SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de julho de 2014

O AUTO DA CANÇÃO DE ADEUS


Rangel Alves da Costa*


Chicó correu na direção de João Grilo e disse-lhe que tinha uma notícia muito triste para lhe dar. Gracejando, com aquele jeito de eterna despreocupação, João disse que não havia notícia ruim que não lhe chegasse como mais uma, pois naquele sertão não se ouvia outra coisa. Mas Chicó foi logo dizendo: Ariano Suassuna morreu!
“Mas não acredito. Um homem que já me fez morrer e depois me ressuscitou não pode ter morrido. Deve ser mais uma história criada por aquele invencionista de mão cheia pra pregar susto em todo mundo. Ademais, Ariano não morre nunca. Esse gostinho não vai dar à morte Caetana de jeito nenhum. Esperto como sempre foi, no dia que partir dessa pra melhor vai diretinho diante do altar da Compadecida. Como fez comigo e até com cabra ruim, vai ter o caminho de volta garantido na mesma hora. Então Chicó, tu tá brincando não é homem?”.
Quando viu o companheiro não responder e entristecido derramar lágrima pela face queimada de sol, então João Grilo se ajoelhou, ergueu as mãos para o alto e disse:
“Manuel, Manuel, Nosso Senhor Jesus Cristo, chamai vossa mãe Nossa Senhora, a Compadecida, para receber essa boa alma que chega aos portais de tua casa. A danada da Caetana arrebanhou de nós aquele que cuidava de guardar no altar da história a raiz popular da cultura nordestina.  O nome dele é Ariano Suassuna, mas também responde por João Grilo, Chicó, Caroba, Dom Pedro Quaderna e tantos outros apelidos, mas tendo o cuidado de não pronunciar nenhum estrangeirismo, sob pena de ele preferir ir pro outro lado. Ai minha Compadecida, fazei com que ele, antes de retornar, conte uma história daquelas. Uma coisa bem bonita falando sobre uma mulher vestida de sol, que fale sobre os crentes fincando a pedra do reino para esperar o seu rei Dom Sebastião, ou sobre o avarento que tanto guardou o dinheiro na porca que perdeu seu valor. Sobre Chicó e João Grilo, Padre João, Severino e os demais a Compadecida já sabe tudo, até mesmo porque foi a Senhora quem fez a brilhante defesa em nome do povo oprimido do sertão. E foi tão boa defensora desse povo sofrido, vitimado pelas circunstâncias da desvalia, que o coisa ruim teve de botar o rabinho entre as pernas e ir fazer maldade noutro lugar. E que beleza, minha santa Compadecida, quando nas suas palavras surgiam feições de humildes sertanejos, de desamparados e esquecidos, de uma gente cuja sina é ter de se fazer vencedor num meio onde a vitória maior é a da sobrevivência. Mas depois não se esqueça de mandar ele de volta, até porque o povo nordestino e também o brasileiro não vive sem a presença de Ariano Suassuna. Tanto é assim, Compadecida, que bastou que ele subisse até aí e o povo já se danou a entristecer e a chorar. Chicó taí como exemplo maior de sofrimento pelo adeus do grande amigo de mouros e cristãos. Juntamente com Manuel, proseie um tantinho com ele e depois mande ligeiro de volta, pois Chicó, mesmo se molhando em lágrima, já tá preparando a gaita para recebê-lo em festa. E vem gente das distâncias canavieiras, dos folguedos pelos arredores, com cavalhadas e pífanos, zabumbas e novenários. Vai ser uma festança, Compadecida. E festa das grandes, pois Ariano sempre foi o povo nordestino na sua expressão maior. O povo com seu autêntico linguajar, sua fé incontida, suas crenças e tradições, seu jeito tão próprio de ser. Por isso, Compadecida, que o receba sorridente e invoque junto a seu filho Nosso Senhor Jesus Cristo um paraíso com feição nordestina pra ele, e que tenha a simplicidade e a singeleza daquilo que tanto reverenciou. Mas só depois de seu retorno entre nós, pois o povo já tá com cantiga na boca e estandartes à mão para agradecê-lo por tudo que fez”.
E depois disso, os dois começaram a saltitar em meio a lágrimas. Era a dança de despedida, o bailado caboclo de tristeza e adeus. E não só pela partida daquele que deu vida a tantos e inesquecíveis personagens com feições e modos tipicamente nordestinos, mas também como despedida a João Ubaldo Ribeiro, outro grande literato que transpôs para os livros a saga do povo brasileiro na sua reinvenção pela existência. E sem perceber também louvavam os feitos de Rubem Alves, o educador que lutou pela humanização do saber.
Chicó e João Grilo talvez quisessem rasgar folhas no calendário. E com razão, pois o mês de julho foi marcadamente triste para a cultura nacional. A literatura e a educação tiveram percursos de dor e imensa agonia com as notícias que foram se espalhando ao longo do calendário. Em poucos dias e três dos maiores expoentes da cultura nacional resolveram ir escrever seus livros, contar suas histórias e espalhar seus ensinamentos noutras paragens. João Ubaldo Ribeiro partiu aos 73 anos, no dia 18. Rubem Alves se despediu no dia 19, aos 80 anos. E Ariano Suassuna, aos 87 anos, ao entardecer do dia 23. E tudo no mês de julho. Quer dizer, em apenas seis dias e o Brasil - senão o mundo - perdeu três filhos ilustres.
Igualmente a Ariano, João Ubaldo tantas vezes fez da terra nordestina um cenário vivo de seus romances. O regionalismo foi marco constante em sua obra, principalmente retratando os conflitos do homem perante o seu meio. Em Sargento Getúlio, por exemplo, traça o perfil de um sertão entremeado de brutalidades, enclausuramento nas suas próprias mazelas e posturas comportamentais que não se modificam em nome da honra, ainda que os erros sejam reconhecidos. Mas enquanto Ariano privilegia o mítico, a candura e a religiosidade do povo, João Ubaldo vai descortinando a postura do homem perante o seu mundo sofrido.
Em Rubem Alves também a preocupação pela valorização do homem a partir de meios eficazes no ato de educar. Uma educação que se alegre e se encante no ato de transmissão do conhecimento. E neste aspecto uma proximidade com a obra de Ariano e João Ubaldo: a voz íntima, interiorizada no povo, deve ser ouvida e valorizada, sob pena de querer ensinar-lhe o universo sem antes conhecer o seu mundo.
E eis, num só estandarte trazido pelo povo da mata nordestina, as palavras que bem sintetizam a devoção por Ariano, João Ubaldo e Rubem Alves: A amizade é tão grande que quando pensa que parte permanece comigo.


