SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 31 de março de 2012

ALCINO E O DIÁRIO DA VIDA (Crônica)

                            
                               Rangel Alves da Costa*


Quietinho, se recuperando aos poucos no leito hospitalar – e juro que daria tudo na vida para trocá-lo por uma rede num sombreado de arvoredo ou mesmo por esteira em noite enluarada -, talvez esteja ouvindo o ecoar distante do som da viola caipira, da harmonia cantante de Tonico e Tinoco, dos quais é incomparável admirador.
Mas também pode ser que na sua mente esteja uma velha radiola tocando música que ao mesmo tempo retrata seu lado radialista e também sua verve compositora, em letra de sua autoria que Dino Franco musicou e brilhantemente canta ao lado de Mouraí:
“No nordeste brasileiro/ Uma onda se espalhou/ Na voz da Rádio Xingó/ Com seu apresentador/ Foi uma benção divina/ A um povo sofredor/ O violeiro cantando/ Sertão, viola e amor/ O cavaquinho do samba/ Num canto se encostou/ O tamborim fez silêncio/ Pra longe se retirou/ A natureza sorriu/ Ouvindo seu trovador/ No rádio leu-se a mensagem/ Sertão, viola e amor/ Cantigas e mais cantigas/ De um tempo que já passou/ As trovas apaixonadas/ Do poeta cantador/ Histórias de vaquejadas/ Maravilhas, sim senhor/ Me alegra quando ouço/ Sertão, viola e amor/ No nordeste, leste, oeste/ O povo se admirou/ Ouvindo a Rádio Xingó/ E seus poemas de amor/ Canta, canta minha gente/ Pois violeiro também sou/ O Brasil todo conhece/ Sertão, viola e amor” (“Sertão, viola e amor”, de Alcino Alves Costa e Dino Franco).
Mas se eu pudesse, assim como filho que conhece suas preferências, cantaria baixinho no seu ouvido uma velha canção sertaneja composta por ele lá pelos idos dos anos 70, que deu nome a disco de Clemilda em 1973 e fez enorme sucesso, tratando dessa imensa fé e religiosidade do povo sertanejo. O velho poeta certamente que gostaria de ouvir sua “Seca Desalmada”:
“Visitei o Juazeiro que fica lá no sertão/ Havia muito romeiro escutando um sermão/ Eu também fui escutar/ Prestei bastante atenção/ Perguntei quem era o padre/ Meu Padim Frei Damião que vinha da eternidade/ Pra salvar o meu sertão/ O sertão está passando uma grande provação/ É a seca desalmada acabando com o cristão/ Mas temos um defensor/ Meu Padim Frei Damião/ Padim Ciço Foi embora/ Para o céu Deus o levou/ O romeiro do sertão de tristeza até chorou/ Mas agora vive alegre/ O santo Padre voltou”.
Outro retrato não é senão desse sertão tão seu, decidindo um dia desmontar de vez do galope atravessado da política e subir no lombo manso de qualquer montaria que o fizesse cortar vereda e caatinga, encontrar o verdadeiro homem, conhecer a verdadeira história, e depois contar tudo a seu modo, num palavreado sempre lírico, poético, tão cheiroso como o perfume do mato.
Mas Alcino, o poeta sertanejo, o bardo da saga nordestina, continua ainda na estrada em busca das conclusões para tantas dúvidas ainda existentes. Por enquanto, ferido na alma por espinho de quipá ou talvez ponta de mandacaru antigo, repousa na tapera dos homens bons que preservam a vida. Apenas lutam pela preservação, pois sobre toda conservação somente Deus saberá.
A tapera é mais distante, ali não tem uma lua bonita como o sertão de lá, não há amanhecer com cantar passarinheiro nem violeiro no vinil a lhe dar prazer em viver. Nessa tapera de outro barro, bonito, vistoso, todo iluminado, também não tem aquela boa vizinhança com seus amigos que se avolumam noutra estante agora também silenciosa à espera do retorno do seu amigo pesquisador.
Digo aos livros que não entristeçam não; os coiteiros preparem o caminho para o retorno do herói, cangaceiros, jagunços e volante baixem as armas para a festa da alegria; beatos e missionários estendam suas cruzes, os crentes na divina providência cantem o seu louvor pela vitória da vida. Pelo mesmo caminho que o fez sair apressado, retornará calmamente para cumprir com o restante de sua missão.
Ah, os amigos estão ansiosos para esse dia chegar, o instante do retorno, o reinício da vida que resta viver, talvez o começo pela metade. E já tem gente indo naquela direção, já andando pela mataria rumo a Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo para abraçar o amigo, cada um portando no coração a arma mais poderosa do mundo que é a fé. A fé em Deus.
Ivanildo Silveira, Juliana e Júlio Ischiara, Paulo Gastão, Manoel Severo, Rostand de Medeiros, Kiko Monteiro, José Mendes Pereira, Carlos Eduardo, Rubinho, Aderbal Nogueira, Professora Luitgarde, João de Sousa Lima, Lemuel Rodrigues, Anildomá Willians, Arquimedes Marques e tantos outros e muitos mais, já guarnecem seus embornais, seus alforjes, já pingam água nos seus cantis para não perder o foguetório. E vai ter pífano e viola, aboio e toada, e um sertão todo contente porque seu filho estará voltando.
E logo chegará esse dia. Por enquanto Alcino ainda descansa nessa tapera improvisada, se recuperando dos sustos do tempo e buscando as forças necessárias para preencher as páginas da vida que ainda estão em branco.




