. Um coito perfeito em pedra grande ladeada por pequenas pias. A estratégia cangaceira de se acoitar somente onde houve pedra tanto para servir de sentinela como para servir de escudo na hora de qualquer confronto surgido. Algo realmente impressionante. Naqueles anos 30, quando as balas zuniam entre xiquexiques e mandacarus, e mesmo com tanto tempo já passado, mas ainda como se ali estivéssemos sob a vigilância de olhos escondidos nas matas. Olhos cangaceiros, olhos sertanejos do passado, um olhar que nunca se apaga nem se esconde. Tudo ainda é presença.


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quinta-feira, 25 de abril de 2019

PELA NUDEZ DA PALAVRA



*Rangel Alves da Costa


Não, não me venha com floreios nem academicismos. Não me venha com léxicos, sufixos, prefixos, consonâncias, hipérboles, sinonímias ou quaisquer hipocrisias gramaticais. Teça a teia da gramática quem quiser, mas eu prefiro a nudez da palavra e o seu cheiro de terra. Que os verbos e as conjugações ficam num canto. Preciso, isto sim, daquele dizer que desponta na cuia ou da boca da moringa.
O pau torto da palavra é madeira de lei na sabedoria. O sábio não precisa escrever com letras douradas ou expressar seu conhecimento entre os ramos dourados da latinidade gramatical. Como dito, chega de floreios e adornos, chega de redondilhas ou alinhavamentos para dizer o simples, o inteligível, o que realmente possa ser entendido. Besteira besta usar anela e gravata na boca. Besteira besta pensar que o sentido da palavra vem acompanhado da formação.
A boca até entorta na palavra escolhida, forjada, forçada no egoísmo verbal. Ao invés de um leve sopro, de uma brisa, de um aroma singelo, muita boca prefere se abrir em tempestade. Será que é para assustar ou para amedrontar o ouvinte? Pra que dizer “Você Excelência é um digníssimo canalha!” ou “Vossa Senhoria possui a sabença suficiente que não passa de um verme asqueroso”. Melhor dizer: “Um fi da gota é o que você é!”. Ou apenas: “Seu fi da égua imprestave!”. Tá entendido?
Na verdade, a palavra clama por entendimento, e não por incompreensão. Ou pede apenas que seja ela mesma, e não um significado mirabolante. E o que é mesmo a palavra senão o encontro do dito com o significado? Por que ósculo se beijo ecoa muito mais bonito? Por que arma perfurocortante se faca peixeira faz a mesma sangria? Por isso que prefiro outra palavra.
Prefiro a palavra matuta. Uma escrita que berre, que cacareje, que relinche alto. Prefiro essa palavra suada, encourada, de gibão e roló. Uma escrita que tenha mato e espinho, que tenha chão e mandacaru. Prefiro não ter nome de poeta ou de escritor. Apenas sertanejo. O que sempre sou.
Prefiro a palavra troncha, mal pronunciada, até errada. Uma escrita com flor de cacto e também com o queimor da urtiga e do cansanção. Prefiro a palavra no calor do sol, na dureza do barro do fundo do tanque, na desvalia de tudo. Prefiro não ser visto como poeta ou escritor. Apenas das distâncias matutas. O que sempre sou.
Prefiro a palavra pouca, miúda, quase sem falar. Uma escrita humilde, de roupa rasgada, de chapéu na cabeça e bolso vazio. Prefiro a palavra sem luxo, sem arrogância, sem petulância, sem anel dourado. Uma palavra que venha como sopro de vento e consigo traga o cheiro bom da natureza. Prefiro escrever para ser compreendido ou mesmo apenas imaginado pelo meu irmão sertanejo.
Prefiro a palavra cheirando a bolo de feira, a mungunzá, arroz-doce e doce de leite. Uma escrita doce sem ser enjoativa, temperada na panela de barro e não no vasilhame de cozinhas desconhecidas. Uma palavra que seja colocada no meio do pão, que seja tomada com café batido em pilão, que desça na garganta como um amém. Prefiro a palavra de mesa tosca e de tamborete, de rede armada e de lua maior. Um dizer bem sertanejo.
Prefiro a palavra montada em cavalo, correndo na mataria, sacolejada no lombo do animal sobre a estrada de chão. Uma escrita povoada de bicho do mato, de ninho de passarinho, de sombreado de arvoredo, de fonte d’água escondida. Prefiro a palavra oca, seca, vazia como o fundo do poço. Uma palavra que não precise de rebuscamento para ser entendida nem escrita com pontos e vírgulas para se mostrar importante. A palavra sertaneja, apenas.
Prefiro a palavra da mocinha tímida, do velho vaqueiro, da rezadeira, do curador, da benzedeira. Uma escrita milagrosa como a folha do mato, a raiz de pau e a reza mais forte. Prefiro a fé na escrita à descrença do palavreado bonito, quero mais a letra caída como gota d’água num sertão esturricado ao caderno aberto para o que jamais será lido. Uma escrita tão terna e cativante que seja como um dengo, que seja como um cafuné. Uma palavra que vingue do fundo do pote e seja bebida com a maior sede do mundo.
Prefiro a palavra fugida da tocaia e da emboscada e renascida na força de sua própria crença. Uma escrita nascida como benzimento, como prece e oração daquele que sabe o valor de um povo. Prefiro carregar minha dita no fundo do embornal e do aió, derreada na cangalha e no cantil, de modo que esteja ao meu alcance toda vez que eu deseje mostrar ao mundo como é o viver sertanejo. Em cada palavra minha não estará além do que a fundura da terra e a superfície do espinho pontudo.
Prefiro escrever vosmicê, oxente, vixe, cumé, adispois, munto, quarque, quartinha, estambo, prumode, perfessor, arriba, fi da peste, cabrunco, lambisgóia, mio e mió. Prefiro uma palavra assim. Escrita desconhecida da cidade grande. Uma palavra que não seja nada. Mas que seja tudo pela feição descrita da terra sertão.