Poeta e cronista
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Sentimento do mundo (Poesia)


Sentimento do mundo


Nada que cause sofrimento
pode ser glorioso à história
assim toda guerra é tormento
que jamais causa vitória

nada que escravize a vida
pode ser normal na existência
assim a submissão é ferida
que não merece clemência

nada que submeta o igual
pode ser aceito como poder
assim querer tornar desigual
faz a tirania florescer

todo o sim que se faz não
preferindo o espinho à flor
enche de sombras o coração
sequer reconhece o amor.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 686


Rangel Alves da Costa*


“Ainda não sei qual a direção...”.
“Se ao norte...”.
“Ou se ao sul...”.
“Também não sei a estrada...”.
“Se por vereda...”.
“Se por caminho...”.
“Também são sei a hora...”.
“Se pela manhã...”.
“Ou se ao anoitecer...”.
“Mas partirei...”.
“Não duvido que partirei...”.
“Nada me resta esperar...”.
“Nada tenho aqui para ficar...”.
“Rasguei as cartas antigas...”.
“Rasguei bilhetes e versos...”.
“Rasguei retratos e fotografias...”.
“Joguei fora o espelho...”.
“O sorriso amarelado na parede...”.
“O velho baú empoeirado...”.
“Até minha sombra joguei...”.
“Não há flor no jardim...”.
“Não há fruta no quintal...”.
“Não há caqueiro com rosas...”.
“Não há borboleta colorida...”.
“Nem passarinho nem beija-flor...”.
“Que o vento faça a curva...”.
“Que a brisa mude o destino...”.
“Que a lua ilumine outro lugar...”.
“Já fechei a janela...”.
“Fecharei a porta...”.
“Gota de água no cantil...”.
“Farinha seca no embornal...”.
“Pés descalços...”.
“Cabelos soltos...”.
“Nada no bolso...”.
“Nunca mais tive nada no bolso...”.
“Nada temerei...”.
“Eis que enfrentei de tudo...”.
“Labirintos já são conhecidos...”.
“Curvas não assustarão...”.
“Espinhos são meus amigos...”.
“As pedras até conversam comigo...”.
“Houve um tempo...”.
“Que era somente tempo de ficar...”.
“Tinha amor...”.
“Tinha esperança...”.
“E um jardim na primavera...”.
“Mais eis o desejo do tempo...”.
“Eis a sorte da vida...”.
“Que agora me faz...”.
“A ir atrás de um rosto no mundo...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 30 de julho de 2014

SERTÃO SEM FOLE (E A MORTE LENTA DA TRADIÇÃO SERTANEJA)


Rangel Alves da Costa*


Está se aproximando a festa mais tradicional de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo e região, a sempre esperada comemoração de agosto em louvor à Padroeira Nossa Senhora da Conceição. Original e tradicionalmente comemorada entre os dias 13 a 15 de agosto, em quaisquer dias da semana que caíssem, agora foi dividida. No fim de semana anterior (08 a 10) haverá a festança musical; e nos dias 13 a 15 as comemorações religiosas.
Absolutamente nada contra tal divisão, até mesmo porque se evita que donos de veículos ignorantes abram as malas com sons potentes e ensurdecedores bem ao lado da igreja e nos horários dos ofícios religiosos. E já aconteceu de ninguém conseguir sequer se reunir no templo ou arredores por causa da violência estrondosa nos carros perfilhados pela praça. Donos de veículos verdadeiramente desrespeitosos e estúpidos.
Entretanto, há uma crítica que não pode deixar de ser feita com relação à programação musical. Nada em desfavor dos gostos dos jovens que admiram o que bem entenderem, indo do arrocha à breguice eletrônica, do falso sertanejo a essas bandas de meia pataca que tanto fazem sucesso por lá. Há de considerar, porém, que a população do município não é formada apenas por jovens de gostos musicais duvidosos. Felizmente ainda há uma parcela da população - e talvez a maior - que gosta e admira a música própria da terra.
E falar em música própria da terra invariavelmente se diz acerca do forró, do forró pé-de-serra, do chinelado no salão, do ralabucho comendo no centro, até o dia amanhecer. E falar em forró implica em citar o sanfoneiro, forrozeiro, zabumbeiro, cantador, sertanejo dançador, matuto apreciador, piso de barro batido, sala de reboco, salão, cachaça e cerveja, suor escorrendo e molhando a roupa nova de festa.  E tais figuras, personagens, gostos e situações, parecem nem existir mais nas distâncias sertanejas.
Não se deve esquecer que todo e qualquer outro ritmo ou estilo musical que chegue ao sertão sem ser forró, repente ou violado caipira, deverá ser visto como alheio às tradições e costumes do povo nordestino, principalmente o sertanejo. Engana-se quem achar que o forró é coisa de sertanejo velho e ultrapassado e que sua dança é coisa de matuto. A sua autenticidade é tamanha que os centros de tradições nordestinas vivem completamente cheios no sul do país. E por que o desprezo da própria juventude sertaneja pelo seu ritmo tão fascinante e encantador?
Sei que os modismos musicais e a proliferação dessas bandalheiras de estilos e músicas sempre iguais possuem o dom de atrair pessoas descompromissadas com a valorização das coisas próprias, ainda que reconhecidamente belas. Assim acontece porque os jovens procuram no volúvel o preenchimento de suas instabilidades comportamentais. E muitas vezes acabam, por vergonha de serem autenticamente sertanejos, preferindo se requebrar diante de músicas vulgares, apelativas ou de duplo sentido.
Mas não é somente culpa do jovem, vez que também a falta de opção o faz admirador de qualquer coisa imprestável. E a verdade é que não se tem mais música sertaneja no próprio sertão. Em tempos passados, nada mais que cinco salões dispunham de forró e forrozeiros da melhor qualidade. As festanças eram abrilhantadas por sanfoneiros do quilate de Zé Aleixo, Dudu, Zé Goiti, Agenor da Barra, Dida e tantos outros.
Não se deve esquecer que ao lado dos forrós havia também bailes românticos e com conjuntos e bandas musicais realmente decentes. Pelo salão do mercado já passaram, por exemplo, Los Guaranis, Tuaregs, Embalo D, Dissonantes, R Som 7, Embalo Z, e tantos outros. E em espaço aberto também já foram contratados artistas famosos, de renome no cenário musical. Houve até uma época com oito dias de festa e a cada dia uma atração diferente.
Mais recentemente, Miltinho - e que saudosa memória! - chamou para si a responsabilidade de manter a tradição forrozeira em Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo. Aqueles que não gostassem das bandalheiras na Praça de Eventos corriam para o salão de seu bar e lá a festança estava garantida. Mas o nosso amigo, o grande guardião forrozeiro, já não está entre nós. E agora?   
A verdade é que após a privatização da Praça de Eventos grande parte da população poço-redondense ficou sem opções para comemorar sua padroeira. Os empresários se negam veementemente a contratar outra coisa que não seja a mesmice de sempre, mudando somente o nome. Os forrós rarearam-se de vez, apenas um ou outro pelos escondidos, e o que se tem mesmo é a triste visão de uma juventude se delirando com aquilo que nada tem a ver com sua história ou com o seu mundo.
Por isso, “Chora sanfoninha, chora, chora, chora sanfoninha meu amor...”.