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Descalço, pela estrada... (Poesia)


Descalço, pela estrada...



Meu pé
amigo do espinho
amigo da dor
passo no desalinho
olhou pro sapato
e disse que fosse
caminhar sozinho
mas não devia
ter feito isso
podia muito bem
vender o calçado
cheio de enfeite
e depois comprar
uma estrada
só minha
cheia de pedra
e areia cortante
quente demais
mas estrada
e só minha.



Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ÁGUA DE BEBER

                                         
                                  Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
O velho olhou pra mim, com aquela secura profunda no olhar sertanejo, e disse:
“O sertão é tudo e tem de tudo, toda essa maravia que a gente vê, que sente, que gosta. Mai no sertão num tem nada, fica tudo feio e isquisito se num tem água de beber. Água de beber é tudo, meu fio, poi sem o tiquinho se derramano na caneca pá moiá a goela da gente num somo nada...”.
Palavras tristes a do velho, respondendo a minhas insistentes perguntas acerca de como era ser sertanejo e viver numa situação daquelas de estiagem, de seca inclemente, sem chuva já há mais de dois anos. Depois eu conto o resto, mas sobre a água de beber, pela tristeza poética com que relatou, me sinto no dever de lembrar agora.
E o velho continuou com sua sabedoria, com sua profunda filosofia matuta:
“Quano a seca vem e cum mais tempo tudo começa a esturricá, entonce a gente já sente quantos tipo de água a gente passa a ter. E isso pruquê além da água de beber tomem existe outas água de época de estiage. Tem a água do bicho, que á aquela saloba do riachim, do fundo do poço cavado, e que a gente sabe que eles bebe só pá enganá a boca, poi lá dento é muito pió, num sargamento que num acaba mai...”.
Então perguntei se não era pior que os animais bebessem dessa água salgada, vez que a sede pode ser redobrada depois. E ele respondeu:
“E pruquê é que os bicho geme tanto, berra tanto e diferente na época da seca grande? Pru causa disso mermo, pruquê se corrói da água sargada pru dento e num tem outa água pá acarmar a situação. E se a gente for dar aos bichim o restim da água mió, entonce quem vai morrer é a gente...”. E continuou:
“Mai cuma eu dixe, além da água de bicho, que é aquela sargada do fundo do riachim, tem tomem as água de pranta que a pórpia natureza bebe que é pá num secá de veiz. Vosmicê se num sabe vai ficá sabeno, mai tem muita água de pranta pru dento dessa mataria. A gente num vê não, mai cada pranta dessa, cada auve é cheia de munta água escondida nas foia, nas raiz, nos tronco e todo lugar. Cuma a natureza é sabida demai, entonce vai guardano tudim pá os momento de percisão, e quano a seca bate feroiz entonce vai bebendo aquilo que guardou. Mas se fartá água pru lá entonce é siná que a gente num tem nem mai um tiquim de água de beber...”.
Perguntei como eles faziam para não deixar faltar a água de beber. E ouvi:
“A gente reza, a gente ora, se ajoeia devotado ainda mais ao bom Deus pedino pru tudo na vida que num premita que acunteça uma desgraceira maió. E quano os pote já tão lameano, quano a moringa fica difice de encher, quano a gente passa a ter mai sede do que água, entonce é um desespero. Tem gente que vai simbora, tem gente que num tem pá donde ir e vai ficano aqui mermo no sofimento. Mai sempe orano, sempe rezano, sempe fazeno pormessa, e até porcissão a gente faiz. E quano a gente pensa que num tem mai jeito, entonce se abre as tornera do céu, na voz de Deus abençoado. E entonce é uma festa seu moço, uma festa de arrumá inté sabunete pá tomá banho debaxo das gotera, no meio do tempo. E é assim que sempe vem a nossa sarvação”.




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sexta-feira, 30 de março de 2012

CARTAS DE GUERRA (Crônica)