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Lá no meu sertão...


Meu lindo sertão de Poço Redondo!





Saudade sua (Poesia)



Saudade sua


Eis a noite
e sua lua
e sua luz
sobre a rua
e uma saudade
sua

eis a noite
tão nua
e seu corpo
sob a lua
e tanta saudade
sua.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - visitando a história



*Rangel Alves da Costa


Gosto de andar por aí, de cortar caminhos, de visitar e revisitar o simples, o grandioso e aquilo que se tem como marco histórico. Neste sentido é que outro dia, ao lado do pesquisador José Francisco (do blog Lampião, Governador do Sertão), me pus seguindo pela estrada de chão batido para visitar (mais uma vez) um marco histórico nos arredores de Poço Redondo, no sertão sergipano. Um pouco mais adentro, na Fazenda Camarões, a vítima da vingança cangaceira foi o vaqueiro Antônio Canela, torturado e morto pelo subgrupo de Mané Moreno. Metido a valente, lá pelos lados de Entremontes, um dia Antônio Canela prometeu encher o bando de bala se Lampião aparecesse na região. Dizem que pegou em armas e permaneceu em prontidão. Mas em 37, depois de atravessar o São Francisco e fixar moradia nos arredores de Curralinho, eis que o falador foi encontrado pelo bando cangaceiro de passagem ela região e não deu outra. Pagou com a vida a promessa feita. A morte de Canela foi de indescritível perversidade. Picotado pelo canivete de Alecrim, tombado ante o açoite do mosquetão de Cravo Roxo, e depois disso amarrado a um animal e levado à morte certa. Foi Mané Moreno quem deu o tiro fatal. Mais um. E já morto é sangrado. E, segundo Alcino Alves Costa em seu Lampião Além da Versão (p. 196), o cangaceiro Cravo Roxo se acerca do corpo e bebe do sangue que borbulhava em seu pescoço. Eita gota!


