SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

A FÉ QUE ALIMENTA O SERTÃO



*Rangel Alves da Costa


O sertão é um oratório a céu aberto. E um oratório de céu com feição tão sertaneja que santos são criados pelo desejo do próprio povo.
Quem haverá de dizer que Padim Ciço Romão Batista não é santo? Quem haverá de dizer que Frei Damião não conduz a milagres?
A fé que anima e move o seu povo é tamanha que tudo na vida passa a depender dos desejos sagrados. E nada se faz sem as bençãos divinas.
Na concepção da religiosidade sertaneja, nenhum tempo ruim permanecerá se o olhar divino e salvador logo vai abrir a porta e entrar.
Daí as dores e os sofrimentos, as angústias e as aflições, serem suportados pela fé que logo tudo cessará. A seca braba esturrica e castiga, faz padecer e chorar, mas Deus logo mandará chuva boa. É assim que se diz.
O pecado do homem e a falta de obediência aos ensinamentos trazem a tristeza e o sofrimento. É assim que se diz.
E há uma certeza tamanha na reversão das angústias, que é como se tudo fosse apenas uma privação ou provação passageira. É assim que, na concepção sertaneja, se concebe o amanhã.
Mas para que o amanhã realmente traga um tempo bom, necessário que os rosários de contas caminhem pelas mãos, os joelhos se dobrem frente aos altares e oratórios, as velas sejam acesas, as bocas murmurejem preces, orações, ave-marias.
E assim também acontece diuturnamente. A fé, a devoção e a religiosidade estão em tudo e por todo lugar. Há que se benzer desde o acordar ao deitar.
Os santos são companhias milagrosas ao olhar, o coração se fortalece ante a visão de uma imagem sagrada pendurada na parede, os terços e rosários são como inafastáveis relíquias, as fitas de Juazeiro só saem dos braços pelo desejo do tempo.
Logo à entrada da moradia uma escrita anuncia que a família é abençoada por Deus. As flores de plástico são como jardins empoeirados ao lado dos santos. As novenas vão levando de porta em porta o alimenta da fé.
Na banquinha com toalha rendada e enfeitada de flores, a imagem devotada alimentando a fé de um povo.
Os olhares lacrimejam, os lábios se movem em canções, as mãos se cruzam rente ao peito, então um escudo sagrado vai envolvendo o viver perante as dificuldades da vida.
Pelas estradas nuas, secas, esturricadas, debaixo dos sóis, seguem os passos da fé em procissão. Uma caminhada sem santa, um percurso na sequidão que se assemelha a paraíso.
Encontrar dez, quinze ou vinte pessoas, levando sua fé pelas estradas, pode até causar estranheza ao de hoje. Quem não conhece os costumes religiosos, certamente irá estranhar os meios e modos de devoção.
Porém, basta a proximidade para saber e sentir o que move o passo daquele povo. Há um estandarte e um santo, ou mesmo uma imagem sendo levada e passada de mão em mão, mas há algo muito maior: a certeza que, pela fé e devoção, o milagre acontecerá.
E qual milagre? A cura, a chuva, a benção ao lar, a proteção sagrada, a demonstração que se vive da fé e pela fé. E que, por isso mesmo, pela força da fé, Deus, os santos e anjos, cuidarão de tornar suas esperanças em conquistas.
A chuva, a terra molhada, a planta vingando, o alimento surgindo, e tudo o mais que se deseje. E assim, pelas estradas, vai seguindo a procissão.
Lá no alto, a vela do sol a tudo ilumina. E iluminados, os corações encontram seus contentamentos e suas forças para seguir adiante. Pela vida inteira.


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Lá no meu sertão...


Antes da cancela, dentro do sertão



No amor (Poesia)



No amor


O amor
é sol
é lua
é chuva
e seca

é amor
é calor
é encanto
é lágrima
e adeus

uma brisa
e ventania
tempestade
indomada
e fim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - felicidade



*Rangel Alves da Costa


A felicidade é tão difícil de ser alcançada como de ser conceituada, pois surgida no íntimo e exteriorizada como ânimo de bem-aventurança. De qualquer modo, ela pressupõe o ânimo de feliz.  E tal estado comumente se caracteriza pelo contentamento, pela alegria, pela sensação de bem estar físico e mental. Diz-se, pois, que a pessoa está envolta de felicidade se apresenta tais aspectos. Mas não somente assim. A verdadeira felicidade não se contenta apenas com um estado de ânimo ou uma sensação, pois exige que a percepção de estar bem, realizado, satisfeito, seja prolongada, de modo a provocar reflexos positivos nas atitudes. Assim, não é qualquer momento de satisfação ou instante de alegria que possa caracterizar como estado de felicidade. Daí que a tão conhecida felicidade passageira muitas vezes apenas ilude os sentimentos. E pode provocar danosas consequências. Contudo, sempre melhor arriscar ser feliz. Ir sendo feliz, feliz, feliz e feliz. Uma felicidade tão intensa que o seu inverso até tema se aproximar.