                                         
                                Rangel Alves da Costa*


Dizem que noutro dia encontraram um velho baú familiar em cujo fundo estavam guardadas verdadeiras relíquias. Fotografias amareladas, bilhetes já ilegíveis, papéis de presentes sem nenhuma oferenda, livretos de poemas com folhas marcando páginas, mas principalmente umas estranhas cartas, missivas de guerra.
Um desses poemas dizia: “Hoje é o tempo do ontem/ Porque o amanhã será o tempo do passado/ E tudo que existiu ainda existirá/ Porque o querer se repete se for bem-querer...”. E as cartas, uma por cima da outra segundo a data do envio, só mesmo abrindo-as para saber do que tratavam.
Quando o baú foi descoberto e alguns mais antigos sabendo a quem pertencia, então logo costuraram com maestria a colcha de retalhos do passado para encontrar a verdade. E a verdade, segundo afirmaram, é que aquelas velhas cartas haviam sido enviadas pelo pracinha esposo da dona do baú, já na distância, desde o campo de batalha nas terras italianas.
Quando em agosto de 1942 o Brasil decidiu apoiar os Aliados (liderados por Inglaterra, URSS, França e Estados Unidos) contra as forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e em 1944 enviou para a região de Monte Cassino cerca de vinte e cinco mil pracinhas da Força Expedicionária Brasileira, o jovem esposo da dona do baú, recém casados, foi um dos que embarcaram na segunda leva. Começou a lutar logo que chegou.
Não se sabe por quais vias, nem quais os caminhos e dificuldades para conseguir tal intento, mas a verdade é que já nos campos de batalha, enfrentando as durezas da guerra e as ameaças dos inimigos, o pracinha começou a escrever cartas para o seu amor, para a sua querida esposa, uma jovem e bela mulher em constante tristeza na sua janela.
Talvez ficasse tanto tempo na janela na expectativa de chegar mais uma cartinha escrita no calor da refrega, mais uma missiva cheia de saudades, contendo palavras que mais pareciam choradas do que escrita. Em envelopes carimbados de solo italiano, abria cada cartinha e em seguida, após as lágrimas serem enxugadas ao sol, colocava naquele baú das aflições.
“Ontem, aqui no Monte Castelo, os inimigos avançaram com toda ferocidade do mundo. Contudo, não temo nada disso que acontece, pois estou preparado para a luta. Mas não poderei dizer se vou conseguir vencer a inimiga chamada saudade nem essa dificuldade chamada distância...”.
“Os inimigos estão cada vez mais ferozes. Derrubamos um tanto e logo temos que derrubar outro monte que se esconde por trás dessas montanhas. Estou há três dias sem dormir, mas por nada que tenha me ocorrido por aqui. A saudade é demais, a vontade de estar ao seu lado é demais, tudo é demais e demasiadamente dolorido longe dos teus braços...”.
“Nunca imaginei que um dia passaria o que estou sendo forçado a passar. Só suporto colocar na boca essa comida fria e sem gosto que servem porque começo a lembrar do seu feijãozinho temperado, do seu arroz com ervilha e do lombo de forno que só você sabe fazer. Mas não há como deitar nessa cama dura de campanha, roendo os ossos e pinicando a pele, e lembrar do calorzinho bom da nossa dormida, sempre abraçadinhos. Prefiro nem passar as noites pensando nisso, pois seria sofrimento demais...”.
“O meu comandante me avisou que amanhã iremos para outro lugar, combater noutro ponto. Falou-me que os inimigos estão em volta de Camaiore e Monte Prano. Mas meu maior inimigo, agora sinto, sou eu mesmo que não sei me dar asas para voar até nosso ninho e repetir uma coisa que agora se faz mais fortemente como nunca no meu coração: te amo, meu amor, te amo...”.
E pela data esta foi a última carta enviada. Pelo que se sabe ele não pôde retornar, pois tombou em Camaiore tendo ao lado uma fotografia da esposa. E esta, até morrer de definhamento e saudade, ficou ali na janela esperando outra carta que não chegou.




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Oferenda de lua e gente (Poesia)



Oferenda de lua e gente



Ganhei uma lua
imensa e bela
e pensei que o sertão
era o paraíso
e era

depois me deram
uma paz e um sossego
e pensei que o sertão
era a felicidade
e era

depois me pediram
pra caminhar
seus caminhos
viver o seu povo
entender sua gente
conhecer a humildade
sentir o sentido da fé
e pensei que o sertão
não era isso tudo
e era
e sou...