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quarta-feira, 24 de abril de 2019

POR AMOR



*Rangel Alves da Costa


Já não sei quem sou eu agora. Mas por culpa minha. Ao tentar me refazer, eis que me refiz demais. Apaguei, escondi, desfiz, ocultei, tornei o existente em inexistente. Para o bem ou para o mal, mas a verdade é que mudei demais.
Qual o motivo de agir assim, de tanto modificar o passo, o caminho e até mesmo o destino? Ora, mas que pergunta. Será que vale a pena tanto mudar para, na mudança, enfim, ser feliz no amor?
Sim, tudo por amor. Por que a incompletude, por que a carência, por que o desamor, por que a solidão? Não deveria ser tão difícil assim amar. Mas como tudo tentei e não amei, então tudo mudei.
Apaguei todos os rastros meus. Na minha estrada já não existe por onde caminhei. Olhar atrás já não se avista por onde passei. Quem sou eu agora?
Risquei por cima de todos os escritos meus. Borrei, sujei, estraçalhei todo o começo e todo o fim, todo ponto e toda vírgula, até mesmo o que eu rabisquei. Quem sou eu agora?
Desamei como desama quem amava por erro ou inocência. Num coração que não cabe em si mesmo, não há lugar para o que por ilusão um dia encontrei. Quem sou eu agora?
Rasguei todos os retratos de ontem até o primeiro dia. Não me quero mais avistar naquilo que já fui e que já não sou mais por que desbotei. Quem sou eu agora?
Findei com o sonho que persistia em me fazer sonhar. A cada dia sonhando e a cada dia vendo que com o sonhado jamais cheguei perto do que procurei. Quem sou eu agora?
Pintei de outra cor onde havia uma cor diferente. O arco-íris não precisa de tanta cor assim. No céu todo azul um monte de amarelo joguei. Quem sou eu agora?
Chorei todo rio, todo mar e todo oceano que havia em mim de uma vez só derramei. Fiz-me tempestade e trovoada e todas as minhas dores eu despejei. Quem sou eu agora?
Pranteei, solucei, lamuriei, e depois de refeito da dor eu me enxuguei. Mil lenços levados ao varal pelo que passei, para não mais dilacerar o que dilacerei. Quem sou eu agora?
Lancei na bacia da fé o que tanto acreditei. Só precisava de um Deus e com Deus eu fiquei. O resto de toda crença eu desacreditei. Mas com Deus eu fiquei. Quem sou eu agora?
Perguntei a mim mesmo se é normal viver envolto à solidão como sempre me dei. E como resposta ter a mesma solidão por que assim quis e sempre procurei. Quem sou eu agora?
Indaguei se é do prazer humano amar para o sofrimento, adorar para o padecimento, querer tanto para o exaurimento. E depois chorei pelo que me perguntei. Quem sou eu agora?
Aplaquei sem o furor do ódio, sem a insensatez da ira, quando reconheci todos os meus erros cometidos. E por isso mesmo ajoelhado me perdoei. Quem sou eu agora?
Queimei os velhos álbuns, os velhos baús, as velharias e os imprestáveis amontoados na alma existentes. Em fogueira grande, imensa, a tudo queimei. Quem sou eu agora?
Rabisquei o último verso para depois rasgar. Por que a poesia se já não há flor, se já não há canção, se o amor não existe mais. Do poeta em mim desgostei. Quem sou eu agora?
Inventei um jeito novo de ser feliz sem forçar o sorriso ou abraçar gelado. Ser apenas o que sou sem nada além. E pensar que fui outro e nunca evitei. Quem sou eu agora?
Reneguei o pão da falsa mão e o abraço da traição. Afasto-me de tudo para não querer ser alcançado pela covardia. Oh quanto fui traído quando me doei. Quem sou eu agora?
Amassei e fora joguei mil bilhetes e cartas. Já não me convence corações desenhados nem lábios de beijo em papel. Talvez não tenha aprendido o que ensinei. Quem sou eu agora?
Perdoei a mim mesmo pelo muito que errei. Errei por amor, errei por paixão, errei pela ilusão, errei. Procurei sempre acertar, mas sei que errei. E me perdoei. Quem sou eu agora?
Encontrei enfim uma voz silenciosa que havia escondida dentro de mim. E ontem mesmo eu a escutei. Ela disse: “Ei, goste de você, eu já lhe falei!”. Quem sou eu agora?
Acreditei que somente mudando eu me reencontraria. E caminhando mais firme do que sempre andei. E buscando mais sabedoria do que agora sei. Quem sou eu agora?
Perguntei, perguntei, perguntei: Quem sou eu agora?
Responderei: humano apenas. E tão humano sempre serei que reconheço ser impossível mudar muito do que imaginei. E por fim direi que amo, amei e sempre amarei!