Poeta e cronista
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Esperando você (Poesia)


Esperando você


Batem à porta
é alguém que chega
mas de tanto esperar
ouço a porta bater
sem ninguém chegar

a janela dança
é notícia que vem
trazida pela ventania
mas estando inerte
nenhuma alegria

meu mundo é assim
de tristeza e solidão
ouvindo a porta bater
olhando para a janela
esperando por você.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 685


Rangel Alves da Costa*


“Tudo tão simples...”.
“Uma vida singela...”.
“Porta sempre aberta...”.
“Roseiral na janela...”.
“Retrato na parede...”.
“Um passado antigo...”.
“Sorriso amarelado...”.
“Um tempo vivido...”.
“Uma mesa rústica...”.
“Um jarro de flor...”.
“Plástico avermelhado...”.
“Que já empoeirou...”.
“Um pote de barro...”.
“Uma moringa chorosa...”.
“Dois bancos de troncos...”.
“Alguns vasilhames...”.
“Num canto a enxada...”.
“No outro um oratório...”.
“Num canto a foice...”.
“No outro a cumbuca...”.
“Na parede uma rede...”.
“Na outra a gaiola...”.
“Mas sem passarinho...”.
“Que ganhou liberdade...”.
“Borboleta voeja...”.
“Um cachorro latindo...”.
“Um chapéu encourado...”.
“Uma sela e um gibão...”.
“Um rádio de pilha...”.
“Um pouco de feijão...”.
“Um menino traquina...”.
“Brincando com osso...”.
“Um calango corre apressado...”.
“O menino atrás...”.
“Eita vida meu Deus!”.
“O sol inclemente...”.
“O chão sem ter flor...”.
“O chão sem semente...”.
“A terra dormente...”.
“E passa o dia...”.
“Vem a noite de lua...”.
“Uma lua imensa...”.
“Um luar sertanejo...”.
“O cheiro de café...”.
“Torrado no pilão...”.
“Toucinho com farinha...”.
“E tudo tão bom...”.
“Uma cantiga sem ninguém cantar...”.
“A prece de fé...”.
“E a vida e a vida...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 29 de julho de 2014

O CORONEL NA CADEIRA


Rangel Alves da Costa*


Assento antigo a cadeira do coronel. De remota madeira de lei, envernizada pelo tempo, na varanda se balançando desde as andanças da chibata e do cuspe secando ao lado. Dali partiu ordens para tocaias, emboscadas e mortes, no aprazamento até o cuspe secar. Era esse o costume coronelista: ordenar e ter sua ordem cumprida antes de o cuspe secar. E cuspia mesmo, até na cara do jagunço, do matador.
A cadeira de balanço do coronel parecia fincada na pedra da varanda. Era de balanço, mas permanecia imóvel quando o seu dono sentava nela. O dono do mundo não gostava do vai e vem da madeira, eis que lhe parecia festeiro demais. Sentava o traseiro ali e movia apenas a cabeça e as mãos. Gostava mesmo de ficar longo tempo numa quietude de mármore, imóvel, lançando o olhar pelas vastidões de seu mando. Mas o seu mundo de mando avançava por toda a região.
Casarão antigo, construído por mãos negras marcadas pelos grilhões e com pedras cimentadas pelo suor e sangue de um povo escravizado e tratado como bicho. Construção secular, imensa, com paredes de quase um metro de espessura, muitos e espaçosos aposentos, culminando com varandas na frente e nas laterais. Nos fundos quartos fechados, cheios de armas, munições e apetrechos de selvagerias. E assim nas duas gerações coronelistas que ali fincou moradia, poder e mando.
Nas sombras de qualquer hora do dia, ainda que adiante se mostrasse um sol de fornalha, o velho coronel aparecia na vaga da imensa porta da sala principal. Era ali dentro onde recebia outros coronéis de mesma patente forjada na vindita de sangue, convidados ilustres, jagunços e capangas, e de onde fazia emanar seu poder. Mas poucos tinham encorajamento suficiente para surgir diante daquele que havia se tornado em verdadeira lenda naquelas vastidões nordestinas.
O medo era justificado, pois ninguém sabia como seria tratado, nem mesmo políticos e poderosos da região. Mas fosse quem fosse, adentrando naquela porta era recebido por um homem corpulento, de estatura mediana, vestindo sempre terno de linho branco amarrotado, de chapéu largo, arma à mostra na cintura, e de costas. Sim, de costas e com as mãos para trás e a cabeça voltada para um enigmático objeto na parede: um pedaço de tronco com marcas de tiros e uns respingos escurecidos. Era sangue.
De pouca conversa e muita ordem, falava muito mais pelo olhar. O seu cabra de confiança, o jagunço maior em quem confiava e a quem dera a chefia sobre os demais, sabia muito bem traduzir aquele olhar, desde a mudança no brilho ao jeito como mirava adiante. Conhecia o olhar odioso, mortal, feroz, quando o patrão sequer movia as pálpebras. Com olhos fixos na distância, como se não houvesse ninguém ou nada à sua frente, bastava dizer o nome. E o jagunço já sabia que era para tocaiar e matar.
Com passos lentos, no compasso da idade, caminhava em direção à velha cadeira. Mas não sentava antes de andar um pouco mais até a divisa entre a varanda e as terras que começavam no passo seguinte. Ao redor umas sete a oito casas onde permitia a moradia de velhos trabalhadores, todos parentes dos escravos que noutros tempos sustentaram os inícios da riqueza coronelista. Mas não permitia que nenhum jagunço morasse ali. A jagunçada vivia enfurnada em toscas moradias mataria adentro.
Mesmo não morando ao lado do casarão, dia e noite jagunços mantinham uma impecável vigilância. Quem chegasse perto do casarão sequer imaginava que estava sendo vigiado pelos cantos, por trás dos tufos, nos escondidos de todo lugar. Certa feita, o coronel recebeu a visita de um desafeto decidido a se ajoelhar diante dele para ser perdoado. Foi recebido, prometeu reconhecer a primazia do coronel em toda a região e deixou o local com um sorriso e um aperto de mão. Mas assim que montou no alazão e passou da porteira foi acertado no meio da testa. Bastou um tiro e o homem metido a poderoso tombou já morto. E assim aconteceu porque o jagunço tinha avistado o sinal pra matar: o coronel apareceu na varanda e desceu o chapéu até o peito. Era a senha da morte.
Alongava o olhar pelos arredores, mirava de canto a outro, depois ia se espalhar na cadeira. De vez em quando acenava ao sentar e logo um copo com cachaça pura lhe chegava às mãos. Bebia de uma talagada só. Depois acendia um imenso charuto e começava a soltar baforadas lentas. A essa altura o seu olhar já mirava fixamente algum lugar nos arredores. Mas certamente não procurava enxergar nada, pois somente a visão da mente ia percorrendo caminhos, rebuscando memórias, encontrando visões do passado.
Viagem mental, no pensamento, mas acaso um espelho pudesse surgir naqueles olhos sem brilho certamente mostraria cenas e situações verdadeiramente espantosas. Ainda jovem, apontando a arma e disparando contra um desvalido sertanejo rogando pela vida a seus pés. Matou o coitado inocente para mostrar valentia ao pai. Ainda jovem, rasgando a roupa de uma menina ali mesmo da fazenda numa brutalidade desmedida. E depois aquele corpo infantil todo ensanguentado por cima do capim seco. E quanta impassividade no olhar.
Avistava o seu pai morto ali mesmo naquela cadeira. Depois de tantas atrocidades, ele mesmo resolvera dar cabo à vida cometendo suicídio. Enxergava a face da esposa morta ainda jovem e depois de tanto sofrer pelas suas mãos violentas. Ouvia o choro daquelas tantas meninas estupradas e depois pisoteadas. E também o choro de meninos que talvez fossem seus filhos. E sentia cheiro putrefato de sangue velho, pisado, esquecido pelas veredas. E ouvia sons de tiros, gemidos, gritos lancinantes. E via a morte por todo lugar. E os olhos continuavam impassíveis.
Um dia, num entardecer, as mesmas imagens lhe chegando à mente. E agora mais aterrorizantes. Viu-se apertando o gatilho em direção ao pai. Sim, não houve suicídio algum. Ele era o assassino. Mas havia chegado o seu dia. E mais tarde o velho coronel foi encontrado morto na sua cadeira de balanço. Um ataque fulminante. Era a morte ajustando contas. E uma lágrima ainda parecia descer daquele velho espelho sem luz.