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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

UM LIVRO SEM LETRAS



*Rangel Alves da Costa


Nossos olhos abrem livros sem parar. Páginas e mais páginas diante do nosso olhar. Por que não ler? Tal leitura não requer o entendimento das letras, a compreensão das palavras ou a junção das ideias para um possível entendimento. Não. As páginas abertas não mostram letras escritas, e sim a escrita do mundo, da vida, do modo de ser e viver sertanejo.
Não será preciso, pois, folhear, por exemplo, as páginas da história de Poço Redondo para conhecer Poço Redondo. Tomo tal localidade como exemplo por ser meu berço de nascimento. Nas imagens, nas paisagens, nos pequenos retratos cotidianos, toda uma rica e vasta escrita. E que grandioso livro! A cidade evoluída, com novas construções e feições que pouco lembram os tempos antigos, ainda assim guarda em si valiosas páginas de sua história.
Nada é tão novo que esconda o ontem, o passado. Tudo feito ou refeito, já existia de outra forma no passado. Ora, as ruas possuem história, as casas possuem história, as pessoas e as famílias são primordiais para o entendimento da história. Neste sentido, uma casa antiga, já velha demais e parecendo querer desabar a qualquer instante, sempre possui uma essência que precisa ser conhecida. Quem construiu, quem morou ali, quem trancou sua porta pela última vez?
O conhecimento vai sendo formado assim. A pessoa pode simplesmente passar e sequer olha adiante, sempre achando que se trata de uma velharia que não mereça qualquer atenção. Mas ali uma história. Quem sabe se os seus antepassados por ali já estiveram com vida e presença? As calçadas também possuem importância fundamental ao conhecimento. As calçadas, as cadeiras de balanço, as esteiras lançadas ao chão ou cimento.
Aqueles idosos que sentam ao entardecer ou que são avistados num cantinho de janela, todos possuem histórias e relatos surpreendentes que precisam ser conhecidos. E muitos deles ávidos e esperançosos de uma visitinha apenas. Nada demais, ainda que na correria de todo instante, que se tire um tempinho para uma visita, para um proseado, para compartilhar a alegria da valorização do outro. É que nas feições marcadas de tempo, nos olhos cansados das noites e dias, nos pés calejados da estrada, relíquias inteiras permanecem guardadas. E só descobre tesouros do passado quem busca tempo para ouvir aqueles que vivenciaram suas páginas e fizeram parte da grande saga sertaneja.
Muitos relatos surgirão de como era Poço Redondo antigo, muitos ainda recordarão histórias dos tempos cangaceiros e suas medonhices na povoação e arredores, muitos ainda dirão sobre nomes, locais e fatos, que a poeira do tempo vai querendo encobrir. Tudo isso está num livro que somente é de possível leitura pela presença, pelo desejo de conhecer. Quanta leitura, por exemplo, numa curta caminhada da cidade até o Poço de Cima, seguindo uma estrada de tanta história a cada passo. Nada mais que dois ou três quilômetros.
Quem se interessa em conhecer a capelinha do Poço Redondo, as sepulturas espalhadas ao redor, as poucas casas que ainda restam dos primórdios da povoação? A maioria das pessoas sabe que Poço Redondo nasceu em Poço de Cima, bem ao lado da atual cidade, mas quantas pessoas seguem até lá para conhecer o que ainda resta? Não só Poço de Cima como outros locais que ficam no entorno da cidade. Talvez a preguiça de caminhar e até de olhar, impeça que a história seja conhecida presencialmente.
O Alto de João Paulo é um bom exemplo disso tudo. O nome é conhecido demais e todos sabem que ali, logo após a passagem do Riacho Jacaré (cuja história também precisa ser conhecida ao menos através do olhar) mora uma comunidade de feição familiar. Mas quem foi João Paulo, qual o significado do Alto para a história de Poço Redondo? Poucos sabem responder. Não sabem que o Alto foi berço de grandes vaqueiros da região sertaneja, que dali saiu quase uma dezena de cangaceiros para o bando de Lampião, que a casa de Adília ainda está ali, que nos Braz, nos Mulatinho e nos Maximino, repousam uma saga de suma importância na formação de Poço Redondo.
E por aí vai. Ou não se vai. Se as pessoas saíssem mais da cidade e enveredassem pelas estradas, pelos descampados e veredas, certamente iriam encontrar locais, fazendas, moradias e pessoas, que são verdadeiras páginas visuais de um grande livro de história. Mas infelizmente não é assim que acontece. Tem gente que chega a Curralinho e não procura sequer conhecer a comunidade, suas casas antigas e seu povo pacato. Nada sabe nem procura saber sobre suas igrejas, sobre a importância histórica da comunidade, até sobre o próprio rio.
Sabe apenas que é Rio São Francisco. Mas apenas um rio. E no imaginário, apenas um rio que por ali passa e sem história alguma. Infelizmente é assim. Infelizmente a preguiça de, através do olhar, conhecer a história e, a partir da admiração, a busca de outras páginas, de outros relatos, de outras escritas.


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Lá no meu sertão...


Eu e sertão meu...


Três olhares (Poesia)



Três olhares


No primeiro olhar
uma admiração
um espanto surgido
dentro do coração

no segundo olhar
um sorriso dado
e no sorriso visto
fiquei apaixonado

eu não sabia o seu nome
ela me disse baixinho
e foi nessa palavra
o primeiro carinho

no terceiro olhar
estendi minha mão
me entreguei por inteiro
já era paixão.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - cuscuz



*Rangel Alves da Costa


Já três dias sem comer cuscuz. Deus do céu, isso é tempo demais. Cuscuz é tão bom que deveria ser obrigatório no café, no almoço e na janta. Mas cuscuz nordestino mesmo, sertanejo de raiz, e não à moda sulista e de outras invenções. O cuscuz apenas com a farinha de milho. A coisa mais fácil de faz. Coloca-se a massa num recipiente, espalha um pouquinho de sal por cima (a gosto, como se diz), mistura tudo e coloca um pouco de água por cima, revirando a massa e deixando descansar por uns cinco minutos, ou menos. Em seguida é só colocar no cuscuzeiro e levar ao fogo até começar a exalar o cheiro gostoso. Está pronto. A porção cabe a cada um. Eu, por exemplo, só gosto de muito, muito mesmo. A mistura é também variada: carne de bode, tripa de porco torrada, toucinho, ovos de galinha de capoeira, mas sempre acompanhado de manteiga da boa. E pra acompanhar, nada melhor que uma boa xícara de café. E uma vontade danada de querer mais.