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Lá no meu sertão...



Nesta noite de quarta-feira, em solenidade na Academia de Letras de Aracaju, da qual sou membro efetivo, ocupando a Cadeira 27, cujo patrono é Fausto Cardoso. Na foto, ao lado dos confrades Suzane Vidal e Ricardo Abreu.




O bicho feio (Poesia)



O bicho feio


Que bicho mais feio
que bicho tão esquisito
não parece com nada
a não ser com um bicho

e depois lembrei
do que há além do bicho
eu tenho um coração
e o bicho também tem
eu sinto tristeza e alegria
e certamente ele também

então enfim me perguntei
quem está sendo esquisito
se sou eu ou aquele bicho
por julgá-lo assim tão feio
sem ao menos conhecer
o que há no seu coração.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - janelas fechadas e ninhos abandonados



*Rangel Alves da Costa


Sou muito sensível. Eis uma verdade. Entristeço demais perante as mais simples situações. Não que o avistado seja triste, mas pela caracterização que o meu olhar avista. Há coisa mais desafiadora que uma janela continuamente fechada, e tendo ao lado uma porta que nunca está aberta? Há algo mais desafiador ao pensamento que encontrar o ninho vazio que ontem estava ocupado? Janelas e portas fechadas podem significar tudo, menos alegria e contentamento. Abandono, despedida, adeus. Lá dentro a casa escurecida, silenciosa, entre restos do passado. E lá fora, na imagem que se apresenta, apenas a ideia de que ali já houve gente saindo e voltando, que talvez alguma moça bonita gostava de se debruçar à janela. Mas por que assim agora? E o ninho de ontem muito diferente do ninho de agora. Ouvia-se um canto, depois se avista um voo, um rebuliço, sempre uma presença. Mas por que o vazio e o abandono de agora? Será que as pessoas da casa também voaram? Não sei, não sei. Sei apenas que tudo continua fechado e abandonado. E que talvez o ninho, a porta e a janela, sejamos nós amanhã.


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terça-feira, 23 de abril de 2019

NUM TEMPO DE SERTÃO



*Rangel Alves da Costa


Casa miúda, sem luxo ou enfeitamento. Chão batido no cimento, na despensa um tico de alimento, um viver apenas e para fugir do tormento.
Na mesinha um terço de aricuri, pela janela um voar de bem-te-vi e na portada a escrita que “Deus mora aqui”.
No umbral a água fresca de moringa, no embornal um cantil com resto de pinga. Jarro antigo com flor de plástico, calça afrouxada porque perdeu o elástico.
Na cama um limpo lençol e mais abaixo um urinol. Um mundo de devoção, “Bom dia, Padim Ciço”, “Boa noite, Frei Damião”.
Nas noites de lua em clarão, as histórias cangaceiras de coiteiros e Lampião. No sopro do vento a folhagem passa, a caatinga murmureja e a seca chega até a achar graça.
Mandacaru sem flor, palma sem cor, tudo já secou. Gaiola sem passarinho, toco de pau em nudez, bicho sem fazer ninho.
Calango balança a cabeça sem acreditar. Não pode ser o que vê, tem mesmo que duvidar. Na pia a roupa batida, água pouca e bem servida.
Mãos calejadas de sina. Mulher-flor nos seus tempos de menina. Mas passa o tempo, a idade se descortina. Ali no quintal o varal. Um viver para o bem, e na lonjura do mal.
Cadeira velha em pedestal, um radinho de pilha, vento soprando pelo varal, roupa enxuta e esvoaçando, como vida nova na chita e no tergal.
Mas há ainda muito a fazer. Fogão de chão acender, dar as plantas o de beber, catar a chaleira, despejar café e deixar ferver.
O sol se apaga como vela triste. Um resto de luz que ainda persiste qual vida sofrida que tanto resiste. Uma esperança que nunca desiste de ter a paz em tudo o quanto aviste.
A boca da noite é entristecida, a saudade tanta de toda despedida. Quem estava ali já foi de partida e quem continua pode estar de saída.
Já na porta aberta do escurecido, uma velha canção lhe chega ao ouvido. Inexistente canto que vem atormentar, que vem trazendo consigo todo um relembrar de recordações das estradas passadas sem poder voltar.
Ao longe um badalar de sinos Mas antes que a lua desça, que de vera a noite anoiteça, a fé para guiar os destinos.
De rosário à mão, em cada conta um pedido, somando a conta de tudo, e tudo pedindo a Deus por um sertão menos sofrido.
Assim num sertão. Assim num tempo de sertão!