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: INCIDENTE NO BORDEL

                                       
                                            Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
O Bordel de Madame Sofie era o mais prestigiado, afamado e requisitado da região. Não fazia isso no grande salão para não chamar demasiadamente atenção, mas dizem que a famosa cafetina mantinha no seu luxuoso aposento uma verdadeira galeria contendo as fotografias da nata freqüentadora do seu ambiente.
Contudo, afirmavam as más línguas que a grande maioria dos retratados e ali expostos em molduras de luxo, fazia parte do seu imenso currículo de amantes, namorados e apaixonados. Pelo que se denotava na feição ainda firme e vivaz, certamente que a cafetina era mulher encantadora quando mais jovem.
Não só bonita como apetitosa, segundo diziam. E iam mais adiante afirmando que se tratava da própria sereia enlouquecendo os navegadores do seu leito libertino; que era pura magia transformada em mulher e inebriando os incautos apaixonados; que era a única mulher capaz de coronel se arrastar a seus pés, governador mandar carro oficial transportá-la para passeios; poetas e boêmias escreverem versos de desilusão amorosa e depois ficar a noite inteira em prantos olhando para as cortinas da entrada do seu quarto.
Uma coisa ninguém podia negar, que era a imensidão de poderosos que gastavam fortunas para obter os seus dotes prazerosos ou até mesmo se contentar com promessas de futuro aconchego. Ora, todos sabiam do seu romance com o governador e o presidente do tribunal de justiça, fato que gerou uma situação das mais estranhas já vistas até hoje.
Eis que Madame Sofie – à época apenas Sofie, a francesa - fazia tudo para agradar gregos e troianos nas suas entregas sexuais e não provocar, sob hipótese alguma, uma guerra aberta entre os amantes. Contudo, certa vez descuidou e quase provoca um incidente político-jurídico-administrativo sem precedentes.
Fato é que descuidou na agenda e fez o governador encontrar o presidente do tribunal de justiça na mesma porta dos fundos por onde este saía às escondidas. No esbarrão a inevitável surpresa, o espanto, o ciúme exacerbado que naquele instante quase provoca um desastre maior no coração dos dois poderosos.
Prontamente o governador perguntou o que o presidente do judiciário estadual fazia ali e este respondeu que o mesmo que ele pensava em fazer entrando ali daquele jeito, às escondidas, pela porta dos fundos. O governador não gostou do que ouviu e pediu mais respeito, o que o desembargador retrucou dizendo que o respeito era mútuo, pois se o governador chefiava o executivo, ele era o chefe do judiciário.
Vermelho de raiva, com os bofes quase saindo pela boca, o governador disse que no mesmo dia o desembargador perderia sua função e seria aposentado compulsoriamente, por indignidade perante a função exercida, já que freqüentava abertamente casa de prostituição e mantinha um caso com Sofie, a francesa.
E o troco veio no mesmo tom, quando o desembargador disse que antes de sair ia julgar seu impeachment que estava em cima do seu birô. E ademais iria soltar o verbo e dizer que tipo de governante tinha aquele povo, que governava despachando de cima da cama de sua amante francesa, uma prostituta.
Ao ouvir o nome prostituta, Sofie, a francesa, deu um pulo entre os dois e exigiu respeito. Não admitia que uma flor caliente do sexo fosse tratada daquele jeito. E exigiu mais. Ordenou que nem um nem outro dissessem nada se encontrasse o presidente da assembleia legislativa também por ali.  




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quinta-feira, 29 de março de 2012

OS CORONÉIS AMADIANOS (Crônica)

                               
                           Rangel Alves da Costa*


A obra do genial escritor baiano Jorge Amado, falecido em 2001, é toda ela construída a partir de personagens fora dos padrões normais do mundo fictício. Ora, mas se poderia afirmar que são apenas meninos, prostitutas, gente de terreiro de umbanda e candomblé, coronéis, jagunços, comerciantes árabes e turcos, políticos e uma gama de espertalhões.
Sim, mas são caracterizados de forma tão peculiar que o menino de rua não é apenas aquele desvalido que vaga sem norte pelas ruas e ladeiras, mas o ser já engajado na luta, com ideologias e claros objetivos, ainda que sempre impossibilitados pelas circunstâncias. A prostituta não é simplesmente aquela meretriz comerciante do prazer sexual, mas uma mulher que se torna importante pela influência e poder de manipulação que passa a ter diante de seus poderosos fregueses.
Contudo, o que se sobressai com maior relevância é a forma como Jorge Amado elabora e caracteriza os seus coronéis cacaueiros, senhores da paz e da guerra, do amor e do ódio, de intrigas familiares e apaziguamentos, mas todos com a sina de desbravadores, como a dizer que pelo bem ou pelo mal foram os grandes responsáveis pelo desenvolvimento de grande parte do Nordeste, principalmente do interior baiano.
Personagens sim, cujas ações eram tecidas no imaginário do escritor, mas de modo tão realístico que chegavam a ser palpáveis, reconhecíveis nos rincões cacaueiros, realmente existentes num dado lugar, comandando, dirigindo, impondo, ordenando. Porém nada fruto do acaso, da verve fecundamente criativa, mas numa construção baseada em personagens que realmente existiram e sobre os quais Jorge Amado tinha tanto conhecimento e até relacionamento.
Por isso mesmo que a obra amadiana, no contexto do mundo cacaueiro, do coronel e do jagunço, pode ser classificada como vicção, e não meramente ficção. Cunhei o termo vicção para apontar um gênero literário onde a trama romanceada é recheada de memórias, da interação realista entre o escritor e determinados personagens, das pessoas em si sendo transportadas para o romance.
E Jorge Amado fazia esse transporte do personagem real para o ser ficional como nenhum outro. A partir da vicção, porque conheceu muitos coronéis, pesquisou seus hábitos e costumes, seus modos de impor mandonismos e muito mais, em muitos romances nem procura disfarçar muito o coronel retratado. Numa simples leitura e algumas pessoas já afirmam convictas que aquele personagem se trata daquela lendária figura de Ilhéus ou de Itabuna.
O coronel João Amado, seu pai, mas também os coronéis de “Tocaia Grande” Elias Daltro, Boaventura Andrade, Hermengildo Cabuçu e Robustiano de Araújo, dentre outros; os de “Cacau”, Manuel Misael de Sousa Teles, Chico Arruda e Henrique Silva; de “São Jorge dos Ilhéus”, Maneca Dantas, Sinhô Badaró, Horácio da Silveira e Frederico Pinto; de “Gabriela, Cravo e Canela”, Ramiro Bastos e Amâncio Leal. Contudo, muitos outros coronéis povoam o universo amadiano.
Daí que aquele senhor vestido de terno de linho branco, chapéu impecável na cabeça, muitas vezes de bigode finamente cuidado, fumando charutos importados ou baforando cachimbos de fumaça inebriante, carregando uma bengala de ponta dourada ou não, é, na obra amadiana, personagem e pessoa famosa, que realmente existiu, que abriu os caminhos da região cacaueira a partir da tocaia grande, do medo espalhado, da conquista forçada, de tanto sangue derramado.
Como bem traça Jorge Amada nos seus livros, o coronel mulherengo, raparigueiro, adepto dos bordéis e protetor e amigo das grandes cafetinas, do mesmo modo era na vida real e perante aquele que estava sendo retratado. Do mesmo jeito o coronel arrogante, violento, cheio de inimizades com outros do mesmo quilate, sustentado na força do jagunço e na traição da clavinote. Quantos coronéis, nos livros e na vida, não devastaram os sertões, enriqueceram, se tornaram imensamente poderosos, através das mãos covardes e certeiras dos jagunços?
Por isso mesmo dizem que os coronéis Ramiro Bastos, Horácio da Silveira e Sinhô Badaró, foram nomeados assim por Jorge Amado apenas para não citar o nome verdadeiro desses senhores cuja saga no mundo cacaueiro é um verdadeiro épico de luta, ódio e conquista.