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terça-feira, 28 de janeiro de 2020

COMPREENDER A VIDA



*Rangel Alves da Costa


Uma fotografia. Uma capelinha. Um pequeno cemitério ao redor. Eu sentado numa pedra. Túmulos ao redor. Então eu disse em seguida:
Um dia eu sentei aí, tão perto da morte, exatamente para pensar a vida. Eu não estava aí só para visitar ou fotografar, mas para compreender a vida ao redor da morte.
Um dia eu caminhei até o Poço de Cima e adentrei pelos arredores de sua igrejinha, onde túmulos foram sendo abertos desde os primórdios de Poço Redondo, exatamente para estar na presença daquelas partidas e daquelas saudades.
Certamente que eu não cheguei e nesta pedra sentei e logo pedi para ser fotografado. Calmamente caminhei entre as sepulturas, li os epitáfios, identifiquei os nomes e datas grafados nas cruzes, meditei naquele silêncio que era de voz e de grito.
Nada que ecoasse dos túmulos, mas dos meus próprios pensamentos. Um turbilhão de coisas chegando, como se não houvesse coisa mais instigante na vida do que a morte.
Perguntas e respostas, interrogações e espantos, lembranças e relembranças, diálogos com o estranho e desconhecido mundo, enfim.
Aquele silêncio de planície, aquela calma de afastamento da cidade, aquela paisagem bonita e triste. O que é a morte? Perguntei-me. Logo respondi: É a presença na inalcançável distância.
Ora, para grande parte dos humanos, a morte nunca é exatamente fim para o ente que partiu. A morte leva, distancia, mas grande parte fica no luto, na saudade, na contínua presença.
A dor pela perda de alguém é exatamente esta: o distanciamento forçado do ente amado. E quanto mais se quer a presença mais a saudade e a dor retomam o entrelaçamento.
Acaso o esquecimento fosse a consequência mais lógica, certamente não haveria saudade, tristeza, desejo de presença, o contínuo entrelaçamento.
E as cruzes, os epitáfios e as flores dos túmulos, dariam lugar ao reles esquecimento, e a voracidade do tempo logo encobriria os leitos do repouso último.
E perante os túmulos ali espalhados, a minha certeza de estar ainda diante de tantas vidas. Vidas silenciadas, mas vidas. Nomes, sobrenomes, datas, lembranças das feições em vida.
Que sono profundo, que paz no Senhor!


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Lá no meu sertão...


Ê, ê ô, vida de gado no meu Poço Redondo...



Amores e outras dores (Poesia)



Amores e outras dores


O coração estressou
é doença de amor
uma penicilina
uma bezetacil
passa não
pra doença de amor
tome não

o peito rebentado
sentimento rasgado
tudo mal de amor
tudo tanta dor
tem remédio não
cura não

não suporta mais
toma açúcar com sais
teme enlouquecer
o remédio é amar
do amor beber
do amor viver
ou morrer.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - desmundo



*Rangel Alves da Costa


Mundo de desmundo. Vida de invivência. Do luto guardado durante meia hora, na hora seguinte já vai abrir as pernas. Respeito é bom e eu gosto. Mas eu sozinho. Resto de gente num gosta não. Vida boa a do menino que ainda se contenta com a calcinha no varal ou no abrir de pernas na sentada da menina. Adespois aprende que tudo tá tão fácil que nem precisa saber do nome. Joaninha tem três filhos e até hoje num sabe o nome do pai de nenhum. E nem ela sabe escrever o nome dos filhos: Clausslayenne, Thaunnyalle e Ethanneard. Coitados dos bichinhos. Arriscado mais tarde nenhum saber escrever também. A vida é assim mesmo, de mundo e desmundo. Quem vive sozinho morre sozinho. A vela acende sozinha e se apaga sozinha, e pronto. Ninguém liga mais pra ninguém não. Um filho, dentro de casa, esbarrou na mãe e se espantou. Nunca mais tinha olhado pra ela e achou que era uma desconhecida entrando no seu quarto. Deu a bença não. Num precisa mais. Ninguém pede mais a bença. Nem bença nem benção. Tanto faz, né? Se eu tivesse dinheiro ia mesmo era tomar uma cachaça. Mas tenho não. Vou tomar uísque mesmo. Todo mundo é rico. Mesmo sem um tostão.


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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