Poeta e cronista
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A moça bonita e o moço feio


A moça bonita e o moço feio


Moça bonita, moça bonita
que deseje aceitar ou não
mas quem a admira tanto
é um moço feio, muito feio

a moça é bonita sim
parece uma deusa sonhada
mas dizem que ele é feio
talvez o mais feio dos feios

mas não conhecem o jovem
e o julgam por ser diferente
gosta de conversar sozinho
falar com pássaros e flores

e também não se importa
com as zombarias que surgem
dizendo que é muito feio
e que pode ser até perigoso

a moça também o achava feio
até que ele lhe ofereceu uma flor
e lhe disse palavras singelas
tão bonitas quanto a primavera

e porque ela aceitou a flor
e depois a chamou de meu amor
a moça se tornou também feia
aos olhos e bocas maldosos

e a moça agora tão feia
e o moço também tão feio
nem ouviam o que diziam
e viviam o amor mais bonito.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 684


Rangel Alves da Costa*


“Um presente ao amor...”.
“Singeleza ao amor...”.
“O amor quer ternura...”.
“O amor quer afeição...”.
“O amor que meiguice...”.
“Um presentinho ao amor...”.
“Mas não o iluda...”.
“Com o brilho das joias...”.
“Com a frieza dos diamantes...”.
“Com a falsidade do ouro...”.
“Eis que o amor...”.
“Não quer requinte nem luxo...”.
“Nem florescências ou espelhamentos...”.
“O amor não quer fantasias...”.
“E muito menos ilusões...”.
“Mas o amor sempre se alegra...”.
“Sempre mostra contentamento...”.
“Ao ser recordado...”.
“Com um verso cativante...”.
“Com uma concha de mar...”.
“Com um diadema em cipó...”.
“Com uma fruta da estação...”.
“Com belas flores do campo...”.
“Com a singeleza da lembrança...”.
“E acaso deseje...”.
“Cativar ainda mais o amor...”.
“Então procure a sinceridade...”.
“Seja certeza e verdade...”.
“Respeite o outro amado...”.
“Compartilhe a felicidade...”.
“Seja amigo e companheiro...”.
“Mostre sentir amor verdadeiro...”.
“Mas não pela palavra...”.
“E muito mais pela ação...”.
“Pois o amor quer ser amado...”.
“O amor que ser confiado...”.
“Ser dádiva e doação...”.
“Presente maior ao coração...”.
“Ser porta e janela do ser...”.
“Ser paisagem e encantamento...”.
“Ser motivo maior no momento...”.
“Causar prazer pela vida...”.
“Causar no âmago a felicidade...”.
“E tudo de modo simples...”.
“Tudo bem singelo...”.
“Apenas com a riqueza...”.
“De um amor tão essencialmente puro...”.
“Que nem será apenas amor...”.
“Mas seiva da existência...”.
“E doce razão de viver...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 28 de julho de 2014

