SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 29 de julho de 2014

O CORONEL NA CADEIRA


Rangel Alves da Costa*


Assento antigo a cadeira do coronel. De remota madeira de lei, envernizada pelo tempo, na varanda se balançando desde as andanças da chibata e do cuspe secando ao lado. Dali partiu ordens para tocaias, emboscadas e mortes, no aprazamento até o cuspe secar. Era esse o costume coronelista: ordenar e ter sua ordem cumprida antes de o cuspe secar. E cuspia mesmo, até na cara do jagunço, do matador.
A cadeira de balanço do coronel parecia fincada na pedra da varanda. Era de balanço, mas permanecia imóvel quando o seu dono sentava nela. O dono do mundo não gostava do vai e vem da madeira, eis que lhe parecia festeiro demais. Sentava o traseiro ali e movia apenas a cabeça e as mãos. Gostava mesmo de ficar longo tempo numa quietude de mármore, imóvel, lançando o olhar pelas vastidões de seu mando. Mas o seu mundo de mando avançava por toda a região.
Casarão antigo, construído por mãos negras marcadas pelos grilhões e com pedras cimentadas pelo suor e sangue de um povo escravizado e tratado como bicho. Construção secular, imensa, com paredes de quase um metro de espessura, muitos e espaçosos aposentos, culminando com varandas na frente e nas laterais. Nos fundos quartos fechados, cheios de armas, munições e apetrechos de selvagerias. E assim nas duas gerações coronelistas que ali fincou moradia, poder e mando.
Nas sombras de qualquer hora do dia, ainda que adiante se mostrasse um sol de fornalha, o velho coronel aparecia na vaga da imensa porta da sala principal. Era ali dentro onde recebia outros coronéis de mesma patente forjada na vindita de sangue, convidados ilustres, jagunços e capangas, e de onde fazia emanar seu poder. Mas poucos tinham encorajamento suficiente para surgir diante daquele que havia se tornado em verdadeira lenda naquelas vastidões nordestinas.
O medo era justificado, pois ninguém sabia como seria tratado, nem mesmo políticos e poderosos da região. Mas fosse quem fosse, adentrando naquela porta era recebido por um homem corpulento, de estatura mediana, vestindo sempre terno de linho branco amarrotado, de chapéu largo, arma à mostra na cintura, e de costas. Sim, de costas e com as mãos para trás e a cabeça voltada para um enigmático objeto na parede: um pedaço de tronco com marcas de tiros e uns respingos escurecidos. Era sangue.
De pouca conversa e muita ordem, falava muito mais pelo olhar. O seu cabra de confiança, o jagunço maior em quem confiava e a quem dera a chefia sobre os demais, sabia muito bem traduzir aquele olhar, desde a mudança no brilho ao jeito como mirava adiante. Conhecia o olhar odioso, mortal, feroz, quando o patrão sequer movia as pálpebras. Com olhos fixos na distância, como se não houvesse ninguém ou nada à sua frente, bastava dizer o nome. E o jagunço já sabia que era para tocaiar e matar.
Com passos lentos, no compasso da idade, caminhava em direção à velha cadeira. Mas não sentava antes de andar um pouco mais até a divisa entre a varanda e as terras que começavam no passo seguinte. Ao redor umas sete a oito casas onde permitia a moradia de velhos trabalhadores, todos parentes dos escravos que noutros tempos sustentaram os inícios da riqueza coronelista. Mas não permitia que nenhum jagunço morasse ali. A jagunçada vivia enfurnada em toscas moradias mataria adentro.
Mesmo não morando ao lado do casarão, dia e noite jagunços mantinham uma impecável vigilância. Quem chegasse perto do casarão sequer imaginava que estava sendo vigiado pelos cantos, por trás dos tufos, nos escondidos de todo lugar. Certa feita, o coronel recebeu a visita de um desafeto decidido a se ajoelhar diante dele para ser perdoado. Foi recebido, prometeu reconhecer a primazia do coronel em toda a região e deixou o local com um sorriso e um aperto de mão. Mas assim que montou no alazão e passou da porteira foi acertado no meio da testa. Bastou um tiro e o homem metido a poderoso tombou já morto. E assim aconteceu porque o jagunço tinha avistado o sinal pra matar: o coronel apareceu na varanda e desceu o chapéu até o peito. Era a senha da morte.
Alongava o olhar pelos arredores, mirava de canto a outro, depois ia se espalhar na cadeira. De vez em quando acenava ao sentar e logo um copo com cachaça pura lhe chegava às mãos. Bebia de uma talagada só. Depois acendia um imenso charuto e começava a soltar baforadas lentas. A essa altura o seu olhar já mirava fixamente algum lugar nos arredores. Mas certamente não procurava enxergar nada, pois somente a visão da mente ia percorrendo caminhos, rebuscando memórias, encontrando visões do passado.
Viagem mental, no pensamento, mas acaso um espelho pudesse surgir naqueles olhos sem brilho certamente mostraria cenas e situações verdadeiramente espantosas. Ainda jovem, apontando a arma e disparando contra um desvalido sertanejo rogando pela vida a seus pés. Matou o coitado inocente para mostrar valentia ao pai. Ainda jovem, rasgando a roupa de uma menina ali mesmo da fazenda numa brutalidade desmedida. E depois aquele corpo infantil todo ensanguentado por cima do capim seco. E quanta impassividade no olhar.
Avistava o seu pai morto ali mesmo naquela cadeira. Depois de tantas atrocidades, ele mesmo resolvera dar cabo à vida cometendo suicídio. Enxergava a face da esposa morta ainda jovem e depois de tanto sofrer pelas suas mãos violentas. Ouvia o choro daquelas tantas meninas estupradas e depois pisoteadas. E também o choro de meninos que talvez fossem seus filhos. E sentia cheiro putrefato de sangue velho, pisado, esquecido pelas veredas. E ouvia sons de tiros, gemidos, gritos lancinantes. E via a morte por todo lugar. E os olhos continuavam impassíveis.
Um dia, num entardecer, as mesmas imagens lhe chegando à mente. E agora mais aterrorizantes. Viu-se apertando o gatilho em direção ao pai. Sim, não houve suicídio algum. Ele era o assassino. Mas havia chegado o seu dia. E mais tarde o velho coronel foi encontrado morto na sua cadeira de balanço. Um ataque fulminante. Era a morte ajustando contas. E uma lágrima ainda parecia descer daquele velho espelho sem luz.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Um comentário:

Anônimo disse...

É verdade caro Rangel: "Era a morte ajustando contas".
Conheço um pouco referente aos "coronéis", mas seu texto traz boas explicações. Excelente matéria.
Antonio Oliveira - Serrinha