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Lá no meu sertão...


Bonsucesso, povoação ribeirinha em Poço Redondo, no sertão sergipano: 
festa das cores!





Abraço e beijo (Poesia)



Abraço e beijo


Que os teus braços
venham sobre os meus
e ao me tocar queira ficar
para jamais dizer adeus

que o teu lábio
venha ávido me procurar
e tua boca assim gulosa
queira inteiro me devorar

e mesmo não sendo assim
sem abraçar nem beijar
que aceite a minha palavra
dizendo que quer te amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - sem dor



*Rangel Alves da Costa


Um dia, reclinarei à morte para dizer apenas “leve-me!”. Não há saída. Mas leve-me como bruma leve, mansa, suave, de terno adeus. Leve-me na morte em pluma, em asas de borboleta, em suave sopro de brisa boa. Há de ser assim, pois certamente nada deverá ser mais dolorido que a própria vida, e justo não será que a despedida seja tão sofrida e dolorida que a existência. Fácil não é viver. Cadê a paz? Cadê o senso de humanidade? Cadê o respeito e a consideração pelo outro? Cadê o amor, a fraternidade, a mão estendida em amparo e acolhida? Ora, o mundo não foi feito para viver à mercê do terror, da violência, da barbárie, do sangue jorrando, de vidas inocentes sendo ceifadas pelos ódios exacerbados. A existência não deveria ser penitência, sofrimento ou dor. O homem nasceu para ser feliz, amar e viver. Por isso que justo não será que a morte chegue na mesma feição. Que seja leve, bruma, pluma, leve, de suave adeus!


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segunda-feira, 22 de abril de 2019