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Quero-quero (Poesia)


Quero-quero


Quero-quero
não é só passarim
sou eu também
quando estou assim
e quero-quero ir
num voo passarinheiro
pra longe daqui
chegar bem ligeiro

quero-quero ir
meu amor me espere
meu querer chego já
enfeite a boca
de morango silvestre
encharque o corpo
de lavanda do mato
vista uma roupa bonita
com laço de fita
tudo que mais espero
depois olhe pra cima
abra o ninho do coração
pro seu quero-quero.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ADULTÉRIOS (O PERMITIDO E O PROIBIDO)

           
                       Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Dizem que havia um padre, muito mais pecador do que sacerdote, que aprontava verdadeiras proezas na sua paróquia e redondezas.
Verdade é que de padre só tinha a vestimenta na hora da missa e o palavreado bonito para colocar o pecado e as boas virtudes na sua devida fronteira. Ah, também a utilização da sacristia como verdadeiro apartamento para suas nebulosas aventuras.
Na hora da missa já levava o vinho batizado, com boa porção de cachaça. Virava o cálice com gosto e repetia outras vezes. E cada vez mais eufórico, começava a piscar o olho para determinadas beatas, mandar beijinhos e balançar a cabeça em direção à sacristia, como a dizer que mais tarde tinha assunto safado a tratar ali.
E então, com a igreja tomada de fiéis, beatas e arrependidas, o que mais gostava de fazer era proferir sermões jogando pedras no adultério, qualificando-o como o fim dos tempos, o maior dos pecados, a ação direta do inimigo dentro daqueles corpos frágeis que de repente se afogueavam desavergonhadamente.
E dizia a plenos pulmões: “Ao adúltero, seja homem ou mulher, já está sendo preparada uma panela fervente onde será colocado e onde o inimigo sorridente colocará mais lenha na fogueira, e tudo eternamente. Os gritos dos adúlteros serão os mais horripilantes, suas dores serão as maiores, seus tormentos e sofrimentos serão indescritíveis. E tudo porque, aqui na terra, tanto o homem como a mulher devem respeitar a si mesmo, ao companheiro ou companheira, a família e a sociedade. Um homem nasceu para uma mulher, como uma só mulher nasceu para um só homem. Fora disso é traição, é blasfêmia, é pecado, é certeza de queimar eternamente lá pelos quintos...”.
Mas depois que a missa acabava, as pessoas iam saindo e a igreja esvaziando, não demorava muito para o safado do padre se achegar para uma falsa beata que ficava sentada num cantinho, de xale sobre a cabeça baixa e dizia: “Poderemos nos encontrar mais tarde ali mesmo na sacristia? Estarei te esperando para ofertar muitos beijos e afagos carinhosos, de quem ama e sente necessidade de possuí-la”.
E a mulher respondia: “Mas padre, seu sermão inteiro foi dizendo do pecado que é o adultério e de suas terríveis consequencias. E saiba que sou e sempre serei uma mulher muito fiel ao meu esposo. Além disso, Deus me livre de ir contra os ensinamentos da Bíblia e cometer tal pecado...”.
Então era a vez do sacerdote mostrar sua maestria pecaminosa. “Minha filha, aí é onde você erra, pois ninguém percebe mas é na Bíblia que está a permissão para se cometer o adultério. E tal permissão está contida numa de suas mais belas passagens, que é no Sermão da Montanha. E veja o que o livro sagrado diz: ‘Eu, porém, vos digo que todo aquele que repudia sua mulher, a não ser por causa de infidelidade, a faz adúltera’. Está lá escrito em Mateus. E sei que o seu esposo não tem freqüentado esse corpinho, tem-no repudiado, não é mesmo? Então você será adúltera com permissão, minha filha”.