VIDA DURA



*Rangel Alves da Costa


Há um relógio diferenciado no viver sertanejo. Nos sertões, o dia começa na escuridão, a noite abre a boca ainda com o sol em candeeiro, e a madrugada sequer tem tempo de acontecer. O homem faz seu próprio relógio e tudo acontece segundo sua pressa e sua necessidade de logo fazer.
Ainda na madrugada escurecida, ou o que nela se imagine que exista, e o galo já canta pelo quintal. Não são nem quatro da manhã e a vida já parece acordada pelos rincões sertanejos. Ao longe, pelas frestas da porta e janelas da casinhola de barro, cipó e ripa, possível é avistar o luzir amarela do candeeiro ou a florescência da lâmpada que foi acesa.
O galo cantor já sabe que logo a porta dos fundos começará seu rangido para ser aberta. Acontece sempre assim. A primeira porta a ser aberta após o acordar é a da porta dos fundos, da cozinha, passagem para o quintal ou o caminho para a mata ainda avistada mais adiante. E no quintal o purrão, o velho tronco servindo de banco debaixo de um pé de pau, o varal, o tanque de lavar roupa, um cercadinho para plantas medicinais, e também o poleiro.
Enquanto a cidade ainda dorme sem pressa, pelas estradas adiante e mais além o dia já começou desde muito. Do feixe de lenha guardado num canto, pedaços de pau são lançados nas entranhas do fogão de barro. Não demorará muito e a velha chaleira levantará pelos ares o cheiro gostoso e perfumado do café torrado. Na frigideira, o toucinho com ovos será preparado. O cuscuz continua suando debaixo dos panos. Talvez assim e talvez não. Nem toda casa possui um amanhecer de comida no prato assim.
Acaso exista algum bicho de cria, ou mesmo pequeno rebanho já solto do curral, seu remansoso passeio, entre mugidos e ruminâncias, logo demonstra a plenitude do amanhecer. O sol já desponta, os horizontes já estão iluminados pela luz da aurora, as panelas e pratos começam a serem buscados na cozinha. Mas tudo ainda da porta da cozinha pra trás, pois a porta da frente só é aberta quando os ofícios do dia chamarem à luta. E quanta luta daí em diante até a boca da noite!
No mato, os ofícios geralmente são na mataria, ainda que seja na lida de pequeno rebanho. Nem todo mundo tem cavalo para cuidar, mas se trata com zelo até o mais magricela bichinho. Acaso alguma semente tenha sido lançada ao chão, a esperança que mais tarde vinga faz com que a enxada sempre esteja ao redor, na limpeza, no afastamento das ervas daninhas. Igualmente se vingadas, brotadas, com ares de crescimento, quando os esforços são redobrados para que tudo floresça e mais tarde coloque comida na mesa. Um pouco de feijão de corda, de arranca, um punhado de maxixe, um tantinho de milho, de melancia, quiabo...
A caça já rareou de vez. Noutros tempos, quando a vegetação ainda se mantinha em pé e os tufos de matos garantiam a moradia de muito bicho, ainda era possível encontrar o preá, o caititu, a codorna, a nambu, o teiú, o tatu, o peba, além de outras espécies próprias da aridez sertaneja. Com a caça, também o auxílio importante na sobrevivência, vez que a meninada se farta quando tem diante de si um pedaço, seja cozido ou assado, para misturar à farinha seca ou qualquer outro de comer que sirva para matar a fome.
Mas hoje em dia nem ninho de passarinho existe mais. Quando a árvore é derrubada, todo o alicerce da moradia do passarinho vai embora. E o bichinho também. A bem dizer, até mesmo as cobras estão sumindo de debaixo dos garranchos e das locas das pedras. Aquele que saía para o mato na esperança de retornar com o almoço ou janta, já pega caminho na incerteza. Os aiós voltam vazios, os embornais entristecidos, e o homem pesaroso da vida. Está cada vez mais difícil sobreviver tanto da colheita na terra como da colheita no mato. Chove alguns dias, tudo verdeja, mas logo tudo seca, esturrica, levando consigo a semente e o sustento familiar.
E quando vem a seca grande então é um deus nos acuda. Tantas vezes, é na sobrevivência do bicho, de uma ou duas reses, que o homem se entrega em toda força e devoção. Uma cria cujo valor seja de dois contos de réis, por exemplo, o seu dono acaba gastando dez contos ou mais. O que lhe importa é não deixar que a fome e o enfraquecimento façam tombar aos urubus e carcarás aquilo que acostumou a ter como um familiar.
Dona Maria se entrega às preces. Seu rosário de contas passeia entre os dedos em promessas e devoções. Ao abrir a porta do amanhecer, a primeira coisa que o homem faz, até antes mesmo de se benzer, é olhar para as distâncias, para a forma e as cores das nuvens. Seus olhos brincam, alegram, entristecem. Na nuvem a leitura do tempo, da chuva e da seca, e de tudo que é sua vida.


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Lá no meu sertão...


Em Curralinho: a arquitetura contando a história ribeirinha...





Um menininho (Poesia)



Um menininho


Era uma vez
um menininho lindo
e era tão pequenino
que eu pegava na mão
e guardava no coração

do coração ele pulava
e começava a reinar
falando engraçado
tudo tão ligeirinho
que cavalo era “caralinho”

eu amava o menininho
mas ele saiu pela porta
e onde brinca não sei
só sei que pela ausência
eu fiquei triste e chorei.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - nas sombras da noite



*Rangel Alves da Costa


Tudo escuro. Altas horas da noite. Talvez já na madrugada. Silêncio total pelas ruas. Nenhum passo. Nenhum barulho estranho. Nada. Mas de repente, ao longe, ouvia-se o trotar de um cavalo. Quanto mais se aproximava mais havia a certeza de que cavalo e cavaleiro se aproximavam. Tantas vezes relinchava, barulhava como se de repente refreasse na terra nua. Ninguém duvidava que o que se ouvia era o som das patas de um cavalo. E cavalo vindo de longe, cortando as ruas da povoação. Também ninguém duvidava que de repente o cavalo parava em algum canto para depois prosseguir. E assim sempre nas noites mais escuras, de lua sumida, no breu. Muita gente se metia debaixo da cama ao ouvir aquela estranheza. E assim por que ninguém sabia de quem se tratava, vez que jamais fora avistado por olho humano, e tão somente a certeza de sua passagem. Era o cavaleiro da noite, o cavalo da assombração, o cavaleiro da alma penada. Assim se dizia. Até hoje essa história é repassada pelos sertões, e não se admitindo que digam que é mentira. Ainda tem gente que diz que pelas frestas ouviu o cavalo passando. Mas apenas passando e passando.


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domingo, 26 de janeiro de 2020

“HÁ UMA PEDRA QUE CANTA E UM CALANGO QUE CHORA...”