CHUVAS DE INVERNADA


Rangel Alves da Costa*


Chegam-me boas notícias do sertão. São alentos que caem como bençãos sobre um povo sofrido. Os relatos dizem da presença do clima diferenciado nesta época do ano e das constantes chuvas que vêm caindo por lá. Também das paisagens renascidas esverdeadas, das águas juntadas nos tanques e barragens e das esperanças tantas refletidas nos olhos sorridentes do sertanejo. Até quando será difícil saber, eis que sertão anoitece na festa da lua grande e amanhece abraçado pelo sol imenso.
Quando não está chovendo e o sol reaparece fogoso, novamente o calor se espalha pelos quadrantes. Mas nesta época é diferente, pois não há calor que não vista um casaco de frio após o entardecer. Da Boca da Mata em diante, ou da região de Nossa da Glória adentrando o sertão, a intensidade de frio é certeira entre os meses de julho a setembro. Em determinados lugares a frieza é tão grande que fogueiras surgem nas noites sertanejas relembrando o São João. E ao redor famílias inteiras enroladinhas em cobertores e ainda assim batendo o queixo. Desse jeito já está por lá.
Certamente que os corações sertanejos estão pulsando mais forte, mais cheios de felicidade. Não era pra ser diferente. Não há nada mais alentador e comovente que sentir as águas se derramando, enchendo as fontes e transformando as paisagens. Depois de tanto tempo de estiagem, com bicho e homem enganando a sede com esmola na lata, com pastagem esturricando e sem ao menos um restinho de palma para matar a fome do que restou da criação, o sofrimento é aliviado em cada pingo d’água que cai. O sertanejo sabe que logo outra seca surgirá devorando tudo, porém se faz de esquecido para celebrar as grandezas do momento.
O tempo certo do plantio já passou, pois em começos de abril a terra já deve ser preparada para receber os grãos. Se o tempo for bom não faltará o milho verde para assar na fogueira junina. Mas tudo na dependência do clima, das tendências da estação, do surgimento de nuvens carregadas. E raramente assim acontece. Chega o São João e nem um pé de planta vingada na terra seca. Por isso mesmo que muitos sertanejos arriscam os grãos guardados quando chegam as trovoadas típicas desse período. O chão encharcado, gordo, vai engolindo a semente para talvez germinar. As chuvas não faltam, por enquanto não.
São as chamadas chuvas de invernada. Diferentemente do conceito que se dá em outras regiões do país e outras situações, quando a invernada é tida como local para confinamento do gado de engorda ou às pastagens surgidas após um período mais chuvoso, o sertanejo a denomina como a constância de chuvas fora do período esperado. E principalmente por causa das chuvaradas que chegam tardias, vez que é entre os meses de abril a maio que os sertanejos esperam as trovoadas.
Acerca da invernada, dizem os livros que é o período de chuvas prolongadas, contínuas durante a estação que, no Norte e no Nordeste, é impropriamente chamada de inverno. Ora, mas nada impróprio na concepção sertaneja, vez que para os que lidam com a terra, que plantam e dela dependem para sobreviver, “inverno bom” é qualquer estação bem chuvosa, com chuva continuamente caindo para garantir a terra molhada, e principalmente se for depois do inverno.
É, pois, no contexto que se apresenta, quando a chuvarada mais forte já encheu as fontes e agora vai caindo diariamente com mais ou menos força, que o velho sertanejo chega diante do vizinho de roçado e diz que “agora invernou de vez”. O outro responde “que a invernança demorou a chegar, mas chegou”. E olham pra cima e avistam o tempo fechado, horizontes carregados de nuvens prenhes, uma visão totalmente diferente daquela que estão acostumados a suportar.  E olham ao redor e divisam a vaquinha de couro molhado e boca cheia, os sons dos bichos enfurnados nas tocas. E também um cágado surgido da mata para anunciar que logo cairá trovoada das grandes.
Mas não só no sertão a invernada muda os cenários e as paisagens. Por todo o estado os sinais de chuvas se anunciam desde o amanhecer. Todo Sergipe está molhado, chuvoso, sentindo a renovação da natureza, das pastagens, das plantações. Mas também alagado em muitos lugares, com rios e córregos transbordando e causando aperreios em muita gente. E um sofrimento danado àquelas famílias morando em barracos, em casas de barro, em lugares de constantes riscos de desmoronamentos.
Aracaju sofre sua sina de invernada. Não só de invernada como de qualquer chuvarada mais forte. Basta chover um pouquinho a mais que a cidade inteira vira um caos, com ruas intransitáveis, bueiros transbordando, esquinas que mais parecem açudes. Igualmente os sertanejos, os administradores municipais também parecem gostar do acúmulo de águas pela cidade. E por isso nada fazem para resolver os problemas surgidos a cada pé-d’água. Os mesmos problemas surgem sempre nos mesmos lugares e absolutamente nada é feito para diminuir os estragos.
E assim a chuva vai caindo por todo lugar. São águas novas que lavam as ruas, molham a terra, alentam os espíritos, transformam o clima, causam uma cuia de nostalgia. Tão bom adormecer ouvindo o barulho dos pingos no telhado, se despejando lá fora. Tão bom acordar com a manhã molhada e a vida chamando a semear. A cidade apenas sente e sofre aqui e acolá com as chuvas caídas, mas todo o sertão se encanta e prazerosamente brada pela dádiva recebida.


Poeta e cronista
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Silencioso amor (Poesia)


Silencioso amor


Que romantismo na vida
achei-a tão bonita e sorri
levemente pisquei um olho
ofereci uma maçã açucarada
joguei bilhetinho pela janela
deixei poema no seu caderno
lancei beijo na ventania
olhava e mirava e queria
qualquer resposta da menina

um dia ao entardecer
passei diante de sua janela
joguei uma pedrinha no quarto
ela apareceu me olhando
e levantei uma flor bonita
depois escrevi um nome no ar
e quando eu me aproximava
levando a esperança no olhar
então ela começou a falar:
compreendo tudo o que sente
mas não entendo o silêncio
nesta boca feita para beijar
e todo o amor sentido revelar.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 683


Rangel Alves da Costa*


“Nada contra nada...”.
“Mas tudo na medida...”.
“Tudo com justiça...”.
“Na dádiva de todos...”.
“Todo homem é ser...”.
“E todo ser humano...”.
“Igualmente merecedor...”.
“De seu quinhão na vida...”.
“Nada contra nada...”.
“Mas contra o absurdo...”.
“Contra o privilégio...”.
“Contra dar a uns...”.
“E a outros não...”.
“Nada contra a riqueza...”.
“Mas tão injusta a pobreza...”.
“Nada contra o milhão...”.
“Mas é preciso o pão...”.
“Nada contra a regalia...”.
“Mas existe a desvalia...”.
“Há uma mesa farta...”.
“E há uma mesa que falta...”.
“Há o carro importado...”.
“E há o chinelo quebrado...”.
“Há o perfume francês...”.
“E há a conta do mês...”.
“Há o brilho e o luxo...”.
“E tantos vivendo no lixo...”.
“Há viagens a passeio...”.
“E há na esquina um receio...”.
“Há o médico e remédio...”.
“E há a doença e o tédio...”.
“Há conta e contracheque...”.
“Há verminose no moleque...”.
“Há escola particular...”.
“E tantos sem estudar...”.
“Há casarões com vidraças...”.
“E há casebres com fumaças...”.
“Há dinheiro na certeira...”.
“E há resto de fim de feira...”.
“Há nome e sobrenome...”.
“E gente apenas prenome...”.
“Há planos e desejos...”.
“E crianças com os sobejos...”.
“Há emprego e função...”.
“E desemprego e aflição...”.
“Há sorrisos e alegrias...”.
“E noites sem ter os dias...”.
“Mas nada contra nada...”.
“Apenas que tudo fosse dividido...”.
“Ou partilhado na medida do merecimento...”.
“E seria muito ou quase nada...”.
“Mas seria apenas o justo...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