NAS SELVAS DA NOITE



*Rangel Alves da Costa


Depois das sombras da noite, depois dos sinos do amém e das preces de proteção, quando a escuridão começa a se espalhar pelos quadrantes e tudo se transforma em negação de toda luz, e sequer a lua dá conta de a tudo dar feição, então começam os mistérios que tanto atormentam os homens. Surgem então os bichos da noite, que não são apenas seres possíveis ou imaginários, mas também aqueles gestados nas profundezas inexplicáveis da alma.
Na infância, quando a criancinha era levada a adormecer por causa do bicho-papão, que debaixo da cama se escondia com unhas afiadas e dentes grandes, o temor impingido antecipava o que mais tarde se transformaria em outros bichos-papões. Os papões saíram debaixo das camas e foram espreitar na infinidade dos noturnos humanos. Depois disso, seja em qualquer idade, sempre haverá um bicho-papão perante os frágeis seres humanos. Dizem-se fortes demais, sem medo de nada, mas estremecendo sempre ante o desconhecido que surge após a boca da noite.
E assim por que a noite é um mistério sem fim. Nada mais instiga a alma humana que os segredos noturnos. Também assim com os animais das matas e florestas, tomando-se por exemplo os hábitos noturnos de muitos e principalmente do lobo sempre uivando a sua pujante dor. Não seria o homem um ser que se revela noutro, e este mais sensível e temeroso, perante os escuros, os desconhecidos e os mistérios da noite? A verdade é que a escuridão sempre revela a nitidez da fragilidade humana. Tem-se o medo como prova maior.
Além desse misterioso manto que a tudo recobre, tem-se que a noite é um zoológico sem fim, é uma povoação sem tamanho de bichos e outros seres que vão muito além da imaginação. Zoológico terrível pelas espécies que habitam as selvas da escuridão e da imaginação. Povoação medonha pelo que fica à espreita nos invisíveis labirintos. Portas fechadas que vão se abrindo nas revelações surgidas, nas histórias, nos causos e proseados, bem como no medo comum do povo.
Que se tenha como verdade ou não, mas indiscutivelmente que a noite é dos bichos. E quanto mais noite sem lua, no breu dos escondidos, mas os bichos surgem ferozes, vorazes, ameaçadores, comilões. Que ninguém se atreva a caminha sozinho pelas encruzilhadas, debaixo dos tufos de mato, em meio aos despovoados escurecidos. Aí as mãos e as garras ocultas das medonhices. Que ninguém se atreva passar perto dos cemitérios, das casinhas de orações nas estradas, perante as cruzes fincadas em tristes motivos.
Seja de pelo ou de pata, seja com unhas apunhalas ou dentes de sangue, seja em espectro ou desconhecido manto, seja arrastando correntes ou vagando em lamentosos gemidos, seja em assombrações que aparecem e somem, seja em medonhices invisíveis ou através de atitudes inexplicáveis, fato é que o desconhecido sempre aparece e sempre envolve a noturna escuridão. Daí ser a noite esse portal de onde vão aparecendo as estranhezas do mundo - ou do outro mundo - tanto para instigar como para amedrontar ainda mais o ser humano. Contudo, ainda assim sempre querendo ser conhecidas.
Todo mundo tem medo, mas também todo mundo quer ter esse medo. Até inexplicável que tanto se deseje conhecer aquilo que amedronta, mas a verdade é que o ser humano sempre quer conhecer histórias de assombrações, coisas do outro mundo, de aparições do desconhecido, de fatos e situações de arrepiar os cabelos. Depois tem medo de sair ou ficar sozinho, de enfrentar qualquer situação ao menos parecida com o relatado, mas nunca foge da vontade de conhecer as histórias. E histórias da noite que vão sendo contadas dentro da noite, como cenário ideal para o deslumbramento do espantoso.
Quem já ouviu falar do lobisomem, da mula-sem-cabeça, do fogo-corredor, do cancão de fogo, da visagem, do cavaleiro da noite, da gemedeira, do homem que vira bicho, do carro que pisca e pisca e nunca sai do lugar, do cavalo de olhos de fogo, da menina de branco, do menino sorridente, da voz sem rosto, da vela acesa na beira da estrada e do gemido ao lado dela, da mortalha que de repente aparece quando alguém está passando, do bicho de duas cabeças e vinte patas, do morto-vivo, do fantasma da corrente, das muitas e múltiplas assombrações que persistem alimentando os medos?
Não são, contudo, apenas estes espectros que se enraizaram como os bichos da noite humana. Outros bichos existem que não são menos terríveis que aqueles de repente surgidos para o arrepio ou o grito. Há também o bicho feio da depressão, o bicho horrendo da dor, o bicho perigoso da angústia, o bicho horripilante da culpa, o bicho terrível da solidão. Para não falar da lágrima, do luto, da perda, da desvalia de tudo ante as fragilidades humanas.
Bichos da noite, na alma noturna, nos sentimentos, no íntimo dos seres, mas que também possuem garras, dentes afiados, que arrastam grilhões, que atacam para devorar. Tão destrutíveis são que muitos os temem mais que os lobisomens da noite sem lua.


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Lá no meu sertão...


Alcino Alves Costa publicou oito livros e deixou mais uns seis prontos para publicação. Rangel Alves da Costa publicou cerca de vinte livros e possui mais uns seis prontos para publicação. Uma arte literária de pai pra filho!