*Rangel Alves da Costa


Nada do outro mundo não. Tudo verdade. Tudo no sertão. Mas é preciso conhecer esse mundo de aridez ensolarada para saber do existente ao redor e mais adiante, para ouvir suas vozes escondidas após as porteiras e cancelas, para dialogar com o que se imagina inexistente, para abrir o seu livro e conhecer suas histórias, seus causos e proseados.
Nada, contudo, será possível sem colocar o pé na estrada, sem caminhar pelos espinhos e pontas de pedras na terra nua, sem ladear com o amarelado da linda flor da jurubeba que adorna o beiral da vereda.
Mas que não saia da cidade quem não souber conversar com a pedra, quem não souber ouvir a voz do passarinho, quem não souber compreender o que faz o mandacaru de braços abertos para o alto.
Tudo no sertão possui história, possui explicação, possui conhecimento, e até mesmo no que está ocultado nos tufos do mato ou debaixo das ramagens secas. O cipó possui vida, possui história. A casa velha só falta falar e gritar, só falta puxar a mão e dizer: “Venha, venha me conhecer. Fui passado e sou escombro presente, mas muito tenho a dizer!”.
O curral abandonado ecoa mugidos de rebanhos que já se foram. A malhada nua, ressequida e silenciosa, ainda guarda em seu chão os passos de gerações e mais gerações. Uma cabeça seca de vaca por cima de um ripado de cerca. Quem foi seu dono, como morreu, e por que ali foi colocada como simbologia da desvalia sertaneja em tempos de seca grande?
Andando a pé e lançando o olhar pelas vastidões das estradas, pelas curvas e veredas que seguem, de repente a pessoa avista aquilo que parece inexistente nos seus dias. Retirantes da seca, olhos fundos em rostos carcomidos pela fome e pela sede. Ossos parecendo sobressaindo-se à pele, pés descalços que caminham sem destino algum.
Comboeiros, vaqueiros, rangidos de carro-de-bois, um cavaleiro apressado que vai atrás de uma velha parteira. No alto, cortando os céus, passarinhos que são mensageiros. O tem-tem anuncia que por ali “tem-tem” gente chegando. O quero-quero diz que precisa encontrar alimento para o seu bico deixar de tanto querer. Urubus, carcarás e avoantes de bico apunhalado, cortam os ares em busca de bicho morto, de bezerro fraco e lançado ao chão, até de gente morta nas tocaias e emboscadas.
O calango corre e corre, e corre sem parar. Ora, a terra é seca demais, o chão é braseiro puro, então tem correr para fugir do fogo. Sobre numa pedra e começa a balançar a cabeça. Não, não acredita no que vê. O que era verdoso, de mata grande, vistoso, com bicho zanzando por todo lugar, agora só a nudez em cinzas. Não, não acredita, e então balança a cabeça sem acreditar.
O mandacaru, contudo, permanece altivo, ainda que a catingueira já tenha ressecado e o barro do tanque já tenha petrificado. De braços erguidos, sempre levantados em direção aos céus, o velho mandacaru então preces, ora, faz promessas, pede chuva e bonança, pede a salvação sertaneja.
E ao sentar numa pedra, numa dessas pedras que parecem eternamente testemunhar o viver sertanejo, o andante logo ouvirá surgindo de suas entranhas: “Nada estranho. Nada de novo debaixo do sol. O sertão só é sertão por que é assim. O oásis está na lágrima e o doce pão na semente não vingada no esturricado chão. Mas eis que o tempo passa e tudo se renova. E assim num sertão que é um Eclesiastes sem fim: há de morrer para viver, há de sofrer para reencontrar o contentamento. E por aqui sempre passa uma mulher vestida de sol e me diz: Ouvi a oração desse povo. E meu filho, lá do alto, atenderá seus pedidos. A chuva vem!”.
E de repente cágados vão surgindo. Aparece um, mais outro e mais outro. E todo sertanejo deveria saber que quando o cágado aparece do nada é porque a chuvarada já está a caminho. O tempo muda, tudo parece escurecer. As nuvens prenhes tomam conta dos espaços. As folhagens se agitam, o vento sopra a dor para trazer o sorriso.
Troveja, relampeja, chove no sertão.


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Lá no meu sertão...


Um menininho



Enquanto o mar não vem (Poesia)



Enquanto o mar não vem


Fincado neste sertão
só se o mar viesse a mim
chegasse pelas águas do rio
e me banhasse sem fim
e fazendo valer a profecia
do mar no sertão em festim

mas enquanto o mar não vem
e a magreza do rio é paisagem
lanço a rede da esperança
e no leito a pé faço viagem
levando na mão a carranca
a Deus pedindo passagem.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - menino do pião



*Rangel Alves da Costa


“Eu vi um menino brincando, eu vi o tempo...” - Ano passado no Dom José Brandão, Assentamento Queimada Grande, zona rural do município sergipano e sertanejo de Poço Redondo, saí por um instante ao pátio da escola e me deparei com um menino brincando com um pião. E logicamente voltei no tempo e me pus a recordar aquelas brincadeiras tão maravilhosas da infância. Estava ali para palestrar sobre o Cariri Cangaço, mas o que retratei em imagem foi algo inesquecível. E por isso que ainda guardo um registro fotográfico bem guardadinho comigo. Saudade, saudade. Saudade de tudo, da infância, das brincadeiras, dos doces anos interioranos. O menino brincando de pião já deve estar um rapazinho, mas que ele saiba o quanto me fez bem ao se deixar fotografar perante a magia de seu mundo. Saudade de tudo. Um abraço, menino-rapazinho do pião. E também para os demais que por ali estavam na verdadeira lição do viver: a beleza das páginas de um caderno de infância, de meninice, de juventude... Cresçam e cresçam, mas jamais se esqueçam do passado nem das brincadeiras que acalantaram os seus dias!