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quarta-feira, 28 de março de 2012

UM PÔR DO SOL (Crônica)

                                 Rangel Alves da Costa*


Na mesma hora do entardecer, o pôr do sol é quase sempre o mesmo na paisagem ao fundo. Contudo, será sempre um pôr do sol diferente para cada um que está do lado de cá, em cima das pedreiras, presenciando a magia dessa despedida.
O pôr do sol sempre é mais belo e brilhante do que o seu nascer. O vermelho e o alaranjado tomam conta de tudo, cores com muitos significados, dependendo do olhar e dos sentimentos de quem mira o horizonte nesse período que é o mais reflexivo do dia.
Diz-se ocaso, diz-se poente, diz-se da cor da atmosfera durante o crepúsculo vespertino. O pôr do sol é sempre o momento em que o sol desaparece no horizonte ou se põe e que antecede a noite. Mas creio que não seja somente isso...
Indubitavelmente que há uma mudança no espírito daquele que vai exclusivamente apreciar aquela dança de luz que vai mudando de tonalidade e sumindo aos poucos. Antes mesmo de sentir de perto a mutação colorida, logicamente que basta mentalizar aquele quadro para que o espírito procure se adequar ao que sentirá mais tarde.
Pôr do sol é visão e paisagem que lembram viagem, partida, adeus, uma saudade infinda. É quadro emoldurado por doces ou tristes recordações, momento de relembrar e reviver tantos momentos idos. Como aquele vermelho abrasador desperta a paixão, o desejo, o querer, o corpo e o lábio da mulher amada. E como aquele amarelo alaranjado faz lembrar repouso nos braços de quem tanto ama.
Mas também é fogo, é brasa, é ardência por dentro, volúpia tomando conta do ser, vontade de tocar com a mão aquele matiz candente e sentir muito mais do que o calor. E se esse momento de cor vier acompanhado de uma leve brisa, de uma revoada de passarinho, de uma cantiga das folhagens da natureza, então dificilmente o indivíduo ficará imune à lágrima, ao arrepio, ao aperto no coração.
Agraciados divinamente aqueles que podem ver o sol se pondo lá por trás das águas do mar ou do oceano. De cima da montanha às margens, o olhar irrompe a areia molhada da praia, remove as conchas que se avolumam em pensamento, corre por cima das águas, vence as ondas e persegue de braços abertos o inatingível.
Ora, desde a beira da praia começa o rastro avermelhado, alaranjado, mistura, dançando sinuosamente por cima das águas e nesse passo vai seguindo até onde o olho avista. E se o olhar pudesse tomar da natureza molhada o seu barco e nele singrasse em busca da casa do sol poente, ainda assim quanto mais seguisse mais seria tomado pelas cores, até elas sumirem sem tocar num seu raio.
O mesmo encanto encontra aqueles que de uma montanha se põem em vigilância para acompanhar o crepúsculo por trás do monte mais além. Por trás das serras o pôr do sol vai surgindo segundo o desenho da natureza. Estando por trás, o olho avista no cume o dedo de Deus, uma mão erguida para os céus, uma face contrita em oração. Ora, o monte está ali imutável, mas tendo o sol ao fundo e um olhar à sua frente, tudo de repente pode se transformar naquilo que o pensamento desejar.
Mas muitas vezes o pensamento se contenta apenas em enxergar a paisagem, encontrar o real significado daquele momento, e depois se entregar à prece, à oração, ao diálogo consigo mesmo, à fruição espiritual. Em pé ou ajoelhado, de braços sempre abertos naquela direção, o olhar se fecha para a mente enxergar seus anjos, seu Deus, sua sacralidade, um rosto adorado, uma face amada.
E ainda de olhos fechados o pôr do sol vai mudando de cor segundo os sentimentos despertados. É uma viagem, um encontro, um retorno. E quando o olhar se abre e olha além já não mais encontra nenhuma ponta de luz. O sol já sumiu, já desapareceu. A luz agora está retida na mente e no espírito, como um renascimento a cada dia.
A noite começa a chamar seu pintor. E ele coloca um amarelo bonito, dourado, imenso, lá no alto da tela escurecida...


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Água da noite (Poesia)

Água da noite



Depois do entardecer
depois que o sol
trilha o seu esconder
e uma brisa em aragem
sopra no dia marrom
e a noite pede passagem
é nessa magia solene
que o sertão faz oração
o cancão pia em sirene
como sino de proteção

e mais tarde da noite
com a natureza em frescor
na ventania em açoite
a mão começa o labor
encher a moringa de água
pedir a janela o favor
de deixá-la ali em frágua
adormecendo sem temor
na certeza que deságua
do líquido maior sabor

água de moringa
dormida na janela
é água da noite
benzida na lua
abençoada em silêncio
por um Deus sertanejo
que dá mais força
ao povo que se sustenta
dessa água que é benta.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: VENTOS QUE SOPRAM, PORTAS QUE BATEM...