domingo, 27 de julho de 2014

CONFISSÕES


Rangel Alves da Costa*


Fui adiando o quanto pude, mas acabei me confessando que tenho vivido menos que o merecido. Difícil tal reconhecimento, pois exigindo um olhar interior já acomodado com os passos de cada dia.
É realmente difícil reconhecer que a vida ao redor é mais viva e pulsante que o imaginado nela existente. Algo assim que surge iluminada demais e eu permanecendo - por querer próprio - à luz de velas e candeeiros e o cheiro de incenso.
Também difícil que entendam uma pessoa viver no asfalto e continuamente se imaginar pisando descalço na terra morena do sertão. E por isso mesmo renegar o cimento, o barulho, o vai e vem da cidade, a modernidade, pelo pensamento que vive voltado para situações muito mais sublimes e singelas.
Por isso que o tempo passa, a idade avança, tudo se transforma, e eu me conservando ainda matuto, ainda sertanejo, sem jamais aceitar completamente estar vivendo noutro mundo, feito um despatriado do seu berço, do seu sol e de sua lua.
Por estar distante, por viver distante, sinto-me apenas como um forasteiro que nunca acostuma com os vizinhos que não são meus nem a vida que não é minha. Tantos e tantos conhecidos, mas não como aqueles velhos amigos, aqueles irmãos de uma mãe terra sertaneja afetuosa e cativante.
Por isso mesmo não consigo manter um relacionamento afetuoso com a cidade grande. Para se ter uma ideia, há mais de dez anos que não tomo um banho de mar, mesmo morando ao redor de uma imensidão de praias bonitas.
Desde mais de cinco anos que sequer visito uma orla de praia, caminho por suas areias, tomo uma água de coco, lanço o olhar naquelas distâncias molhadas. Já nem sei desde quantos anos que não sento num barzinho para conversar com conhecidos, colocar as conversas em dia, rememorar as vivências de outros tempos.
Ninguém me encontrará passeando pelos shoppings ou sentado numa das mesas das praças de alimentação. Tenho livro à venda na Escariz, mas jamais me dei o prazer de apreciar minha obra na vitrine ou estante. Recebo convites para eventos literários, lançamentos, peças teatrais, exposições, confraternizações. Até confirmo, mas acabo desistindo de participar de tudo.
Dificilmente alguém me avistará almoçando ou jantando num restaurante. E tenho motivos para tal. Não gosto de comer com requinte e sofisticação nem me sinto bem envolto no mundo das etiquetas e frescuras.
Já recebi convites para participar de programas de rádio e televisão, para falar sobre a minha obra e a de meu pai, mas acabo inventando outros afazeres. Amigos me procuram para dizer que ouviram comentários sobre meus escritos nas emissoras de rádio. Apenas agradeço, mas não posso dizer que também ouvi.
Minha rotina é conhecida demais, e a mesma de sempre. Do escritório aos fóruns, da casa ao mercado e mercadinho. E raramente ao centro ou qualquer outro lugar na cidade, assim mesmo quando tenho algo inadiável para resolver.
Mas assim que posso, lá pelas quatro da tarde, o meu passo certeiro segue em direção à catedral. A missa começa perto das quatro e meia, mas reservo uns dez minutos para apreciar a paisagem da praça ao redor. E depois o mesmo caminho de retorno, quando não resolvo passar na Capela do São Salvador.
Todos os dias acordo antes das três da madrugada, ainda que vá deitar um pouco mais tarde. A rede parece me despertar pontualmente. E logo uma prece, um café forte e sem açúcar, um banho, e a primeira letra escrita. Antes das três e meia já estou escrevendo, letra a letra, ponto a ponto.
Verdade é que não sei mais ser ou fazer diferente. Confesso que é uma rotina transformada em mesmice, costumeira demais, mas pouco pode ser mudado. Ora, qual o prazer de sentar num barzinho se não estou bebendo sequer cerveja, qual o prazer de uma balada se não danço nem valsa?
Sim, alguém poderia dizer que dividir uma mesa com amigos já é um prazer em si. Mas o problema é que também evito o máximo conversar qualquer coisa além do necessário, e mesa de bar é uma babel de discordâncias. Gosto muito mais do silêncio e da reflexão a qualquer palavra que me chegue vã.
Mas quem tiver solidão e não quiser mais pode me ofertar, pois sou devoto do seu silêncio e de sua mudez. Não a solidão entristecida, dolorosa, angustiante, mas aquela que faz distanciar da realidade e aproximar de nós mesmos.  
Tudo em mim poderia ser sintetizado nos versos da música: “Eu que tinha tudo, hoje estou mudo, estou mudado... Não estou bem certo se ainda vou sorrir sem um travo de amargura...”. Na verdade, eu “Daria tudo por meu mundo e nada mais...”.


Poeta e cronista
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Canto da terra (Poesia)


Canto da terra

Abracei o sol
e beijei a lua
mirei o arrebol
e a planta nua
adorei a semente
e amei o grão
amor pela gente
paixão pelo chão
bicho que berra
bicho que grita
todo ser da terra
gente tão bonita
bela a catingueira
e o mandacaru
o bolo de feira
o araçá e o umbu
noite sertaneja
luar estrelado
a vida que beija
sertão abençoado.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 682


Rangel Alves da Costa*


“Nascer...”.
“Ser criança...”.
“Brincar...”.
“Ser paz...”.
“Ser inocência...”.
“Ser tudo...”.
“Um rei...”.
“Um príncipe...”.
“Um guerreiro...”.
“Ter cavalo de pau...”.
“Ter carrinho de mão...”.
“Ter boi de barro...”.
“Jogar bola...”.
“Correr debaixo da lua...”.
“Olhar adiante...”.
“Avistar alguém...”.
“Um sorriso...”.
“Desejo de ser correspondido...”.
“Um amor nascido...”.
“Um amor bonito...”.
“Um amor criança...”.
“E fazer um verso...”.
“Oferecer uma flor...”.
“Uma maçã do amor...”.
“Uma fruta de quintal...”.
“Mas ela menina...”.
“Brincando de roda...”.
“Rodando alegria...”.
“Não aceitou a flor...”.
“Não aceitou o verso...”.
“Não devolveu o sorriso...”.
“Não disse sim...”.
“Mas também não disse não...”.
“E o tempo...”.
“Eis o tempo que passa...”.
“Já não há inocência...”.
“O desejo já brota...”.
“O sentimento aflora...”.
“E aquela menina...”.
“E aquele menino...”.
“Distanciam-se na vida...”.
“Nunca mais se avistam...”.
“Até que um dia...”.
“Numa tarde qualquer...”.
“E os passos se cruzam...”.
“Os olhos sorriem...”.
“As esperanças florescem...”.
“No amor enfim...”.
“No destino...”.
“Destino...”.
“Destino...”.