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sábado, 25 de janeiro de 2020

A VIDA RIBEIRINHA É BONITA E TRISTE



*Rangel Alves da Costa


Conhece a vida aquele que não vive de ilusões e sabe que pisa em espinhos, e sabe que nada é fácil de ser conseguido. Conhece a vida aquele que abre a porta ao amanhecer e não se deixa somente encantar, pois sabe da luta que tem e do nunca poder parar. Conhece a vida aquele que conhece a sua despensa e sabe que no guarda-comida não tem além de apenas um pouquinho do que necessita para o prato do dia.
Conhece a vida aquele que não finge, que não vai deixando pra lá e sofre os sofrimentos tão próprios do ser humano. A carestia em tudo, o remédio que sempre falta, a roupa rasgada e já tantas vezes remendada, a chinela nova pra menina, um calção pro menino, as coisas simples da vida e que são tão difíceis demais de serem conseguidas. O olhar de fora nem sempre avista o outro em sua realidade.
Quando imagina ter avistado em sua inteireza, quase sempre faz julgamentos errados ou distorcidos. Como num olhar antropológico, o outro precisa ser olhado por dentro, em sua realidade cotidiana, para que haja uma possível compreensão de suas carências e de sua importância no seu mundo. Digo assim para dizer que o povo ribeirinho de Curralinho, nas beiradas do Velho Chico no sergipano e sertanejo Poço Redondo, deveria ser olhado e, mais que isso, compreendido de outro modo.
O povo de Curralinho possui peculiaridades. O habitante de hoje é muito diferente daquele morador de outros tempos. Atualmente, quem chega naqueles beirais molhados do Opará sertanejo sequer imagina sua pujança no passado. Também não avista mais as grandes embarcações, as carrancas surgindo ao longe, nas curvas do rio, para afastar os maus espíritos das águas. Adiante, do alto das calçadas altas - e assim por que no passado as águas eram tantas que chegavam aos quintais -, apenas lançar o olhar para as saudades tantas de um tempo de efervescente viver.
Ora, Curralinho já foi rico, já foi o local mais progressista e promissor de Poço Redondo. Definhou quando o rio deixou de ser a principal via de transporte e de chegada e saída de mercadorias. Armazéns foram fechados, mercearias deixaram de existir, viajantes e comerciantes escassearam, portas residenciais foram fechadas, muitos curralienses simplesmente abandonaram o lugar. O que restou? Restou uma povoação quase parada no tempo e sobrevivendo das sombras passadas.
As recordações nas belas fachadas arquitetônicas, as calçadas mirando os silêncios do rio passando, as embarcações sonolentas ou adormecidas nas beiradas d’água, e pessoas em intensa luta pela sobrevivência. Foram golpes duros demais ao povo curraliense. Da riqueza ao pouco ter, de um rio antigamente piscoso a um leito magro e sem o pescado do dia a dia. Fazer o que? A verdade é que o povo ribeirinho não consegue mais sobreviver das águas do rio.
Um povo acostumado com surubim e tubarana, mas que hoje dificilmente enche uma cuia de piaba. Quando o homem passou a domar as águas do rio, enchendo o leito ou secando segundo as conveniências das barragens e hidrelétricas, então tudo se transformou como numa esmola do opressor ao oprimido, e este o verdadeiro dono de toda aquela vida. Sem o peixe, sem o comércio, sem empreendimentos que garantam emprego e renda, hoje Curralinho sobrevive de que?
Grande parte das famílias sobrevive apenas do que recebe dos programas sociais do governo. Os barraqueiros da venda de peixe comprado fora e de bebidas. Os barqueiros de um passeio com os visitantes ou de um transporte para locais próximos. As belezas do Velho Chico e das paisagens nunca foram devidamente exploradas para a efetiva melhoria da qualidade de vida da população. O turista ou visitante, infelizmente se interessa somente pelas beiradas d’água e sequer quer saber se ali existe uma comunidade, um povo. Tanto assim que as pessoas descem a ladeira, ultrapassam as esquinas e seguem logo para a proximidade das águas. Ali sentam, bebem e brincam, passeiam pelas margens, tomam banho, depois retornam sem conhecer nada da realidade local.
Precisam saber, pois, que Curralinho não é apenas um rio, não é apenas um leito de banho e uma mesa na proximidade das águas. Precisam saber que ali é lar de um povo, é a vida de um povo, e uma gente com história, com realidades alegres e tristes, com sonhos e esperanças. Que saiam das beiradas e subam nas calçadas, que caminhem pelas ruas, que conversem com o seu povo, que procurem ouvir para ajudar. Difícil, contudo, que assim aconteça. A maioria dos que ali chegam sequer procura conhecer a importância daquela primeira igreja encontrada no alto, em lugar vistoso.
E com isso finalizar dizendo que Antônio Conselheiro e seus seguidores, lá pelos idos de 1874, quando terminaram a reforma e abriram as portas daquela igrejinha, demonstraram maior admiração e respeito por Curralinho do que os visitantes de hoje.


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Lá no meu sertão...


AO LADO DE ROBERTINHA DO CAJUEIRO. Robertinha, pessoa encantadora, artista espetacular, orgulho ribeirinho e de Poço Redondo. “Nos beirais das águas lavam-se as mágoas, e o que resta é canção no meu coração. Chico, Velho meu, Francisco, meu amigo rio, que traga carranca e a vida que não ser perdeu, que traga canoa e tudo que é do peito meu...”.