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Não me diga que não dói, machuca tudo por dentro, passar diante de uma casa e encontrar somente a porta e a janela batendo ao sabor do vento.
E dói mais ainda quando se sabe que ali morou gente conhecida, morou uma família, crianças cresceram e se tornaram adultos, vidas se transformaram para, enfim, sumir, desaparecer.
Nos centros urbanos, nos campos, nos escondidos da mataria, em qualquer lugar onde possa ser levantada uma moradia, pode acontecer esse triste encontro com o abandono, com a solidão, com o sentimento profundo de vazio.
E há de se perguntar onde estará aquela linda mocinha que ficava na janela todo entardecer; onde anda o casal de velhos que costumava prosear em frente à casinha, sentados em toras de paus; onde anda o trabalhador braçal, o agricultor, a doceira, a lavadeira, o menino que tanto corria atrás de seu cão.
E não há como na perguntar onde a vendedora de doce de leite e sua bandeja colocada ali à sombra do umbuzeiro; qual caminhou tomou o doidinho engraçado que chamava todo mundo de tio, mas que de repente se armava de pedra para jogar; e o poeta matuto que morava ali e pouco saía de seu quarto com medo de se apaixonar pelas flores do campo.
Uma casa, uma casinha simples, um casebre, coisa igual tapera, quatro costas de ripas que chamavam de moradia, não importa a pobreza ou suntuosidade se agora nada mais resta senão as janelas batendo, as portas abertas, o percurso doloroso do vento reabrindo e fazendo surgir um rangido de dor.
Passo, olho, me aproximo destes cenários, porém não me atrevo a entrar em qualquer deles. Sei que ali não mora mais ninguém, que toda família se mudou, e não penso em perguntar ao silêncio, ao sombrio interior, por onde andam agora aqueles que ali viviam. Mas imagino onde estejam e o que os fez em retirada.
Outra coisa não tem mais poder de espantar famílias inteiras do seu lugar do que a seca, as estiagens sertanejas que alargam as estradas e veredas dando passagem aos famintos, aos fugitivos da fome, aos retirantes em busca de lugar nenhum. Somente a seca tem esse dom pesaroso de expulsar o homem da terra, o povo de sua moradia, a vida de seu lugar.
E são tantos que desesperadamente vão que a gente só se dá conta da ausência quando passa diante da casinha abandonada e encontra a porta e janela abertas, dançando entristecidamente ao sabor do vento. E eu que amava aquela linda flor que ficava à janela, e eu que tanto sonhava morder da fruta avermelhada no seu lábio. O que será de mim agora, vez que só resta o vão solitário da janela?
Oh, Deus, como dói! Vou embora também. Mas para onde, se não sei o passo do meu amor? Mas vou embora agora, vou embora também. E que vá o vento soprar o nome dela no meu caderno de poesia.




Poeta e cronista
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terça-feira, 27 de março de 2012

VEXAME NO REINO: O SANGUE DA PRINCESA NÃO É AZUL! (Crônica)

Rangel Alves da Costa*


Dizem que certo dia, num reino muito distante, num reinado de linhagem e ancestralidade que remontavam aos tempos mais antigos, ocorreu um incidente jamais esquecido.
Reino poderoso, império respeitado pelos quadrantes do mundo, possuía uma importância tão peculiar, num sentimento de realeza inigualável, que se passou a admitir sem contestação que nas veias da família real corria sangue azul.
Quer dizer, diferentemente dos súditos, das outras pessoas mundo afora e principalmente da casta comum, o sangue real era de um líquido azulado, composto de plasma e glóbulos dourados. Por isso mesmo que o incidente acontecido tomou dimensões inimagináveis.
Eis que o bobo da corte adentrou no recinto palaciano em tempo de se acabar, chorando, gritando, parecendo que o mundo estava sendo destruído lá fora ou que o reino inimigo estava às portas da fortaleza. E foi gritando em direção ao assustado casal soberano:
“O sangue da princesa não é azul! O sangue da princesa não é azul! Eu vi majestade, eu vi com meus tristes e arrependidos olhos que o sangue da princesa não é azul, é vermelho!”.
De tanto ouvir que realmente tinha sangue azul, numa mentira repetida que acabou se tornando com feições de verdade, a rainha levou a mão ao peito e teve de ser alcançada pela criadagem para não desabar ao chão. O rei, este então, esbugalhou os olhos, avermelhou as faces, suou quente demais e depois gelou, para enfim falar:
“Levem esse mentiroso para o fosso dos jacarés. Não pode ser, não pode ser verdade que a minha filha, a linda princesa, não tenha nas veias sangue correndo de outra cor que não o azul. Chamem o corpo médico real, todos os sábios, feiticeiros e alquimistas, mas quero a verdade sobre isso agora. Deve estar doente, minha linda filha deve estar muito doente. Onde está a princesa? Tragam-na até aqui agora mesmo”.
A balbúrdia que se formou dentro do palácio não foi menor do que o quiproquó existente lá fora. Uma multidão de curiosos com olhos arregalados em direção ao dedinho esbranquiçado da princesa e um filetezinho vermelho de sangue, fruto de um espinho de roseira enquanto colhia flores para alegrar seu coraçãozinho solitário.
A ralé do reino realmente não acreditava no que viam. Não podia ser, era impossível de se acreditar. Uma gotinha vermelha de sangue no dedinho da linda princesa era demais, coisa do outro, magia, feitiçaria ou coisa parecida. Por isso mesmo tanta gente orando, se benzendo, chorando, furando também os dedos para ver se o sangue era da mesma cor do da princesa.
A princesinha, coitada, ficava realmente temendo diante daquela situação. Não sabia muito o que fazer, pois mesmo sabendo que quando se machucava surgia na pele um líquido vermelho, ainda assim havia sido ensinada para ignorar aquela cor e ter a certeza do sangue azul que possuía. Ensinaram até que ela podia escolher se azul da cor do mar, do céu ou azul da cor da penugem do passarinho real.
E eis que de repente o próprio rei surge correndo, aos gritos, perguntando o que havia acontecido com sua filhinha. E então ela meigamente respondeu que não havia acontecido nada, apenas estava colhendo umas flores quando um espinho de roseira furou bem na ponta do dedinho. E estendeu a mão para que seu pai observasse mais de perto. E ao enxergar o líquido vermelho ainda brilhoso, o soberano desabou desmaiando.
Ao acordar do susto, a primeira coisa que fez foi baixar um decreto real afirmando que seria acusado de infâmia e condenado ao penhasco todo aquele que ousasse dizer ter visto sangue vermelho no dedo da princesa. E fechou a ordem confirmando o azul do sangue real, como já estava provado no manto azul do céu do qual ele se alimenta.
E depois selou o decreto com o sangue de um dedo espetado a espinho naquele momento. E foi quando o seu ordenança pronunciou: “Majestade, que belo jardim de violetas azuis embelezam as tuas veias!”.