Poeta e cronista
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sábado, 26 de julho de 2014

O RIO DA MINHA ALDEIA


Rangel Alves da Costa*



Fernando Pessoa relata em traços poéticos o rio que passa pela sua aldeia. E diz que não é o maior nem o mais caudaloso do mundo, mas é o mais belo porque o rio que passa pela sua aldeia. Não importa a grandiosidade, sua pujança, sua força fluvial, pois o que importa é a sua presença na vida ribeirinha e diante das pessoas que com ele convive. Eu também tinha um rio assim, um rio que de vez em quando enchia de graça e vida toda a minha aldeia.
Ele ainda está lá, o rio não abriu caminho por outras terras e abandonou minha aldeia, mas quase não se parece mais com aquele singelo leito de outros tempos. Por muito tempo, principalmente em períodos de estiagens, permanecia quase vazio, apenas de leito terroso e suas pedras imponentes. Mas de repente ressurgia numa vivacidade voraz e sedenta, levando tudo que no seu berço adormecia diante de sua tristeza e do seu silêncio.
O Jacaré é o rio que passa pela minha aldeia. Nascido nas vertentes da Serra da Guia, perto da divisa com a Bahia, timidamente vem abrindo caminho feito cobra torta pelas ribeiras sertanejas. Na verdade, não passa de um riacho, ou riachinho como é mais conhecido, despertando imponente após as cheias das trovoadas nas cabeceiras. E o leito seco, sujo, tomado de garranchos e ossadas de animais, de repente abria sua boca e corria engolindo tudo.
Dependendo das chuvaradas na nascente, o leito magro se alongava tanto que chegava aos quintais. Mas era preciso duas a três cheias na mesma leva para que as águas salobras levassem as imundícies e permitissem que a meninada traquina se arriscasse a mergulhar. Depois era uma festa só e durante cerca de uma semana a molecada não queria outra vida senão pular das pedras nas águas novas. Mas tudo muito passageiro, pois de repente as areias grossas começavam a reaparecer e apenas pequenos poços recebiam a visita dos bichos sedentos. E bebiam para iludir a sede, pois a salubridade acabava provocando verdadeiro tormento.
Mas o homem se incumbiu de devastar todo o leito do riachinho, suas margens e sua história. Não só as pedras foram retiradas e destinadas às construções, como as areias foram transportadas para outros destinos. As matas ciliares foram sendo devoradas pelos facões e até os poços ao redor das pedras grandes deixaram de existir. Mas as cheias continuam, pois a degradação do leito nada tem a ver com a nascente, e quando elas chegam é que se percebem as consequências da voracidade destruidora do ser humano. Apenas águas sujas e velozes seguindo viagem sem permitir que os moradores usufruam as alegrias daquelas enchentes certeiras.
O rio ainda passa pela minha aldeia, porém transformado e feio, previsível demais, e com águas logo misturadas aos esgotos que descem de suas margens, aos verdadeiros poços de doenças e podridões que vão surgindo nos períodos de estiagens. As cheias de agora não servem mais aos banhos e aos divertimentos da meninada sertaneja, mas apenas para levar nas águas o verdadeiro monturo que se espalha pelo leito nas épocas de estiagens. E não demora muito para novos lixões surgirem ao lado de poças escurecidas e cheias de mosquitos infectados que mais tarde estarão pelas residências.
Havia, assim, outro rio, outro riacho Jacaré que passava pela minha aldeia. Não apenas o leito de águas correntes, não somente a veia molhada cortando caminhos e enchendo de graça os dias antigos da meninada, mas um rio simbolizando a própria força de renascimento do sertão. Eis que no silêncio da noite o barulho de suas águas era ouvido e logo reconhecido por todo mundo. E aquilo anoitecido na secura já enchia a madrugada de vida nova. E o sertanejo corria às suas margens para apreciar tanta beleza.
Assim como o homem, a terra e os animais, assim como revelado no Eclesiastes, tudo se transformando perante a transformação da natureza, do sol de ontem e da chuva de hoje, da tristeza de antes e do sorriso de agora, eis também o rio que passa pela minha aldeia. Desperta no impensável e ainda se faz imponente, mas não mais como antigamente. Hoje apenas um riacho que sente necessidade de correr veloz para levar na sua força os restos da devastação e das mazelas depositadas no seu leito.
E por culpa não só dos habitantes de minha aldeia, mas de todo o sertanejo que faz de suas margens e do seu leito aquilo que não desejaria avistar nos quintais de suas moradias.


Poeta e cronista
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Distância (Poesia)


Distância


Mesmo distante
afago e abraço o corpo
mesmo distante
beijo e acaricio a pele
mesmo distante
digo palavras ao ouvido
mesmo distante
confesso tudo baixinho
mesmo distante
estendo a mão a passear
mesmo distante
olho-te dentro do olhar
e mesmo distante
sinto cada vez mais amar
pois mesmo distante
ao meu lado é teu lugar

por estar distante
e a sinto e a tenho tanto
e minhas asas têm medo de sol
então amo no pensamento
pois mesmo distante
cultiva o grão da presença
para um dia florescer
no fértil campo do destino.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 681