Dia e noite (Poesia)



Dia e noite


Dia e noite
como o sol
como a lua
desde o arrebol
a saudade sua

um viver assim
seu retrato em mim
poema escrito
na recordação
de amor sem fim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - meus velhos



*Rangel Alves da Costa


Os meus velhos não são os meus pais. Infelizmente eles não estão mais aqui. Meus velhos são outras pessoas de avançada idade e que sempre procuro quando quero aprender. Os meus velhos são meus amigos que, mesmo esquecidos por muitos e até pelos próprios familiares, sempre me acolhem que vou atrás. Os meus velhos estão silenciosos nas salas, nas varandas, nos quartos. Os meus velhos estão enfermos e acamados, estão nas cadeiras de balanço do entardecer, estão mirando horizontes com olhos tristes e cheios de saudades. Os meus velhos estão sentadinhos na portada da casa, num sombreado, num pé de parede. Os meus velhos estão ali e por todo lugar. Seu Bastião, Dona Filomena, Seu Tingó, Dona Beralda, tudo é velho meu. Tantas vezes me chamam de filho, o que gosto demais. Outras vezes perguntam por que quero saber tanto de pessoa que já passou. Apenas respondo que preciso aprender com suas lições, que preciso ouvir suas histórias e causos, que tenho de guardar no embornal da memória suas velhas, doces e tristes recordações. E eles vão contando tudo, mansamente. E eu guardando tudo, avidamente. Converso e converso e depois retorno. E quanto mais eu retorno mais encontro os meus velhos felizes e contentes com minha presença.


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quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A CHAVE E O CADEADO



*Rangel Alves da Costa


A chave e o cadeado servem como simbologia para muitas situações da vida. A chave é a liberdade, o cadeado o aprisionamento. A chave é o encontro, e a distância o cadeado. Os dois tão unidos e tão separados, eis que a chave feita para negar o poder do cadeado. Tantas vezes, um cadeado tão grande para ser vencido por uma minúscula chave, bastando um contorno com a mão.
Mas há muito mais. Dependendo do momento, colocar a chave no cadeado significa uma das maiores conquistas da vida. Diversas situações confirmam que não há momento mais comemorado, alívio mais esperado e sensação de vitória do que aquele após sentir que a chave se ajustou ao buraco do cadeado. E indescritível quando a tranca está liberada.
Chegar à casa alta hora da noite, olhar de lado a outro amedrontado, apressadamente buscar a chave para abrir o portão; esbarrar esbaforido diante da porta, vasculhar os bolsos em busca das chaves, e em seguida levar a mão trêmula ao cadeado; saudosamente avistar a moradia e seguir diretamente ao portão de chave à mão. São momentos cruciais na vida de uma pessoa.
Contudo, muitas vezes as chaves foram esquecidas em algum lugar, ou mesmo não são aquelas as que servirão para abrir aqueles portões. Fatos assim, e mais corriqueiros do que se imagina, fazem o mundo desabar para qualquer um. E mais angustiante ainda quando as chaves são aquelas, a pessoa tudo faz para encontrar a ideal, mas não tem jeito de alguma delas encaixar.
Mas não pode ser, pois tenho certeza que a chave é esta mesma, diz a pessoa aflita. Talvez seja porque preciso colocar um pouco de graxa no fenda do cadeado, mas a chave é esta aqui, afirma a pessoa com aspecto de desilusão. Eis, então, o cerne da questão: a expectativa do encaixe da chave ao buraco do cadeado.
E num determinado momento, na hora precisa, sob pena de muita coisa acontecer se a tranca não for liberada. Até pode soar como questão irrelevante, como algo que não merecesse qualquer explanação, mas, como será demonstrado, é fato de suma importância na vida de um ser humano. Ademais, a chave diante do cadeado pode servir de metáfora para muitas outras situações.
O tempo passa, o medo se expande, a pulsação aumenta, a necessidade de encontrar a chave ideal acaba complicando ainda mais; uma quase entra, mas nada de encaixar. Procura outra e mais outra, olha de lado, já está entrando em desespero, e nada de acertar a chave. Dá vontade de derrubar tudo, de puxar o cadeado para o lado de fora, de fazer qualquer coisa para resolver a situação. Mas nada acontece.
Suspira, transpira, pede calma a si mesmo, faz mais uma tentativa, agora mais calmamente. A chave vai entrando certinha, deslizando, porém emperra em qualquer coisa. Não é essa. Mas não pode ser, pois sempre usou essa para abrir. E as mãos suadas e trêmulas fazem nova tentativa. Essa nem coube no espaço. Talvez seja essa. Tem de ser essa. Não há outra. Vai colocando, cuidadosamente, no buraco e...
Mas situações desesperadoras também podem ocorrer quando a chave é única e somente aquela serve para abrir o cadeado. E já está até envelhecida de tanto fazer tal procedimento. Contudo, ainda assim não é garantia de abrir a porta na primeira tentativa. Ademais, pelo envelhecimento pode causar uma consequência pior: quebrar lá dentro. E agora, quando a rua está totalmente deserta, não haverá como encontrar um chaveiro, e o sujeito começa a sentir uma necessidade imperiosa de visitar o banheiro?
Problema ainda maior surge quando o contorno da chave já está se encaixando, mas eis que um barulho faz a pessoa olhar de lado e a chave cai de sua mão. E pelo lado de dentro, num lugar difícil de ser alcançado. Contudo, deixar a chave ideal cair e mais distante do que o imaginado, talvez vá além dessa mera divagação a respeito da importância do encaixe da chave no momento exato que o sujeito tanto precisa.
Eis que o fato da impossibilidade de alcançá-la, ainda que visível, já provocou situações verdadeiramente angustiantes. Muitas pessoas já se entalaram nas grades dos portões enquanto tentavam alcançar o objeto, sem falar naquele que entrou no carro e derrubou o muro com portão e tudo. E depois disso percebeu que não estava com a chave da porta. Então começou a chorar feito criança desmamada. 
São questões realmente difíceis de resolver. Mas situação ainda mais complicada pode acontecer. Já ouvi falar de um sujeito que bebeu um pouco mais, errou de casa e tentou a todo custo abrir um portão alheio. E até hoje chora toda vez que se lembra do policial abrindo tranquilamente o cadeado do cubículo na delegacia e ordenando que entrasse.


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Lá no meu sertão...


Na vaqueirama é assim...