Saudade de agora (Poesia)



Saudade de agora


Estou com muita saudade
e uma estranha saudade de agora

ou será um misto de medo e temor
que você vá embora?

já estou com saudade
e mesmo antes de você ir embora

ou será um medonho receio
que você não volte quando sair lá fora?

já estou com muita saudade
e por precaução com você vou embora.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - o verme



*Rangel Alves da Costa


Há um ditado dizendo que pisado até o verme se revira. O que isto significa? Simplesmente a revolta, a indignação, a contestação, a não aceitação. O verme em questão está muito além dos animais rastejantes e asquerosos que povoam o chão e suas fendas. O verme em questão é humano mesmo, é aquele que anda, que caminha, que trabalha, que cansa, que sorri e que chora, que está no dia a dia de todo lugar. Mas eis que não obstante sua luta dura e seus tantos sacrifícios, ainda vem a sola do poder para lhe pisar, repisar, esmagar. Não somente a sola do poder como do mando, da arrogância, da arbitrariedade. Chega e vai pisando, pisando, pisando. Mas chega um dia que o verme se revira, chega um momento que não se dispõe a ser mais simplesmente ameaçado ou esmagado pela sola de ninguém. E então reage na sua força, e então encontra forças para se reerguer e, enfim, dizer: Chega de ser pisoteado. Agora é minha vez de reagir. E vai subindo pelas pernas do poder até arrancar-lhe sua cabeça. É assim que se faz.


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domingo, 21 de abril de 2019

LÍDIA E O MISTÉRIO DO BANCO



*Rangel Alves da Costa


Das três gestões de Alcino Alves Costa na prefeitura de Poço Redondo, no sertão sergipano, além das muitas obras que ainda são avistadas por toda cidade e povoados, alguns bancos de praças foram guardados por moradores assim que administradores posteriores simplesmente resolveram retirar os assentos da administração do saudoso prefeito.
Mas hoje, que eu saiba, em apenas dois lugares tais bancos são encontrados: ao lado da casa de Arnaldo, logo após a ponte, e na calçada da casa de Lídia de Miguel Grassú, na atual Praça Eudócia (ou praça do redondo).
Pois bem. Sempre na brincadeira, toda vez que passo ou chego à casa de Lídia para um proseado (as irmãs e amigas sempre estão ali conversando após o entardecer e nas vagas da noite) e digo que vou levar o banco para o Memorial, logo a dona responde à altura.
De início, ela raivosa, xingava mesmo, dizia que dali aquele banco não saí de jeito nenhum, nem que um trator chegue pra arrancar da calçada e tirar. O trator vai e o banco fica. Mas de uns tempos pra cá deixou de responder com palavras. Agora basta o seu olhar armado com punhal e peixeira pra dar o recado. Diante da fúria, eu logo deixo até de brincar.
Mas qual o motivo de Lídia ter tanto apego a esse banco, vez que apenas uma estrutura em cimento com o nome “Administração Alcino Alves Costa”? Por diversos motivos, creio. Alcino era muito amigo da família Grassú, amigos de todos mesmo. Alcino sempre estava ali na Praça Arnaldo Rollemberg Garcez (nome anterior da Praça Eudócia) conversando com um e outro.
Na última gestão de Alcino, a praça onde mora Lídia era de magistral beleza, toda florida, com fonte luminosa e bancos dignos de uma assentada para um proseado ou uma paquera. Não havia praça mais bonita que aquela onde Lídia tanto acostumou a avistar da cadeira em sua calçada.
Ademais, Lídia também sempre foi muito amiga e apegada a Alcino e seus familiares, como se pertencesse à própria família Marques. Desse modo, quando os bancos foram retirados e a praça totalmente descaracterizada, então a família de Lídia resolveu guardar um daqueles suntuosos assentos como lembrança.
Não só colocou o banco sobre a calçada como providenciou a cimentação dos pés, de modo que ninguém pudesse retirar. Depois Lídia passou a cuidar do banco como se estivesse cuidando de uma flor no jardim. Por isso mesmo que o banco continua tão bem preservado e servindo como viva recordação não só de Alcino como daquele Poço Redondo tão singelo e tão bonito.


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Lá no meu sertão...