Rangel Alves da Costa*


“O bem sonha por cima da pedra...”.
“A virtude não precisa ser anunciada...”.
“Semente boa germina na aridez...”.
“A pedra solenemente lacrimeja...”.
“A manhã é sempre uma tela em branco...”.
“Cabe ao homem escolher a arma que deseja usar...”.
“Negro café de flor toda branca...”.
“O girassol sempre adormece na noite...”.
“O retrato também vai morrendo lentamente...”.
“Toda distância possui uma partida...”.
“Dizem que a morte socializa o homem...”.
“Há uma mesma escuridão em cada morte...”.
“Louco é o doido que deseja ser mentalmente sadio...”.
“Na panela de barro o sabor da terra...”.
“A fome cuida de temperar a comida...”.
“Não há herói em batalha de morte...”.
“No seu copo um pedaço de nuvem...”.
“No seu prato um pedaço de terra...”.
“No seu sonho um pedaço de desejo...”.
“No seu caminhar um destino...”.
“O rei que morre vira apenas defunto...”.
“A verdade nunca possui frestas...”.
“Dizem que o vento conhece tudo...”.
“O segredo se contenta em dois...”.
“Amando, pensou que espinho era pétala...”.
“Subiu à montanha e morreu feito passarinho...”.
“Jurou chorar e depois naufragou em si mesmo...”.
“A face do amor está na felicidade...”.
“Tudo se inicia na imaginação...”.
“A nudez é da roupa e não do corpo...”.
“A moringa também tem sede...”.
“O cego pinta o arco-íris com uma cor...”.
“Nem imagine quanto dura a noite do cego...”.
“Por quem o sino dobra não consegue ouvir...”.
“Para subir ao céu primeiro tem que descer...”.
“Nem toda chave abre toda porta...”.
“Arrancou o coração e mandou na carta de amor...”.
“A primeira vez é a que deve ser esquecida...”.
“Todo varal parece querer voar...”.
“Não há revoada de um só passarinho...”.
“Música de recordação não precisa de vitrola...”.
“No silêncio da noite há um grito medonho...”.
“A ambição vê miragem em tudo...”.
“A lição antiga jamais envelhece...”.
“Depois de adormecer todos são crianças...”.
“A criança e o velho possuem o mesmo passo...”.
“Não há laço que não desenlace com jeito...”.
“Há sempre um outono no olhar do poeta...”.
“O espelho não ter voz é a sorte de muita gente...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 25 de julho de 2014

A HORA DA ESMOLA


Rangel Alves da Costa*


A compra de voto, esse ato tão corriqueiro de prometer um emprego ou oferecer algum bem material em troca da opção do eleitor, possui nome bonito e pomposo: captação ilícita de sufrágio. Previsto nas legislações eleitorais, o crime de compra de votos já provocou consequências desastrosas para muitos eleitos que, denunciados, foram processados e acabaram perdendo seus mandatos. Verdade é que em alguns casos a lei prevaleceu diante da comprovação de ilícitos. Não defendo a prática de qualquer tipo de crime, mas com relação à compra de votos não vejo qualquer ilicitude. É um entendimento pessoal, apenas.
O Código Eleitoral (Lei 4.737/65), em seu artigo 299, prevê tal ilicitude. E descreve a conduta nos seguintes termos: "Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto, e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita". A Lei 9.504/94, no art. 41-A (incluído pela Lei 9.840/99), igualmente proíbe tal conduta. E afirma que a compra de votos se caracteriza quando desde o registro de sua candidatura até o dia da eleição, para tentar garantir o voto do eleitor, o candidato oferece em troca dinheiro ou qualquer “bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública”.
Reiterando o entendimento preliminarmente abraçado, vejo como totalmente descabida uma legislação eleitoral que imponha proibições aos candidatos no seu processo de conquista de votos. A eleição exige disputa e esta, como o próprio nome indica, requer estratégias e mecanismos além de meros argumentos e meios de convencimento. Ademais, diante da esteira lamacenta que envolve a política e os políticos, da descrença lançada em todos os pleiteantes, não é o velho e impraticável discurso que vai atrair o eleitorado.
Todo cidadão que se lança candidato sabe muito bem o quanto é difícil conquistar qualquer voto. As velhas raposas também sabem que não existem mais aqueles currais de porteiras fechadas e uma liderança negociando voto como se fosse bicho. Na maioria das situações, o povo tomou as rédeas da escolha para si e ele mesmo procura intermediar qualquer lucro com o seu voto. E o candidato que tanto precisa somar tem de negociar, sob pena de não ter seu nome na lista dos votados. É assim que acontece e que ninguém pretenda dizer que alguém é eleito apenas porque é bonzinho, trabalhador e honesto. Tem que gastar, e muito. A verdade é essa.
A maioria das pessoas sabe muito bem da dinheirama que é gasta numa eleição. Não há circulação de moeda maior que nas vésperas de qualquer pleito. A verdade é que não adianta - sob pena de derrota vexatória - se lançar candidato sem ter meios financeiros suficientes para bancar a disputa. Queira ou não, seja legal ou não, mas sempre terá de colocar a mão no bolso para pagar uma feira, contas de água e luz, remédios, óculos, dentadura e uma verdadeira cesta assistencial, sem falar no pacote fechado com aquele que surge como dono de tantos votos. A lei diz que tudo isso é crime, mas não há como criminalizar uma prática que além de não ser atentatória à vida ou a dignidade de ninguém, acaba ajudando o eleitor carente na sua sobrevivência.
A própria classe política se desvalorizou tanto que acabou inflacionando a disputa eleitoral. Diante da descrença do povo, jamais conseguirá votos suficientes se não se dispuser a ajudar materialmente os eleitores mais empobrecidos. E o povo pede mesmo, exige que o candidato lhe garanta qualquer benefício. Ora, são eleitores realmente pobres, necessitados, carentes de quase tudo, e aproveitam a oportunidade para ter um saco de cimento, uma passagem para um parente e assim por diante.
Mas a lei diz que não pode ser assim, que é crime. E certamente foi uma legislação surgida da concepção que o eleitor não precisa se submeter aos favores eleitorais, pois sempre trabalhador e pode adquirir o que necessitar com recursos próprios. Quer dizer, não considera que grande parte da população brasileira continua na linha de pobreza. Mas as leis proibitivas também podem ter surgido da ilusória ideia que a totalidade do eleitorado é consciente e que prevalece uma cultura de saber escolher o melhor sem que o candidato possa interferir na sua tendência. E em tudo o descompasso com a realidade.
Tanto o legislador como o aplicador da lei têm plena consciência que o alcance das normas está muito distante daquilo que realmente se pretende coibir. Ademais, ressoa como totalmente falso o argumento de que a compra de votos acaba privilegiando candidatos endinheirados em detrimento daqueles economicamente mais fragilizados ou que a disputa estaria desequilibrada pelo uso abusivo dos meios de captação. Repito: quem não pode bancar uma campanha nem deveria se lançar candidato.
A verdade é que a compra ou troca de votos provoca, em muitas situações, um verdadeiro alívio tanto para candidatos como para eleitores. Ora, a descrença na política é tanta e o medo de rejeição é tão grande que o postulante acaba colocando o feijão na mesa esquecida, vestindo e calçando gente, ajudando a levantar a parede. Daí que não vejo crime algum em o candidato estar presente naquelas situações de penúria e onde os poderes públicos estão sempre ausentes.


Poeta e cronista
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