Vozes de mim (Poesia)



Vozes de mim


Meus versos
são vozes de mim
e mesmo em silêncio
expressam meu falar
em pranto e grito
em sorriso e canto
o meu começo
e também o meu fim
pois vozes de mim

florescer de um jardim
ou folhas secas ao vento
harpa de anjo querubim
ou sino triste da igrejinha
o meu verso sou eu assim
pois nada escrito é poema
apenas as vozes de mim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - viola em noite enluarada



*Rangel Alves da Costa


Aqui na cidade, aqui entre prédios acinzentados e ruas feias, eu fico imaginando as coisas que acontecem no meu sertão. Sertanejo eu sou, e lá das distâncias matutas do mundo e onde estão espalhados casebres, casinhas de barro, porteiras, cancelas, malhadas e currais de poucos rebanhos. Lá onde Seu João pinica fumo de rolo e Dona Maria debulha feijão de corda. A galinha cisca ao redor, o fogão de lenha vai espalhando um cheiro de toucinho pelo ar. O papagaio tenta repetir tudo, mas a idade só lhe permite dizer “É a vida, é a vida...”. E nas noites, nos noturnos matutos de céu estrelado e lua grande querendo dourar toda a vida, então os compadres se juntam pelos alpendres, no meio do tempo ou debaixo dos pés de pau, para que o proseado faça relembrar a existência e a viola de pinho ecoe um cancioneiro que faça doer bem lá dentro do coração. Cururu, cateretê, guarânia, rancheado, toda a plangência autenticamente sertaneja a se misturar com as vozes da noite, as canções do vento e os sons melodiosos que somente o sertão possui.


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quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

DANDO UM TEMPO



*Rangel Alves da Costa


Recentemente publiquei na rede social: Vou dar um tempo. Aqui do Facebook e de muita coisa. Até não sei quando!
Realmente, preciso dar um tempo. Preciso reencontrar o norte de muita coisa perdida. Preciso principalmente me reencontrar para saber se ainda existo.
Estou cansado de muita coisa. Cansado até de viver fingindo alguma felicidade. Creio ter chegado a hora de enfrentar as realidades sem a máscara das ilusões e chorar quando houver que chorar, e sorrir quando alguma alegria surgir.
O Eclesiastes parece não estar sendo muito justo comigo. As coisas não estão em contínua transformação, conforme ensina o livro bíblico. Não está havendo sol para depois cair a chuva, não está havendo noite para depois surgir o dia. Tudo numa constância só!
Sei que muitos gostam do que eu escrevo, das fotografias que posto, das informações que de vez em quando repasso. Mas tudo estava sendo feito apenas para os outros. Ademais, tudo numa escrita fria, tudo sem sentimento e nada do que realmente existe em mim.
As respostas, estas somente eu sei onde estão. Mas logo direi que todas estão em mim, dentro de mim, no meu eu. A verdade é que não tenho andado contente. A verdade é que todo sorriso surgido sempre é fruto de um esforço sem fim para que assim aconteça.
Talvez eu esteja como o menino Zezé do romance Meu Pé de Laranja Lima. Ele andava entristecido quando lhe foi perguntado por quer estava assim. “Faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de laranja lima”. Foi o que respondeu. Eis o motivo de sua tamanha tristeza.
Não cortaram meu pé de laranja lima, mas cortaram muito de mim. Infelizmente, cada vez mais tenho desacreditado mais nas pessoas. E é uma perda muito grande saber que de repente as pessoas acreditadas chegam com falsidades e traições. Tudo isso é um pé de laranja lima cortado na vida da gente.
Acreditar em quem? Amigos ainda existem? Ou a vida é um viver de ilhéu solitário por que somente assim não se corre o risco de ser pelas costas apunhalado? Que tempos são esses, meu Deus?!
Mas grande parte da culpa é minha. Nunca escondi de ninguém que gosto de solidão, de estar sozinho, de seguir desapegado de mão pelos caminhos da vida. Eu bem que poderia ter continuado assim. Eu tinha duas mãos, mas uma eu perdi assim que a estendi. Bem feito pra mim.
Então dar um tempo é o melhor que faço. Não posso costurar a boca, não posso esconder a mão que me resta, não posso afastar os outros da mesma estrada por onde passo, não posso deixar de estar na presença de pessoas, mas posso viver apenas pra mim mesmo. E é isso que tenho a fazer.
Tenho aprendido cada vez mais que a grande conquista da vida, ou a verdadeira conquista da vida, está no autoconhecimento. E no autoconhecimento a autoestima, o amor-próprio, o gostar de si mesmo. Esperar pelos outros não. Esperar pelos outros mais não. Ou a pessoa se gosta e se ama ou nenhum amor ou gostar será conquistado.
As roupas sujas precisam ser lavadas. Os panos rasgados precisam ser remendados. Mas apenas aquilo que se presta ao uso. Muito terá de ser jogado fora sem dó nem piedade. O que não presta e continua é como um lixo que destrutivamente vai se acumulando. Isso mais não.
Sei que vai doer fechar a porta e a janela assim de repente. As sombras aumentam as aflições e as angústias. Mas qualquer dia a porta e a janela serão novamente abertas para que o sol retome o seu lugar e novamente brilhe em cada passo do que restar da existência.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Sertão





Apaixonado (Poesia)



Apaixonado


Tudo eu já fiz
fui do uísque ao vinho tinto
por uma paixão
que você não crer que sinto
mas acredite
o coração sabe que não minto

revelar na palavra escrita
o que não posso em beijo e abraço
ainda assim você não acredita
que o meu voo se prende em seu laço
e que essa paixão que agora grita
vem de um coração que não é de aço

tudo eu farei
na esperança de ter seu olhar
corto caminho e sigo outra estrada
bastando que me diga onde encontrar
querendo que então confesse
que ainda vai me amar...

Rangel Alves da Costa