Poeta e cronista
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Doce é o amor (Poesia)

Doce é o amor


Quando eu era amante
não sabia nada de amar
quando eu era apaixonado
não sabia nada do amor
quando em volúpia delirava
não sentia nenhum querer
quando falava pelo corpo
emudecia a voz do coração
até que finalmente um dia
a nudez sentiu chegar o frio
e o corpo apenas do prazer
já não sabia se proteger
para então reconhecer
o quanto doce é o amor
fruto da palavra e da feição
na presença que já é tudo
tudo semente numa relação
colhendo a dois a certeza
que é amar é maior devoção.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: FORRÓ NA SALA DE REBOCO

Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Sertão que é sertão respeita sua história, sua cultura e suas tradições. O novo que chega querendo passar por cima de tudo, com seus modismos exagerados e afrescalhados, serve apenas como comparação e certeza de que é preciso conservar as raízes.
Do contrário, os apelos do mundo moderno acabam destruindo tudo aquilo que seguidas gerações plantaram e colheram para seu regalo e festejo, num tradicionalismo onde cada um se reconhece como matiz e motivo, pois personagem inafastável daquela história recheada de encantamentos.
Que se diga o mesmo com relação à música autenticamente sertaneja diante das novas tendências musicais. Pelo que se sabe, sertão gosta de cantoria, de aboio, de repente, de toada, de forró. E forró autêntico, pé-de-serra, com sanfona, zabumba, triângulo e pandeiro, além de um cantador arretado que quanto mais o suor vai pingando no rosto mais ele lembra de canções famosas sertão adentro:
Assim como “Qui nem jiló”: “Se a gente lembra só por lembrar/ Do amor que a gente um dia perdeu/ Saudade inté que assim é bom/ Pro cabra se convencer/ Que é feliz sem saber/ Pois não sofreu...”.
Igual a “Pra não morrer de tristeza”: “Mulher, deixaste tua moradia/ Pra viver de boemia/ E beber nos cabarés/ E eu, pra não morrer de tristeza/ Me sento na mesma mesa/ Mesmo sabendo quem és/ E eu, pra não morrer de tristeza/ Me sento na mesma mesa/ Mesmo sabendo quem és...”.
Uma “Feira de mangaio”: “Fumo de rolo arreio e cangalha/ Eu tenho pra vender, quem quer comprar/ Bolo de milho, broa e cocada/ Eu tenho pra vender, quem quer comprar/ Pé de moleque, alecrim, canela/ Moleque sai daqui me deixa trabalhar/ E Zé saiu correndo pra feira de pássaros/ E foi passo voando pra todo lugar...”.
Este é o sertão e sua música, sua dança, sua festa, seu remelexo. Na sala de reboco, pouca iluminada, os casais se desdobram no passo certeiro do amor e da felicidade. E como é bom rodar no salão, corpo apertado no outro, um calor suportável por outros motivos, muitas vezes um bafo quente na nuca exalado pela pinga boa.
E quanto mais o velho sanfoneiro arrasta o seu fole, mais o zabumba bate no compasso e o cantador acompanha na voz todo aquele requebro, mais parece que chega gente, que a sala se enche, sobre um calorão danado, com tudo misturado a cheiro de suor, cachaça e perfume. E os casais se batem, apertam mais o passo, buscam espaços, e é como se a noite fosse curta demais para tanta alegria.
E de repente para tudo, pois se formou um qüiproquó que pode dar em confusão, numa briga grande, coisa de se arrastar peixeira e punhal. É que o cabra não gosta de jeito que quando já está com conversa certa no ouvido da mulher, chegue um folgado e lhe peça pra dar uma dançadinha com a parceira. Aí o cabra vira na peste, se azeda.
E se o outro insiste, aí não tem jeito mesmo. É briga na certa.




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