Eu



A última vez (Poesia)



A última vez


A última vez
que beijei tua boca
ai como dói a recordação
de ontem apenas

a última vez
que abracei o teu corpo
ai como sinto saudade
do abraço de ontem

a última vez
e pela última vez
como dói a recordação
e como dói a saudade.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - diário em branco



*Rangel Alves da Costa


Chega de céus azulados e estrelas faiscantes. Nada disso quero no meu diário. Chega de olhos chorosos e lágrimas se derramando. Nada disso quero no meu diário. Chega de palavras de amor e de poesias apaixonadas. Nada disso quero no meu diário. Chega de coraçõezinhos desenhos e de torres de castelos de ilusões. Nada disso quero no meu diário. Chega de cupidos desenhados e de flechas certeiras em corações sangrados. Nada disso quero no meu diário. Resolvi que meu diário não mais será um testemunho de pequenas ilusões ou de fantasias adocicadas. Quero apenas a verdade. Quero apenas o relato fiel da dureza da vida e do fogo do mundo. Quero apenas a escrita em ponta de punhal ou no gemido do que não se pode fugir. Quero o realismo mais realista que possa existir. Um diário escrito entre respingos de suor me lágrimas verdadeiras. Acaso não seja assim, que permaneça em branco. Até pela falta de coragem em deixar grafada a dor do mundo, a solidão mais solitária, o desamor mais desamado que possa existir.


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sábado, 20 de abril de 2019

AMO (E TANTO AMO VOCÊ)



*Rangel Alves da Costa


Mil razões. Todas razões para te amar. Além de gostar, além do prazer que dá, aprendi a certeza de te amar. E tanto amo você.
Amo o entardecer, do dia o envelhecer, a magia do instante e sua canção de ninar para a noite adormecer. Ao longe a luz apagando, logo a lua vai descer.
E amo você...
Amo da matutice o saber, de seu pouco ou nada ler, mas que na escola do mundo não há doutor de maior merecer. Basta olhar adiante e sabe tudo descrever.
E amo você...
Amo a mão velha e seu benzer pra todo mal combater, sua sabedoria sagrada e seu profundo conhecer, sua prece e suas folhas para a vida proteger.
E amo você...
Amo desamar o embrutecer e o vaidoso envaidecer, pois amo a simplicidade e a paz em cada ser, pois tudo achado demais não passa de um nada ter.
E amo você...
Amo o café derramado que logo começa a ferver, exalando um perfume de inigualável prazer, não bastando uma xícara, pois logo outra a beber.
E amo você...
Amo quem conscientemente sabe tão bem enlouquecer, fazendo o jamais feito sem loucura transparecer, pois conhece seus limites e até onde se perder.
E amo você...
Amo o amanhecer e o novo dia a nascer, iluminando a estrada e o que além possa se ter, abrindo os caminhos aos passos para cada sonho acontecer.
E amo você...
Amo o passado trazer para o distante reviver, como se fosse retrato chamado a novamente conviver, mesmo que doa a saudade, mesmo que cause sofrer.
E amo você...
Amo relembrar o menino pela rua a correr, tomando banho de chuva sem de nada temer, pois vivendo a sua infância e sem nada a lhe aborrecer.
E amo você...
Amo o silêncio da noite e minha pena a correr, escrevendo qualquer coisa daquilo que eu possa crer, talvez um verso de amor ou linhas de padecer.
E amo você...
Amo acender a vela e a face de Deus logo ter, fazer minha oração e ter a luz no escurecer, sentir o ânimo da alma e no espírito o poder.
E amo você...
Amo quem me chega suave, sem arrogância ou engradecer, que mereça um abraço e toda palavra a dizer, que traga contentamento e torne alegre o conviver.
E amo você...
Amo ter sede de vida e amo da vida beber, fartura do que preciso para um bom viver merecer, gota a gota na lição do que desejo aprender.
E amo você...
Amo o tempo que passa e o ponteiro a bater, hora a pós hora na vida e mais vida querer ter, pois é o relógio que temos antes de depois nada ter.
E amo você...
E por que amo tudo isso e amo tanto você? De nada adiantaria ter a noite e o amanhecer se tudo o mais que eu possa ter não venha tendo você.
Ter a vida e o viver é ter o viver com você.
Você, nome espalhado numa simples palavras, mas tão imensa e tudo, pois você é quem eu amo. E amo.


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